quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Ah... a razão dos clowns....
quem precisa dela
quando se tem a loucura?
Só os loucos riem, gozam
vivem, amam e comem
sem os regimes da moda.
A loucura não tem horas,
não bate ponto, não toma vitaminas
antes do almoço
nem se perde em discussões inúteis
do último teórico europeu.
A razão diz o que sou,
mas isso, todos julgam saber.
Só a loucura diz de mim
histórias sem nexo,
que fogem à razão e à lógica
dos amantes infelizes.
A loucura é a porta da felicidade
negada pelo cabresto da razão.
Só quem perdeu a razão
de portas abertas pode ser feliz.
Porque quem goza entre quatro paredes
só procria, não cria.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Uma flor amarela
imitação do sol
em suas luzes
grita diante dos olhos
de fogo de uma criança.
E ela é bela como a flor
amarela em suas pétalas.

Uma flor amarela
grita com sua boca
cheia de dentes amarelos
e uma criança sorri,
ainda sem dentes,
diante da flor que imita o sol.
Não tem cheiro nem sofre
do tempo o mal da efemeridade;
é uma flor de plástico,
mas seu amarelo grita
diante dos olhos de uma criança
e seu sorriso é belo como
as pétalas [de plástico]
de uma flor amarela.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Quando chegaste
como visita apressada
leve de sutilezas disfarçadas
e com teus ares de partida,
fiquei cego ao adeus
que me acenava
o brilho de teus olhos.
Mas não pude enxergar
o inevitável.
O óbvio é demais
para quem julga amar.
No fim das contas,
contra todas as provas,
vivi o que me coube
do tempo da ilusão.
Foste embora muito
antes de partir.
Só eu não via
que precisavas de um porto,
nada mais, em meio à sede,
para descansar teu corpo
e continuar a viagem.
Fiz-me teu porto, tua imagem,
só não esperava pela despedida,
tão certa, tão óbvia, tão conhecida,
e por isso mesmo tão inesperada
como a morte.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Não dê pérolas
aos porcos
diz o ditado
popular
de todas as bocas
e línguas.
Mas, digo eu, não Paulo,
nem o povo e sua boca
enorme:
não dê versos a todos os homens;
alguns são como porcos
não entendem de pérolas
nem de versos.
Chafurde, poeta,
de quatro patas ,
em seu quarto,
as palavras.
Coma a lavagem de seus verbos,
pois tuas palavras
só têm valor
no chiqueiro de teus versos.

sábado, 12 de novembro de 2016

Mãe é assim.

Mãe é assim, igual pirilampo,
ilumina as madrugadas,
te vigia mesmo ao longe,
é farol de porto,
sente sem ver, na pura imaginação,
e se angustia sem saber o porquê.
Mãe é ser divino,
olhamos as estrelas
e acreditamos em sua eternidade.
Vivemos sem olhá-las [as mães]
porque temos a certeza de que sua
visão, embora curta pelo tempo
ainda nos vê, só de fantasiar.
Mãe é assim, não devia ter fim,
é doce que às vezes azeda,
mas compensa em desvelos e cuidados.
Mãe é assim, atenta aos agitos
de nossas inquietações.
Mãe não deveria caber
em definição de dicionários,
foge à filosofia do saber humano.
Mãe é assim, infinita; mas tem fim.
Pena que fechei os olhos a essa
realidade tão certa, tão definitiva;
se soubesse que perderia,
como deveria saber de tantas outras coisas,
pediria que ela ficasse [mesmo que por um instante]
um pouquinho mais perto de mim.

domingo, 6 de novembro de 2016

Sobre o amor e seus problemas na sociedade de consumo

Temos a necessidade de amor, de sermos adorados o tempo todo. Somos resultado de um mundo de consumo, no qual, nós mesmos, tornamo-nos produto. Nunca estivemos tão carentes quanto nos dias atuais. A redes sociais dão a impressão de que temos amigos, seguidores; curtidas, emoticons, selfies e postagens no Instagram e no Facebook e seus correlatos é parte do nosso cotidiano desde o café da manhã. Mas por que todo esse desejo de exposição?
Em um mundo que as pessoas são medidas pelo consumo, pelas roupas que vestem, pelas jóias, pelas etiquetas da camisa ou da calça, pelo relógio, pelos lugares que frequentam, nós também, em certa medida, viramos produtos. Estamos expostos em uma estante virtual aos olhos dos demais consumidores.
É comum ouvir comentários de que fulano é feio demais para uma determinada moça, que um rapaz é um partidaço e não se entende por que ele sai com uma menina tão insossa. De que viajamos por uma companhia aérea de segunda, que o bar que fomos é pé sujo. Todos esses comentários expressam que as pessoas se têm e se veem com um determinado valor, que nos abre as portas de alguns lugares e espontaneamente nos fecham as portas de outros.
Para ter valor de mercado é preciso propaganda, exposição. A vida de solteiro, viúvo ou divorciado exige academias, bares, restaurantes, baladas caras. A vida disponível exige de seu produto a valorização no mercado. Vai-se à padaria: check in; ao bar: check in; à academia: check in; à balada: chek in; ao aeroporto, de preferência internacional: check in. Pensar que antigamente, check in era palavra ouvida em hotel chique.Temos de mostrar como bons produtos circulam por lugares maravilhosos.
Todas essas demonstrações de sociabilidade escondem a solidão do homem e a necessidade de amor que ele tem. Precisamos de amor, de aceitação. Como é bom ser amado e não se sentir mais sozinho no mundo. No entanto, para ser amado, é preciso ser desejado. Temos de passar pelo desejo primeiro, pela cobiça, atrair os outros pelos olhos. Os confeiteiros foram os primeiros profissionais a perceber que comemos também pelos olhos.
O desejo conduz ao consumo. Contratamos personal trainer, escolhemos a academia cara da cidade, compramos as roupas de academia nas lojas das pessoas consideradas chiques, portanto, estão na categoria de desejáveis, logo, como seria bom amar uma dessas pessoas. Amor não existe antes do desejo. O amor à primeira vista não existe há muitos anos. Manuel Bandeira há décadas dizia: deve ser bom gostar de uma feia, mas era fraco demais para isso. E esse modo de pensar vale para as mulheres também. Sapato feio e velho é bom para ficar em casa, para sair não dá. Expressões de um mundo que se devora pelo desejo travestido, posteriormente, em amor. José de Alencar faz Aurélia Camargo cotar um marido no mercado. Sinal que sempre fomos mercadorias, o capitalismo só ressaltou nossa necessidade de consumir, mas também, sermos consumidos.
Embora o mundo do consumo esteja a todo o vapor, ele não supriu a necessidade do homem em ser amado. Todos desejam no fundo ter amor, ter alguém, ter um amigo ou amiga em que haja amor de verdade. Somos a sociedade do ter, esse ter que indica nossa necessidade de posse nunca esteve tão presente. E ter significar comprar, consumir. O amor também se capitalizou.
A redes de relacionamentos para solteiros cresce cada dia mais. São inúmeros perfis e sites que oferecem planos do básico ao premium, clientes bronze, clientes prata e clientes gold, tudo para entrar na fila do embarque por um amor e uma vida de menos solidão. O amor revelou que somos sozinhos. Para preencher a lacuna precisamos de um amor. Para tanto, temos de nos tornar desejáveis.
Para virar o produto que precisamos, enfrentamos barbearias retrôs, salões de beleza, sessões de massagem, psicoterapia, conselheiros amorosos, personais de moda, academias, alimentação fitness, sucos detox, massagens linfáticas, tudo para embelezar a lataria desse carro que envelhece a cada dia.
Tornamo-nos o produto que precisa ser reciclado se quiser ser desejado e, consequentemente amado. Mas, precisamos de amor em todos os sentidos. Compramos tudo o que nos alcança para obter essa dádiva dos céus, esse prêmio de loteria que a cada dia se torna mais difícil de ganhar. O ápice de um solteiro é colocar no facebook: "Em um relacionamento sério com...." e como faz falta a foto do lado. Por isso, lutamos para preenchê-la, para reduzir a solidão em que vivemos.
Ter amor é estar acompanhado nesse mundo em constantes mudanças. Nunca o homem se isolou tanto e ao mesmo tempo desejou tanto ter alguém que o compreenda. São as aporias da pós-modernidade, ou seja lá do que queiram chamar o tempo em que vivemos. Ainda somos seres humanos. Apenas fomos contaminados pelo consumo. E esse poder de compra também trouxe a ilusão de que podemos comprar um amor. Para tal tarefa, também nos tornamos produto, porque nesse mercado ambos tem de ser desejáveis, financeira ou fisicamente. Fazer um par, ter uma compatibilidade, ter um coraçãozinho de possível relacionamento das redes sociais é o reflexo de nosso desejo de estar acompanhados. Mas não só acompanhados: ter amor, amor é essencial para a vida e sem ele não vivemos ou vivemos mal. A decepção está em que não podemos comprá-lo, ainda não. Assim, cada dia mais investimos em nós, produtos de uma confeitaria que tem de se renovar a cada dia, afinal, o outro também deve nos desejar. O amor virá depois, após o desejo, após a aquisição.


domingo, 30 de outubro de 2016

Tragédia escolar

Não sou bom
em matemática,
mas sei que dois mais dois
podem fazer três.
E se no incalculável do destino
o símbolo de soma
na malandragem dos astros
resolver dar uma estrela
dois e dois podem ser quatro.

Geometria

Escapo pelas tangentes
de teu corpo
porque tuas curvas
exigem de mim
um ângulo difícil
de calcular.
Sempre é mais seguro
e certo
ficar entre as paralelas
de tua pernas
elas me levam serenamente
à profundidade
do infinito de teu ser.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O homem domesticado

Sou um homem como qualquer outro,
que precisa de um corpo
onde escorar-se
e do calor de peles alheias
para acariciar sob as mãos.

Sou um homem como qualquer outro,
que reclama do emprego, da mulher,
que amaldiçoa o governo;
depois se senta no sofá
com um copo de cerveja na mão
e espera que os filhos durmam,
para amar a mulher de quem reclamou
o dia todo para os amigos
e não tem coragem de se divorciar.

Sou um homem como qualquer outro,
covarde e domesticado como um cão
que abana o rabo ao ver seu dono chegar.

sábado, 22 de outubro de 2016

Defini as rotas em mapas sonhados
tracei planos audazes
caminhei onde não havia estradas
fiz dos caminhos descaminhos.
Não digo que cheguei a parte alguma,
mas quem chegou, quem atingiu o clímax?
Provavelmente, esse morreu
não lhe doem as juntas nos dias de chuva
não tem dos reumatismos as dores
nem a artrite aferroa-lhe o corpo,
essa maciez morna, esse material maleável
com que nos moldamos na vida.
Há um fim, sei disso, sabemos disso,
mas concluir-se, assim, com ponto final
e tudo é outra história.
Isso é para quem se despiu do corpo
e se pendurou no cabide da eternidade.


terça-feira, 11 de outubro de 2016

Aprendi a amansar
o olhar
controlar aquele brilho
jovem de desejos
todo água, todo sinais.

Dei às minhas vistas
um olhar de boi manso
que rumina o passado.

Olhos invertidos,
que olham para dentro
profundos de si mesmos.

Um olho todo memórias
carregado de bagagens,
brilhando no escuro d'alma,
que ilumina os cantos,
as histórias entre malas,
porta-retratos e quinquilharias.

Hoje, o olhar embaciou.

Traído pelo tempo,
vive de lembranças.

Trai quem à primeira vista julga
ser tristeza a falta de brilho
naquele olhar antes todo navegação.

É simplesmente a vitória
do olhar bovino, que tem a paz
de saber-se pleno de luz.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Desbrinquei de cedo.
Primeiro a tosse
depois a anemia.
Virei peça rara
de cristaleira.
Minha vó argumentava
de seus breves saberes
de quem curou as crias
no caldo de mocotó
e no ovo de pata,
que sangue virava água.
Todos arreceavam
d'eu desviver em breve
e meu nome era dito
entre cochichos
e arregalar de olhos murchos.
Pranteavam o defunto futuro
do qual ainda finado
me desconheço.
A menina loira
da casa de madeira
na curva da estrada
desemboca em lágrimas
no córrego atrás das mangueiras.
Chora a distância de dezembro,
quando a explosão rosa-amarelo
de mangas espadas
sobre uma cabecinha de fios de ouro
anunciará o tempo de novas bonecas.
À noite a menina sonha
com o dezembro encantado
das mangas chupadas
sob as copas das árvores.
Da explosão amarela entre os dentes
nascerão bonecas loiras
que ela lavará no córrego
no fundo da casa de madeira
que fica na curva da estrada,
onde tem uma menina loira
que sonha com mangas espadas
e seu mundo é maduro
e amarelo como o sol.

A propósito do dia das crianças

De pequeno
tive meu matadouro.
Era dono de pastos inventados
e o jardim era um pampa imenso.
Nele pastavam formigas
saúvas que davam gosto;
e eu, vaqueiro e dono,
[que a alheio gado não assisto]
contemplava orgulhoso
do alto de meu cavalo verde
de pernas de fósforo
e cascos de fogo,
meu gado formigal.
Deus de meu universo,
escolhia a dedo
a formiga mais gorda
e a degolava sem dó
diante das cigarras estarrecidas
que carpiam enlouquecidas
até anoitar o luto sobre o mundo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Quando te deres conta
de que me amas
e não há sombras
mais em teu olhar,
e sentires um desejo
enorme de sussurrar
em meu ouvido
essas doces palavras,
segredes ao espelho
teu amor, ele guardará
como teu melhor confidente
essa porção de amor
que cultivaste dentro de ti.
Escondas de mim teu amor,
porque a certeza deste sentimento
nem eu poderei roubar de ti
e verás sempre o brilho
de teu olhar refletido no espelho.
Uma mulher de finas mãos
colhe maçãs
às portas do Hades.
De seus seios brotam
peras e figos maduros.
Sua pele de cera branca
é um convite ao deleite
que nasce entre duas colunas
de onde escorrem brilhantes
fios de azeite reluzentes.
O seu ventre é protuberante
de uma lascívia gritante
e vê-se nele
[qual transparência translúcida]
Caim e Abel
a se destroçarem no breve
tempo entre o Alfa e o Ômega.

Sonhei que tragava teus olhos
e no céu de tuas retinas
havia o eclipse do sol.
Nunca mais teus olhos de fogo
devorarão minha alma
nem se cravará em meu peito
a lâmina dura de teu olhar.
Fecho os olhos
como quem fecha uma janela
e olha para dentro de si.
Contemplo vísceras, rins, pâncreas
e não vejo nada no futuro.
Guardo teus olhos no estojo do peito
como relíquias de um tempo
em que me devoravas com um olhar
e a dor de te servir
era como a alegria do amanhecer .

sábado, 24 de setembro de 2016

Filha, aí não!!! É para ser professor

Essa semana houve a mostra de profissões da UEM. Aquelas feiras para alunos indecisos descobrirem o que realmente querem fazer de suas vidas. Nada mais que várias salas com universitários dando informações sobre os cursos que fazem e a vender o peixe de sua área de formação.

Uma muvuca que me fez lembrar os infernais anos que dei aula no ensino médio. Aqueles adolescentes suados, achando que são donos do mundo e que têm a razão de Descartes. Entendo porque Raul Pompeia ateia fogo no Ateneu ao final do romance. 

Mas todos deveriam temer o cronista. Não existe ser mais sorrateiro que essa figura com o teclado sob seus dedos. Além de ser um observador indiscreto do comportamento humano, está onde menos se imagina. No ralo do banheiro, naquela selfie indesejada, na conversa do casal em voz baixa, que finge idílio enquanto discute a relação. É um observador nato e como uma Miss Marple, os casos caem em seu colo. 

Ao sair da sala que ficou para os cursos de Letras e História, presencio um fato memorável. Uma família feliz. Pai companheiro, que acompanha os filhos e mais que eles, a filha, na árdua estrada da escolha profissional. Um sujeito baixinho, atarracado, daqueles que usam bermuda jeans, sandálias, camiseta branca de gola polo e a cereja do bolo: o óculos Ray Ban como uma tiara a adornar a testa que a cada ano fica mais proeminente. 

Atitude protetora, o sujeito anda com a filha de mãos dadas. Dizem que o homem devem andar do lado da rua e deixar a calçada para a mulher, uma forma de proteção, uma etiqueta a se respeitar. Tal como na rua, o pai, exercendo a força do macho, que lhe coube ao nascer, fica ao lado das salas de aula e deixa o lado oposto do pátio à filha. Escolhe a dedo a sala que a filha deve entrar, pois em cada espaço se desenha uma possibilidade de futuro, que vai do cor-de-rosa, ao mais negro dos cenários.

Coube a mim o lado negro da força. Então, ao sair da sala vejo um leve puxão protetor do macho alfa cuidando da família. Estufou peito, encolheu a barriga, resultado de anos de uma cervejinha, que todo pai de família merece ao final da tarde, e soltou a expressão quase de horror: "Aí não, filha!! É para ser professor. 

Pois, é!! Se a situação era difícil, em tempos de Temer, temer a educação é uma sinal de inteligência, é a certeza de que ao ter escolhido qualquer outra profissão o sujeito sente o alívio de não ter caído em desgraça. 

Hoje a crônica, não podia ser outra. Na atual situação do país, sorrir é difícil, rir, então, quase um milagre. Resta-nos ter um presidente que o nome é uma piada pronta. Quem não teme Temer? Temer é sinal de inteligência. Porque enquanto o malvado favorito, com sua mãozinha de ilusionista não parar, só podemos temer o futuro da educação, temer o futuro do país, que mergulha a cada dia em um enorme mar de incertezas. Professores, temam, Temer vem aí e vai pegar você!!! Pior, não é uma cantiga para assustar criancinhas mal-educadas nem a versão do Tropa de Elite: Temer pega mil, pega geral e vai pegar você!!! Perdeu, perdeu....

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Paulo e Hilda

[Mário espreita]

Segura amor....
sem pressa....
o que tem abaixo
da linha do ventre
não foge ao cárcere
da mão em concha.
Tenha calma,
apague a luz.
No escuro
o que não se vê
melhor se sente.
E pela manhã
um pássaro
pode brotar
de nossos púbis
e contemplaremos
entre as cortinas
o halo sonoro
de uma manhã
menos inóspita.

Bilhetinho

Ah amor...
não faça graça
com meu coração,
porque essa desgraça
de despedida
não é comigo não!

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Os girassóis são felizes
passam o breve tempo
que lhes compete
nesta terra a acompanhar
bovinamente o Sol.
Não sofrem do desejo
das esquivanças
da tentação dos infiéis
de olhar para os lados
nem de girar em lamento
para trás a cabeça.
A eles, apenas o Sol brilha,
a felicidade é amarela
e as sementes alimentam
os pássaros.
Cansei do mundo,
sonho com o dia
em que despertarei
com vocação para girassol
em vestido de festa
para quem os bailes
são dias amarelos de Sol.
Mas, por ora, dos girassóis
tenho tão somente o murcho
olhar cabisbaixo
dos dias de chuva
e a incerteza do amanhã.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Não gosto de circos,
nunca gostei.
Talvez o pouco tato
com a vida venha do ódio
ao picadeiro, à lonas coloridas
que armam todos os dias
para vender os ingressos
aos truques de mágica
com que nos iludem
nos apertos de mãos.
Estou na arquibancada
como galinha no poleiro
e equilibro-me como se tivesse asas.
Por entre as cortinas me espreita
um anão de olhos terrivelmente azuis.
Se fosse criança, mergulharia
nos fofos seios de mamã,
mas adulto, equilibro-me de novo
na tênue linha da afiada lâmina
dos relacionamentos diários.
Também armo minha lona,
anuncio o espetáculo
e qual trapezista suicida
diante dos olhos esbugalhados
dos expectantes paralisados
atiro-me ao ar como um peixe
que mergulha em um mar de ilusões
sem rede de segurança
certo de que me esborracharei
contra o palco da vida.

domingo, 18 de setembro de 2016

Quem nunca sofreu
a ansiedade da expectativa?
E depois sofreu ainda mais
com a realidade da realização?
Mas...não...o que vejo
é gente feliz, segura,
que nunca fracassou em nada.
Serei o único a empurrar
para debaixo do tapete
as frustrações, os gozos interrompidos,
os coitos sem graça, as reprovas?
Contra todas as provas
vivo cercado de gênios
e não sabia.
Pessoas felizes
que nunca traíram, que nunca falharam
em NADA.
Só eu trago a barba
por fazer e na boca
o hálito de café.
Todos os demais
cheiram a menta fresca
e exalam perfumes da última moda.
Quem me dera entre as gentes
encontrar um igual
personagem da vida
que tem preguiça de tomar banho,
que mesmo sem trair,
por fidelidade ou incompetência,
confesse o desejo por outro corpo.
Só eu desci
ao fundo do poço
catei as bitucas da vida
e fumei o cigarro sem graça
que é levantar todas as manhãs.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Instante

Tange ignota sem rumo
a veia do coração
lentamente devagar
a pulsar ingênua
com  doce carinho
pessoal intransferível.

Tem alguém à espreita
ouvido colado
à parede do peito
que retém o tum tum
em compassos de regência.

Não a assuste, nem a sobressalte
que dorme no seu peito
corpo doce puro
que guarda a alma dos anjos
e tem na fronte os sonhos
ainda em composição.

Esse corpo não sabe, ainda não
que o coração inquieto
de quem a sustém
queria fundir os golpes
da música jovem lírica
com um amor amarelo
feito de fatias do sol da manhã.

Segure este compasso
de quem ainda não sabe
que habita um coração
que se esmaga entre fracassos
e glórias de amor e ódio;
deixe ela viver a ilusão terna
de quem acredita habitar
um coração só dela.

Segure o ritmo, mantenha o som
do chiar do peito em ressonâncias
reverberantes de dois corações
que se fundem na forja
do Artífice desconhecido
do universo.

E não há mais ausências
só um som uníssono ressoa
na abóboda do peito
qual religião em êxtase
de saber que o espaço
preencheu-se e os ecos
incensam o templo
de dois corpos que querem
somar-se na mesma batida.

Não, não a incomode
que ela dorme a balada dos tempos
e sonha que seu coração
bate em outro peito
e tange a mesma frequência
sinestésica das origens.



sábado, 10 de setembro de 2016

Mor, a Fátima se separou do William Bonner

Os programas de culinária se proliferam pelos canais de televisão mais rápido do que o vírus da gripe. Mesmo nos canais fechados a programação está tomada por apresentadores cozinheiros ou por atores/atrizes, ex-modelos, alguns fracassados na profissão, outros apenas o auge passou e os contratos com as emissoras exigem um tempo mais de trabalho. 

Fugir às tentações gastronômicas vira um verdadeiro pesadelo para aqueles que querem perder uns quilinhos a mais. Manter a beleza se tornou uma batalha quase midiática contra Anas Carolinas, Rodrigos Hilberts, Belas Gils, Olivers, Oliviers, ex-maridos da Eliana, etc. E saber que antes sofríamos apenas com Ana Maria e dona Palmirinha; com muita falta de sorte, já que quase ninguém vê aquele canal sem graça da Gazeta, e as coroas só lembram dele por causa do eterno príncipe Roni Von, nos defrontávamos com mama Bruschetta, mas aí tem seu tom de graça. 

Mas como desgraça pouca é bobagem, diz a voz do povo, as mulheres começam a sonhar com um marido moderno, que cozinhe, que seja como Rodrigo Hilbert, o apresentador de "Tempero Família". As discussões em família ganham um novo item para a terapia de casal, para as rodas de autoajuda dos encontros de Casados para Sempre e outros genéricos, que só têm o mérito de mostrar como os casais foram burros e havia homens e mulheres melhores à volta para a escolha dos cônjuges em crise. 

O pior é quando se para, olha para a mulher ao seu lado, no sofá da sala, quase comendo a colher diante da tevê e não sabemos se é o sorvete que está delicioso ou se é um ato falho e ela imagina-se despindo o Hilbert que salta aos olhos dela pela tela do aparelho. A segunda fase é pior, passa para a verbalização das agressões contidas: "Está vendo, ele é rico, famoso e sabe cozinhar! Você não presta nem para fazer uma omelete, quando muito acerta o ponto do miojo". 

Não bastasse essa humilhação, um amigo do grupo do WhatsApp, último reduto da masculinidade moderna, em uma versão repaginada do clube do Bolinha, entra todo animado falando que viu o Hilbert matando um carneiro. O ânimo era tanto de nosso amigo que seguramos sua heterossexualidade  com muito esforço. Até no Whats é demais. Isso já é perseguição.

Assim, a hora da janta virou uma tortura. Cada prato que é colocado na mesa, vemos o suspiro das amadas aguardando mais um programa do bonitão, enquanto serve o bundão do marido e a prole, que se for feminina, vai se juntar à mãe para exaltar as qualidades másculas do apresentador que sabe cozinhar. O inferno é completo quando o amigo do WhatsApp posta no grupo que o cara vai cozinhar em novo episódio. Nada de repetições de meio de semana.

Procurei o psicólogo quando o caldo engrossou e quase entornou. Ao dormir, tive pesadelos com o Rodrigo Hilbert correndo atrás de mim, só de ceroulas e com uma machadinha na mão para me degolar como se eu fosse o cabrito da vez. Até tentei o padre, mas ele também assistia ao programa do catarinense metido a cozinheiro. Há alguns anos já fizera terapia, sonhava que mama Bruschetta fazia Pole Dance para mim e me perseguia em torno da mesa. Mal sabia que o horror aumentaria.

A saída era me conformar. Os canais de tevê estão cheios de programas de comida. Mas, como último bastião da resistência de minha masculinidade, liguei o aparelho no canal da Globo, vi Ana Maria fazer hummmmmm, depois procurei Palmirinha com aquele boneco chato e seus visitantes e, por fim, voltei para o canal da bestialidade nacional e assisti ao "Encontro". Lampejo dos últimos que tive e ainda na esperança de recuperar o que sobrara de minha dignidade pós Rodrigo Hilbert, disse:
"Mor, a Fátima se separou do Willian Bonner!!"



sexta-feira, 9 de setembro de 2016

BICICLETA

Trago comigo um caderno
de ilusões e sonhos amarelado,
escrito em horas de júbilo
quando as bicicletas
eram um sonho longíquo
a rodar pelas ruas do bairro.

Reconheço que as bicicletas
de pedal, selim e raias brilhantes 
pertencem ao passado;
foram banidas da poeira do quintal 
e dos sonhos exiladas como pesadelos.

Também aprendi a rasgar as páginas
com os desejos realizados,
mas a maioria delas trazia vestígios
do último sussurro da desilusão
de alguém que desperdiçou o tempo
com a mania dos entulhos.

Tive várias bicicletas na vida,
nunca as deixei de ter 
[agora reconheço].
Algumas logo ficaram esquecidas,
outras viraram relíquias no quarto;
mas, aquelas de paradeiro incerto
daria tudo para com elas desfrutar
do vento que acariciava o rosto
enquanto sonhava que era rei,
dominava o mundo sobre rodas
e meu universo era o quarteirão
onde ficava minha casa.

Jamais esquecerei no filme
projetado no quarto escuro
de minhas longas memórias
a dor que as bicicletas me causaram.
Correia, coroa e catracas
nunca doeram tanto nos seus giros.

Se pudesse, hoje, reduziria a velocidade
das pedaladas 
e em câmera lenta me demoraria
[no breve instante da contemplação]
a passar os olhos em páginas esquecidas
e em velhas anotações para sempre perdidas.


BICICLETA

Trago comigo um caderno
de ilusões e sonhos amarelado,
escrito em horas de júbilo
quando as bicicletas
eram um sonho longíquo
a rodar pelas ruas do bairro.

Reconheço que as bicicletas
de pedal, selim e raias brilhantes 
pertencem ao passado;
foram banidas da poeira do quintal 
e dos sonhos exiladas como pesadelos.

Também aprendi a rasgar as páginas
com os desejos realizados,
mas a maioria delas trazia vestígios
do último sussurro da desilusão
de alguém que desperdiçou o tempo
com a mania dos entulhos.

Tive várias bicicletas na vida,
nunca as deixei de ter 
[agora reconheço].
Algumas logo ficaram esquecidas,
outras viraram relíquias no quarto;
mas, aquelas de paradeiro incerto
daria tudo para com elas desfrutar
do vento que acariciava o rosto
enquanto sonhava que era rei,
dominava o mundo sobre rodas
e meu universo era o quarteirão
onde ficava minha casa.

Jamais esquecerei no filme
projetado no quarto escuro
de minhas longas memórias
a dor que as bicicletas me causaram.
Correia, coroa e catracas
nunca doeram tanto nos seus giros.

Se pudesse, hoje, reduziria a velocidade
das pedaladas 
e em câmera lenta me demoraria
[no breve instante da contemplação]
a passar os olhos em páginas esquecidas
e em velhas anotações para sempre perdidas.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

SOMOS UM

Veste-me com tua nudez
que me cai tão bem teu corpo.

Amornado em teus seios
esqueceremos que estamos nus.

Tua pele será abrigo ao meu sexo
e diante do Criador estarrecido

não me darei conta de meu corpo nu,
pois estarei guardado sob tua pele.

E quando Ele, por retórica, perguntar:
Onde está a mulher que te dei?

Responderei que estás comigo
e que quem vê a mim, vê a ti,

pois de tua pele me vesti
e teu corpo habita em mim
neste coito de tempos esquecidos.

domingo, 4 de setembro de 2016

A dor do abandono
diante do regresso se apequena.
Somos como cães
quando amamos.
Vivemos da inocência,
desaprendemos horas e dias
e a dilacerante espera na calçada
é um instante de olhar a rua,
que a memória apaga
ao som dos passos
que tanto tardaram
à voz dos lamentos.
Aprendi a estender menos a mão.
Aos muitos prazeres que dei
multiplicaram-se os desprazeres.

Não direi mais: "muito prazer",
não me fizeste gozar [ainda]
nem contigo ri em horas perdidas.

Na chegada evitarei o prazer,
quem sabe ao acenar da despedida
possa dizer do amor que deixaste,

embora seja tarde,
o mais doce e triste e sincero
muito prazer.

Se quiseres, fique mais, é cedo
aqui tens a minha mão aberta
e a tua mão também aberta aí tens.

Para quê o aceno da despedida
se cabe a nós o prazer da chegada
ou a dor da despedida?

sábado, 3 de setembro de 2016

Devolvam minha Olivetti!

A tecnologia é uma maravilha. Achamos tudo no google, o maldito até tenta antecipar e facilitar nossa busca. Mapas enormes como encartes de revista, grandes enciclopédias vermelhas na estante, dicionários grossos, nada disso se faz necessário mais. Uma máquina com alguns terabites de memória, uma conexão rápida com a internet e como diziam no antigo "Casseta e Planeta: seus problemas acabaram! Será?!
E toda essa tecnologia migrou para os Iphones, para os Smartphones e por aí vai. Mas, nasci em uma época que nada disso existia. Ainda tenho escondido e até com uma certa vergonha um diploma do curso de datilografia que fiz quando era pré-adolescente em uma escola pública. Na cidade havia dois lugares que ofereciam esse curso: a sede social da igreja católica e a escola onde estudei. Na época, as máquinas já eram antigas e minha professora suspirava pelas máquinas de datilografar elétricas, que não chegavam e acredito nunca chegaram para suas tão dedicadas aulas.

Parávamos o tectectec incessante dos dedos para corrigir os erros, passávamos errorex e soprávamos para voltar ao ruído infernal de 20 alunos datilografando, cada um mais rápido que o outro. Incrível como o ser humano disputa nas menores coisas. Mas, o sonho era mais tarde prestar o concurso para escrevente do fórum e para isso tínhamos de ser velozes. Em uma cidade pequena ser um homem da lei, mesmo que atrás de uma modesta Olivetti, era subir na vida e ter um certo respeito. Além disso, imaginava-me diante do juiz anotando o depoimento de um bandido perigoso.

Em seguida, as máquinas foram aposentadas e surgiu o computador de mesa. A primeira escola de Informática da cidade oferecia o curso de MsDOS e todos nós olhávamos cobiçosos para os 486. Na época meu irmão ganhou um curso desses e foi fazer. Ele já trabalhava em um escritório e eu morria de curiosidade de ver meu irmão digitando num bicho daqueles, achava-o até importante quando pegava sua barraforte  vermelha e rumava para o curso da Microcamp.

De repente, entrei na faculdade de Letras e um professor pediu um trabalho: digitado. Nunca havia usado um computador, vira na mesa de pessoas ricas e de escolas de informática, mas o dinheiro não dava para fazer o curso. Meu irmão mesmo não pôde avançar porque a escola dava a bolsa apenas para o nível inciante. Para sorte minha, um japonês chamado Marcelino levou-me ao laboratório de informática e me explicou que DOS não existia mais, que as máquinas iniciavam normalmente e que o trabalho se digitava em WORD. Com a aula de uma hora uso o computador até hoje. Perdi muitos trabalhos no começo, errei muito, fiquei vermelho, irritado, chorei diante da tela, até que tornei-me um usuário mediano das tecnologias da Microsoft.

No entanto, aceleremos os fatos. Não tive os primeiros tijolos que chamavam celular e mais pareciam um carrinho à flexão, não tive ICq porque não tinha computador, fui ter tardiamente Messenger e que sinceramente acho ainda hoje melhor que o Skype, mas o finado se foi. Agora Inês é morta e, sinceramente, depois do Whatsapp nunca mais acessei o skype ou o messenger do facebook.

Porém, para quem vivia de errorex de pincelzinho para economizar e não comprava o corretor de fita que era mais caro, evoluí bastante. Os problemas, entretanto, só se tornam mais complexos. Não preciso mais de um corretor líquido e falo a verdade, menos ainda do corretor do google. Haja ignorância desse maldito.

Quem nunca se irou diante de uma mensagem que enviou e ao olhar a tela o intrometido mudou a digitação porque achava que você estava errado? Uma máquina querendo corrigir meu cérebro, para mim isso é demais. Digito três, quatro vezes a mesma palavra para que ele entenda que quem manda sou eu. Não quero sugestões de ortografia ou substantivos malucos que ele insiste em digitar no meu lugar.

Os problemas aumentam quando conjugamos os verbos. O corretor do google é burro para verbos, seu vocabulário é limitado e irritantemente coloquial. Será que é um corretor feito para a América Latina e calcularam um número de palavras bem abaixo de um estudante médio? Preconceitos do senhor Bill Gates.

A tecnologia nos fez esquizofrênicos. Brigamos com a tela do computador, com o teclado do Whatsapp, temos medo de acessar o WiFi do barzinho, porque ele vai denunciar no facebook onde estamos e ao final da noite haverá mil curtidas sobre nossa mísera vida pública. Acessamos um mapa e ele quer a nossa permissão para usar a localização atual. E onde fica nossa rebeldia? O direito de dizer nem minha mãe sabe onde estou? Brigamos com o GPS, chamamos ele de burro, discutimos com a voz de uma mulher que nunca vimos. Antes era mais fácil, brigávamos com a esposa e depois de 100 km na direção errada e emburrados admitíamos nosso fracasso e parávamos em um posto de gasolina, humilhados pela inteligência feminina.

Só tenho algo a dizer: que saudades de minha professora de datilografia e de uma época em que ser feliz era ter um cargo de escrevente no fórum da cidade. Por favor, desliguem o WiFi e devolvam minha Olivetti.


quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O que é a vida
senão um até breve
nessa discordância
enorme do universo.
Não me vejo no espelho
o reflexo é de uma sombra,
de um ser informe,
substância negra em tela
transparente a perder-se
no infinito.

Com o tempo 
as manchas aumentam,
o espelho enferruja, 
as vistas diminuem
e a ausência do rosto efebo
fere o reflexo com rugas e talhos,
marcas de faca n'alma,
que expõem o mapa 
sobre minha face.

Este não sou eu, 
minha face é do passado
esse ser que me irrita no reflexo
é mágoa guardada, 
é ódio retido.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Minha amizade com Susy Delgado

No ano passado tive o prazer de ir a Asunción lançar, na Feira do Livro Capel, uma tradução do livro La sangre florecida, de Susy Delgado. Confesso que as narrativas da protagonista Maria'i me encantaram desde a primeira leitura. E em um desses eventos acadêmicos, conheci a poeta pessoalmente. Falei com ela e, timidamente ainda, disse que gostaria de traduzir o livro para o português. Para espanto meu, Susy aceitou e, a partir desse dia, começamos a trocar nossos e-mails, amizades de facebook, ligações.

No dia do lançamento do livro me ocorreu que minha amizade com Susy começara na infância e que traduzir suas narrativas me reconciliavam com o Paraguai. Não um Paraguai verdadeiro, geográfico, de compras e cuias de tereré; definitivamente, não. Porém, com um Paraguai muito distante, mágico, de uma infância na qual eu nem sabia que existia a língua espanhola e quando o guarani era apenas uma língua engrolada que meu avô desembestava a falar quando bebia.

Após a morte de minha avó, com quem meu avô teve uma relação nada pacífica de décadas, o velho deu de beber e muito. Chegava trançando as pernas. Nessa época, meu irmão, minha mãe e meu pai nos mudamos para a casa de meus avós maternos. A pobreza e a bebida não nos deixou solução a não ser pedir arrego na casa dos herdeiros.

Ali provamos o inferno de viver em família. Mas, às vezes, meu avô chegava bêbado e sentimental, sentava, chamava os netos e rememorava na sala de chão vermelho sua juventude no exército. O serviço militar, sua farda, os serviços prestados na fronteira com o Paraguai. Suponho que pelas regiões do Mato Grosso do Sul, porque foi nessas bandas que ele conheceu a minha avó e repetindo uma história que está mais no imaginário do povo do que é uma realidade, também disse que a laçou no meio do mato como touro bravo.

Nunca soubemos ao certo o motivo. No entanto, meu avô fora expulso do exército e por anos se virou como meieiro em fazendas no interior do Estado de São Paulo. A bebida, porém, reavivava parte dessa memória gloriosa, que o permitia até mesmo, agora com minha avó morta, revelar o que todos sabiam e não ousavam falar: minha avó era uma indiona brava, a parte do brava os filhos e netos sofreram na pele, a índia foi apenas mais um segredo de família, que se quebra ao seu portador descer à terra. 

Enfim, com o cuidado de quem guarda um tesouro, meu avô tirava de uma pequena caixinha de sapatos, dessas de criança, uma nota de 50 mil guaranis. Era a prova que ele tinha que conhecera o Paraguai e que aprendera a língua falada pelos índios. Na verdade, não tenho certeza do valor da nota, na época não conhecia números, nem ao menos dinheiro. Então, passo a história como me foi contada, com todas suas imprecisões e ignorâncias.  

E com essa nota na mão, meu avô embrulhava a língua, falava por horas um idioma que nada entendíamos e naqueles momentos, aquele senhor cansado e bêbado, funcionário braçal da prefeitura de Palmital, se tornava importante para nós: nosso avô fala uma língua estrangeira, nosso avô falava guarani.

Outra prova, mas essa não da língua ou do Paraguai, era o enorme projétil de mosquetão que também habitava a caixinha de sapatos. Com esses dois instrumentos na mão, meu avô virava o maior contador de histórias que eu já vi e nunca entendi nada, afinal não sabia guarani. Hoje, mesmo que soubesse, não entenderia nada daquele delírio bêbado, pois nunca falou mais do que um português simples dos homens do interior. 

Anos depois, com a morte de meu avô, a caixinha foi desaparecendo aos poucos: primeiro a nota de 50 mil guaranis; em seguida o projétil, alguém falara para minha mãe que aquilo poderia explodir e ela com medo atirou-o na privada, daquelas de cordinha ainda e que o cano dava em uma enorme fossa no fundo do quintal.

Ao voltar de Asunción, deixei em Ciudad del Este todas as notas de guarani que tinha no bolso. Trouxe comigo livros de autores paraguaios, algumas amizades e um país real ou pelo menos mais palpável em minha mente. Por décadas, o Paraguai foi para mim uma nota de 50 mil guaranis e um projétil numa caixinha de sapatos. Mas, estive em Asunción, ao lado de Susy Delgado, reconciliando-me com meu passado, com meu Paraguai inventado, com minha infância perdida. Falando espanhol com meus irmãos latino-americanos, pagando a dívida com meu avô, entendendo uma ou outra palavra em guarani e encantado com uma literatura que me fez navegar pela ilha sem mar, por um mundo de histórias que me contou Susy Delgado. 

Aguyjevete, Susy!


Envelhece-se todos os dias,
mas também quando pedimos
que a vida dure mais que a morte
e a Eternidade parece uma estrada próxima.
Envelhece-se quando a taça de vinho
de prazer, vira culpa e nos preocupamos
com o mal mais do que com a doce
felicidade da embriaguez. 
Envelhece-se quando o relógio 
nos aprisiona e vemos no tempo tão somente
as horas perdidas e nunca as que ganhamos.
Envelhece-se quando contamos as páginas
que faltam para acabar um livro,
quando o sexo perde a potência renovadora
e a amizade se sobrepõe aos corpos.
Envelhece-se quando o tempo
se torna uma questão de vida ou morte
e achamos que as horas passam rápido demais.
Envelhece-se quando levantar cedo 
é prioridade e os atrasos nos tiram o humor.
Envelhece-se quando os dias da semana
passam a marcar rituais e temos de deitar
cedo porque está tarde.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A minha faca
é minha palavra,
corta afiada
e em mãos bem postas
já fez muita gente
sangrar e recuar.
A lâmina de minhas sílabas
silva como línguas de mil serpentes;
nem por isso deixei de ter inimigos,
tenho-os bem cultivados em meu jardim
e como crescem vistosos aos olhos
esperando a hora da colheita.
O mundo é grande,
mas suas dores
cabem nos dedos
das mãos.

O mundo é grande,
mas seus deuses
debatem as mesmas
e velhas questões.

O mundo é grande,
mas o homem sonha
com a única mulher.

O mundo é grande,
mas a mulher sonha
com um homem
que a compreenda.

O mundo é grande,
mas a corrupção
nasce em cada casa.

O mundo é grande,
mas a fome se repete
por pão, justiça, fé, vida e morte.

O mundo é grande,
mas o homem é pequeno
demais para entender
a rotação e a translação
fora de seu umbigo.

O desdém do amor,
da vida, do ódio...
vivo de descaminhos
minha rota não leva
a lugar algum
que interesse ao viandante.
Despossuído de dons,
recebi o dote das desavenças
e faço delas flor e espada.
Flor para os vencidos
e espada para os destemidos.
Para quem veio sem caminho
certo qualquer estrada é destino.

O MORTO

O morto está ali
[quem se importa?]
estatelado
em nossa sala,
achatado pela tela da tevê.

Ninguém
chora o morto,
[e daí?]
indigente
é uma notícia
de jornal 
no aconchego
de nossos lares.

O morto está ali
[quem se importa?]
no close da câmera,
mas não incomodem...
uma família ceia
e sua santa paz
é inexoravelmente bela.

O morto está ali
[quem se importa?]
em sua crua invisibilidade
e debatemos a violência
de nosso imenso país.

- Que descanse em paz!
- Quem?
- O morto!
[quem se importa?]
- E todo digam:
Amém!




domingo, 28 de agosto de 2016

Ainda somos aqueles velhos canibais

Nunca sabemos por que cargas d'água a memória puxa algum fio solto do novelo e nos leva a algum ponto do passado. O fato é que mal acordamos, pensamos no acontecido. Terá sido o cheiro do café, um comentário de facebook, uma rancor antigo, que julgávamos esquecido, um episódio banal como lavar as louças? A questão é que ali está a memória a girar com seus ponteiros diante de nossos olhos, avisando que é hora de lembrar.

Há pouco tempo, poderia ser no tempo do rei, ou do era uma vez, mas não é. Faz pouco tempo, no semestre que passou. (Maldita mania que nós professores adquirimos de dividir a vida em bimestres ou semestres). Estava com meus alunos começando um seminário - e aqui o gerúndio é verdadeiro - quando assoma pela porta da sala um rapaz alto, que se apresenta como Paul Cabannes, um francês, que de acordo com ele, não realizaria aquela invasão se fosse na França, os professores não o perdoariam. Mas um professor ali, um amigo seu talvez, disse que no Brasil não tem disso e que ele podia invadir minha aula, interromper alunos primeiro anistas, aterrorizados com a ideia de comentar um poema, para divulgar seu telefone para dar aulas vip de língua francesa.  

Emprestou meu pincel atômico, o qual deixou aberto e sobre o suporte de apoio da lousa, divulgou seu curso e saiu sorridente e orgulhoso de sua falta de educação tão recentemente aprendida com seu novo amigo brasileiro, um candidato a professor universitário. Claro, seu sorriso denunciava que sentia orgulho de ser um europeu em meio a quase índios, negros, terceiro mundistas, que desgraçadamente - assim dizem os engenheiros -  estão fazendo um curso de humanas.

Naquele momento lembrei-me de João Ubaldo  e seu livro Viva o povo brasileiro!, e sonhei em ser canibal, fazer como aquele índio do romance que descobrira que a carne dos holandeses era mais adocicada que a dos franceses e prendê-lo. Dá-lo às meninas brasileiras afoitas por um estrangeiro, como se boca, olhos e carne tivesse alguma diferença no mundo todo. Mas não, sorri com a dentada de pré-avó macaca de Lobato e reiniciei com algum custo minha aula. 

Mas, como a memória não pára, fiquei a pensar quem ensinara aquele francês a não ter educação no Brasil. Espanta-me como ensinamos facilmente o que não presta às pessoas e como elas aprendem rapidamente, afinal que ser humano não folga com uma mamata. 

Rapidamente, a memória puxou mais outro fio solto do novelo e me transportou mais rápido que "De volta ao futuro" - as referências começam a ficar antigas - para um episódio de um diálogo bizarro tido em tom douto de quem acaba de entrar no doutorado e está deslumbrado com suas leituras. Fato compreensível, mas não perdoável. O sujeito, amigo do francês, agora que vocês já conhecem Paul, afirmava em alto e bom som que Cortázar e Borges eram franceses, pois é, pasmem hermanos, duas grandes vozes da América Latina, franceses. Para mim que dei aula de Literatura Hispânica soou à provocação ou à ignorância gritante. Não respondi e o sujeito saiu achando que havia arrasado comigo na discussão. Responda a um néscio e fique como ele, Salomão já dizia isso. Homem sábio, homem de muitas mulheres, terá inspirado nossos índios? Não sei e nunca vamos saber. 

Mas, infelizmente, ainda somos aqueles velhos canibais, encantamo-nos com as escolas de línguas que contrabandeiam professores nativos, temos orgulho de falar aos nossos amigos: meu professor é nativo; vejam só quem diria isso um dia, o caminho inverteu. Hoje trazemos nativos para ensinar os nativos de Cabral. O pessoal se encanta com as mulheres da terra, com a caipirinha, a cerveja gelada, o forró e aprende a falta de educação nos primeiros dias. 

Aula interrompida, vida que segue, mas que inveja de João Ubaldo. Viva o povo brasileiro!!! Viva Macunaíma, o herói de nossa gente! Viva Iracema, que se não trouxe o carnaval, deixou o cauim e a nudez do povo brasileiro. 

sábado, 27 de agosto de 2016

Amanhã será domingo

Amanhã será domingo. Impossível não pensar neste fatídico dia. Desde que amanhece o sábado, somos tomados por uma insana força de aproveitar cada segundo. Engolimos as horas no relógio. Queremos que o tempo passe mais lento. Afinal, sábado é o primeiro dia do início do fim de semana. E por incrível que pareça o único: não esqueçamos que domingo é o primeiro dia de mais outros seis.

Talvez decorra desse sentimento oculto o fato de domingo ser sempre um dia angustiante para muitas pessoas. Para piorar é a véspera da segunda, a tão temida segunda-feira, dia de encarar o chefe, o colega de trabalho invejoso ou indesejado. Até porque em nossa atual situação ter inveja de qualquer brasileiro que seja é burrice.

Mas ali está a segunda-feira, acenando-nos mal nasce o domingo. E o mesmo ritual se inicia. Alguns vão à missa, outros à escola bíblica. Rituais espirituais que encurtam as horas do domingo, mas reduzem o sentimento de solidão que somos tomados nesse dia. 

Logo pela manhã vamos à padaria. No caminho, os açougues tomam as calçadas com seus fornos cheios de frangos girando em espetos e outras churrasqueiras com uma infinidade de carne para saciar a sede humana de sangue, agora dourada no carvão e com um leve tempero. Compramos maionese, umas cervejas ou vinho, colocamos o macarrão no fogo e já é meio dia perdido.

Podia ser diferente, mas não é. Os vizinhos colocam o som alto, gritam, riem, tomam cervejas e cantam desafinadamente as músicas mais terríveis de nosso imaginário local. Pensar é proibido. A bebedeira retarda os sentidos e faz segunda parecer mais distante. 

Às 15h00 a depressão aumenta. Os parentes chatos foram embora, os amigos após dizerem algumas verdades incentivados pelo álcool ficam envergonhados e voltam para casa, em geral, discutindo no carro como pedir desculpas no dia seguinte.

Às 16h00 horas os homens ainda tem um alento: futebol na TV. Só estragado pelo humor feminino que se vê desprovido de qualquer programação que atenda suas necessidades. É nossa sociedade ainda machista. O homem trabalhou a semana toda e agora merece o descanso. Então: futebol, paixão nacional, destruição dos lares felizes. 

Às 18h00 o baixo astral é geral. Aparece um ex-gordo ridículo na TV, cheio de grosserias que comanda um programa dominical de aberrações, que são aturadas até chegar o momento das "vídeo-cassetadas", quando as pessoas mostram seu lado sórdido, rindo de crianças que caem, velhinhos bêbados ou gatos que se espantam diante do espelho.

Para piorar, o único passeio que resta é a farmácia. Saímos comprar aquela neosaldina, um gastrol, aquela fralda que acabou, o anticoncepcional para evitar que a população aumente e que a diversão vire pesadelo, aquela camisinha de sabor ainda na esperança de um ato mais ousado depois de anos de casamento.

Mas amanhã é domingo. Inevitavelmente domingo. As rádios vão colocar músicas da década de 80, velhos rocks, alguns sertanejos antigos, algum programa da jovem guarda e samba, muito samba e pagode, como se todos nós nos estivéssemos unidos sob esse gosto musical. 

Enfim, realmente o tom é de nostalgia, um sabor antigo, uma saudade que nos aperta o peito, que nos deixa sem palavras, como se tivéssemos perdido alguém; e com esse nó na garganta vamos dormir, antes que comece o "domingo maior" ou que Silvio Santos faça mais um aviãozinho com uma nota de 50 reais.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Rio sem margens

O rio [sic] são essas águas estranhas
que nos invadem pelos fundos
e nos submergem corpo e alma
em uma sensualidade líquida,
uterina, todo água morna.
Nostalgia de tempos imemoráveis
mistério doce latente, presente
que se condensa em braços, abraços
nos toma pelos lados, pernas, cabeça...
Inevitável submergir
impossível não se afogar.
Rio é isso, esse correr mudo.
Rio é tudo quanto nos afoga
é tudo quanto nos faz navegar.

sábado, 20 de agosto de 2016

Os balões

A menina descansava no colo do pai, que passeava insistentemente e com certa impaciência, de um lado para o outro, em frente à mãe que mastigava lentamente a comida. Ali estava o momento dela, braços livres, descansados da labuta diária de segurar e ninar sua filha. Alongava o tempo de cada mastigada, cada dentada era um ato de preguiça altamente calculado, como se se vingasse do homem que estava ali diante dela e que a fizera mãe. Enquanto comia, sentia que recuperava sua identidade, tinha um nome, uma profissão, não sofria o apagamento das horas do mamã, que se tornaria mãe e, por fim, definitivamente seu nome se converteria em um amontoado de letras no RG. 
Cansado de esperar aquela prática bovina, que incluía os olhos de uma plácida toura, o pai mudou a rota dos passos. Fingia mostrar interesse pela pequena e até ensaiava uma falas com a bebê, porém com medo de ser tomado por trouxa diante dos olhos expectantes que se distribuíam pelas mesas do restaurante. Imaginou que aquele passeio um dia seria feito de mãos dadas e que ao final do corredor de olhos haveria um homem a esperar pela filha.
Quase se desesperou, mas não era para tanto. Não tinha a fibra das raivas longas, nem as forças para desperdiçar em pensamentos que poderia adiar por alguns anos. O genro ainda não existia e se existisse deveria andar em fraldas, cagando e mijando como sua pequena. Nada que pudesse atentar contra esse reinado tão certo e tão efêmero que começara a descobrir naquele pacotinho de olhos abertos que tinha em seus braços. 

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Quero ser florista

Não cabem em medidas disponíveis
nos dicionários humanos
o tamanho de um sonho
ou de uma frustração.
Ela queria ser florista
e chorou o preço das pétalas.
Não contou a ninguém
sobre sua desilusão.
De manhã encontraram-na
gentilmente enforcada.
E nos seus olhos o doce sorriso
com a certeza de que terá todas as flores
do mundo a cobrir seu corpo de jardim.

Um Amor para a vida inteira
não cabe no breve espaço
do senão, nem do talvez,
muito menos do quem sabe.
Surge Pequeno, quase imperceptível
[silencioso, breve, inconsútil].
Mas...um dia...
[cumprido o prazo estabelecido pelas luas]
brota altissonante das entranhas
e se faz insubstituível como o Sopro.
Não sabemos de onde vem nem para onde vai;
primeiro em pequenos giros, depois em saltos
fugas e viagens cada vez mais longas.
Mas nunca deixa de ser Amor.
Partirá... é certo, assim como voltará...,
porque Amor não se substitui
nem perde seu lugar, mesmo que o tempo
da partida se perca na contagem dos dias
e a estadia seja breve demais
para caber nos dedos das mãos,
Amor tem espaço cativo, ocupa a primeira fila
e sempre dá aos olhos a luz que faltava.
- Sim, eu estive fora
[de mim...do ar...]
Inevitavelmente, ausentei-me
do tédio das conversas,
da banalidade dos encontros
talvez dos amores, do sexo
[quem sabe].
Mas, estava ali [oculto]
nunca deixei de estar
[essa presença muda]
sentado diante do Nada
de mim mesmo.
O oco do universo é meu ser
vazio como o mundo onde nasci,
escasso de ideias, rude de palavras.
Duro, de uma dureza persistente,
caipira, quase asnática,
capaz de subir morros,
sou feito de uma teimosia chata.
A meu modo, não deixo de ser
um centauro, nesse trote lento,
solitário.

sábado, 13 de agosto de 2016

Pássaro o inverno
pássaro o verão,
pássaro as estações
e o tempo não pássaro
de passear pela vida.
Eu passarava por teu caminho
mas...de novo...tive de passarar.
Minhas asas não aprenderam
a gostar de gaiolas.
Por isso, passarei a primavera
a passarar pelos ares.
Pássaro breve, leve,
passarinho em busca de ninho.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Ainda somos aquelas velhas putas

América Latina
América Latrina.
Os rios que te cortam
são fezes do mundo.
Nossas universidades
têm papagaios gaios.
Gândavo tinha razão
em aqui se plantando
tudo dá, menos inteligência.
Nossos críticos papagueiam
franceses, ingleses e alemães.
Nosso linguistas são gaios
papagaios que leem Chomsky...Saussure
e acreditam que Bakhtin e Focault
são linguistas.... istas... istas.
Nada produzimos, papagueamos
em nossas faculdades-gaiolas
onde papagaios gaios felizes
becados e de diplomas na mão, meu irmão,
repetem  as velhas teorias da Europa.
Não deixamos de ser, pasmem, ainda hoje
a puta dos colonizadores.
Fechemos com nosso irmão Macunaíma,
sobrinho espiritual de Judas.
"Ai que preguiça! Tem mais não!"


sábado, 30 de julho de 2016

Tenho um quadro
retrato de toda uma vida.
A família está digna,
as desavenças caladas,
mas não sou eu no retrato.
Aqui do lado de fora 
restaram os olhos tristes.
Reflexos de uma foto
que desbotou com o tempo.

Bebo palavras secas
que descem arranhando a garganta
e entre-línguas-dentes
despedaço as sílabas indizentes.
Vivo dessa palavra pedra
pura violência no falso silêncio
desmentido por olhos todo-violências
de um riso sarcástico contido.
Balbucio pequenas violências
enquanto o descontrole interno
me corrói vísceras-coração.
Todo-pedra quase inumano
circulo livre entre pessoas
não menos piores que eu.
Assim, tocamos os acordes
brutos da cordialidade cotidiana
todo-mesuras, disfarce de nossa ancestralidade
quando primitivos éramos cristalinos
de uma pureza pedra bruta inigualável.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Um adeus não é coisa que se diga
assim[...] fácil de falar.
Se diz para quem parte
para quem morre ou viaja.
Mas por que, se você foi
ainda a sinto tão apegada a mim?
Adeus não é assim
tão fácil de dizer,
dói a se perder de vista.
Por isso, esse nó na garganta
esse adeus que saiu atravancado
e nunca me deixou está aqui.
Então, apego-me a esse adeus
e sofro todos os dias
por que essa dor do adeus é você
e sem você é impossível dormir.
E adormeço com esse adeus preso
na garganta, certo de que em meus
sonhos ao menos a terei perto de mim.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Quando o sono chegou
eles já não se amavam mais
e a cama antes dispensável
em seus atavios e desejos
voltou a ser móvel de dormitório.
Dividem o mesmo espaço
sonhos e frustrações alheios.
A noite insone é para os amantes
e pesada como um chumbo
aos que cederam à tentação das alianças.
O tédio da solidão noturna
vem com o tempo a sobressaltos
e o brilho avivado na ponta do cigarro
é o único fogo que incendeia a noite.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Poema a conta gotas

As palavras pingam
escassas da ponta da caneta.
A inspiração foge aos detalhes
perde-se nos meandros da mente.
E as ideias pingam,
formam estalactites
no teto do cérebro,
e são duras e incontornáveis.
Os versos sofrem a erosão
do tempo e as palavras desgastadas
se negam a produzir como antes.
Vejo a plantação se perder
e não tenho palavras para a dor
de ver a página branca devastada,
enquanto os versos gotejam esparsos
insuficientes para um poema.

O Amor
o corpo
os corpos
todos belos
nessa curiosa
horizontalidade
dos inevitáveis
encontros.
A doce desculpa
do amor
para o sexo.
Infame o Amor
belo o sexo.
Viva o sexo!
Abaixo o Amor!
Essa máscara vil
dos atores na cama.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Drama noturno

O mundo dorme
em um concerto
de silêncios
e as vozes emudecidas
tecem sonhos para o dia.

Uma maçã no escuro
pende da fruteira
na cozinha,
enquanto as baratas
cochicham no interior
dos armários fechados,
como se soubessem
inquilinas indesejáveis.

Os roncos em tom de baixo
harmonizam-se ao sibilar
das sopranos e ambos
ignoram-se como se fosse dia
e o café da manhã
estivesse na mesa.

As madrugadas tecem seus mistérios
e em cada quarto escuro das cabeças
revelam-se sonhos
inomináveis à luz do dia.

domingo, 12 de junho de 2016

Sou este ser composto de adeuses.
Poucos insistiram em ficar
e quem se deu a este trabalho
desperdiçou seu breve tempo.
Sou feito desse mosaico,
cacos de um vaso quebrado,
xícara de louça remendada
da velha herança de família,
que rezam uma dignidade
de cristaleira envernizada,
colocada no canto da sala.
Sou eu e sou todos os retratos
de família sobre o aparador,
por isso esse orgulho duro
que reflete no olhar uma dor antiga
de loucuras passadas e aniversários
não celebrados, que choram os olhos
da daguerreotipia genealógica.

Estes são os últimos versos
que te sofro em insanidades
de um passado presente
ainda reverberante no peito.
Abandono-te às palavras
como te abandonei à porta
no dia da derradeira partida.
Faço deste poema uma confissão
um adeus inusitado e sem acenos.
Não posso te sofrer mais 
do que o espaço desta página em branco.
Evito, assim, ofender com minhas lágrimas
ao olhos do leitor honesto a quem confesso
a inconfessável dor do Amor.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Abri a página de teu sexo
e escrevi nela o meu nome,
revelação e salvação
no Livro da Carne.
Enraizei em tua pele o meu corpo
e o teu ventre gerou um ser
a partir do sêmen quente
que irrigou tuas entranhas
e descobriu o óvulo
da Árvore da Vida.
Enquanto morria no teu corpo,
afinal todo gozo é um princípio de morte,
alcançava a eternidade do fruto proibido.
Meus olhos se abriram: vi o bem e o mal
em teu sexo aberto, qual flor rubra
a irrigar a pétala de meu cadáver
deitado no frio jazigo
que visitaste numa manhã de domingo.
E fez-se a morte e a vida,
princípio e fim
em um único coito de redenção.
Conheci um poeta
que calado era
de um lirismo
invejável.

Seus versos
nunca ditos
encantaram gerações
e a ele, o poeta,
erigiram uma estátua
no centro da praça,
que imortalizou
sua imutabilidade.

Reza a lenda
que alguns anos
antes do mutismo total
fora acometido
por grave doença
do ventriloquismo.





Penso as formas tristes
das alegrias interiores
e como se desfazem
em pequenas transições diárias.
Oscilo entre o choro e o riso
de uma lembrança inalável.
Insuportável é o cheiro do passado
no canto do guarda-roupa guardado.
A traça não roeu a veste
e visto essa camisa de força
atado diante do nada
que é o tudo da recordação.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

E quando penso na Eternidade
ela me assusta.
Esse tempo inexorável de vazios
congelará para sempre minhas dores.
O que fazer? Se a dor que tenho
não cabe na vida,
como carregá-la comigo
para o infinito?
Não, não tenho medo da morte,
daquela que nos retorna ao pó,
tenho medo dessa maldição
chamada vida eterna,
porque ela me condena
a me estender além do que posso suportar.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Cantarola (cantiga infantil)

Porque as águas do mar
desceram para a praia
brincar com as areias
com as areias do mar.

Por que as águas do mar
desceram para praia
brincar com as areias,
com as areias de amar.

Porque as águas do mar
desceram para a praia
armando as redes,
as redes para pescar.

Porque as águas do mar
desceram para a praia
levando as teias,
as teias de amar.


sábado, 7 de maio de 2016

Vivo dessas ignorâncias
soltas por aí,
das pequenas palavras,
das miudezas que constroem
verdadeiras fortalezas.
Entro no entrave dos agouros
na esperança de abreviar
as tristezas e antecipar
as consequências de um medo
do porvir que é apenas sonho.
Tenho receio das palavras
ditas e não-ditas
no encalço de minhas costas.
Feliz foi o Adão dos primeiros
dias no Jardim do Éden,
quando foi máquina
de etiquetar o mundo
e não precisava dar satisfação
de suas palavras, só suas
narcisicamente belas e suas.

O mistério da solidão,
da vida, da morte,
do tempo que passa
e não volta mais.
As pessoas deixadas
no caminho, nas encruzilhadas,
nos becos dos desentendimentos. 
A saudade que não cessa
compõe esse mistério
da ausência, da dor
presente, do amor ausente.
E como é grande
o medo do futuro
essa expectativa baça
construída sobre quimeras.
Tudo se torna escuro
diante da imensidão
das incertezas ramificadas.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Porque eu gritei
minh'alma se partiu
ao meio, uma fenda
se abriu no horizonte
e uma parte de mim
se perdeu na escuridão.
O grito parou o coração
interrompeu a vida
levou uma porção de mim
para o além,
para o inferno das ausências.
Condenei-me ao vácuo
de um ventre estéril.
Aguardo agora o momento
de fetalmente aconchegar-me
ao útero úmido da terra.
Dela brotará uma flor
de riso amarelo
prenhe de timidez
diante do céu azul da manhã.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Eu sabia que ela viria
e, então, ela veio,
estendeu-me a mão
e qual trapezista ousado
lancei-me ao ar livre,
entrelaçando meus dedos aos dela.
E ela dançou e girou e rodopiou
diante da plateia de meus olhos.
Hipnotizado a segui
entre saltos e giros espiralados.
Eu sabia que ela viria
e, então, ela veio e passou,
deixou meus olhos
perdidos no vago espaço.
Mas ainda sinto o peso
de pluma de seus cabelos
apoiados em meus ombros.
Por isso, todas as manhãs
sento neste banco
e alimento doce esperança
de que ela volte
nem que seja um minuto
e eu a surpreenda 
dançando e girando
e mesmo nesse instante de ilusão
eu repita a ousadia do trapezista
que um dia fui e no ar
entrelace novamente 
meus dedos aos dela.

terça-feira, 26 de abril de 2016

O tédio, sempre o tédio
diante do circo das relações,
da bajulação miúda dos namorados,
das desculpas que justificam
os atos solenes mais sórdidos.
Sempre a desculpa para o gozo,
sempre a escusa do amor
para o sexo entre os corpos.
E nesse roçar que é porosidade 
passamos a vida enlaçando
braços e pernas na repetição
dos ponteiros do relógio,
que marcam o fim do gozo,
da ereção e, por fim, do amor.
E seguimos tecendo passados
nos intervalos entre um corpo e outro,
cavando com a pá do tédio
a cova rasa do amor
onde jazem enterrados os casais.
Estou fazendo uma sopa
e alguns versos.
Entre alhos e cebolas
jogo com o sal da vida,
cozinho meus temores,
arrisco meus amores,
e, por que não, os dedos
em novas experiências.
Mas, ainda sou eu
o mesmo de sempre,
em nada mudei
e tenho com o que me iludir:
a sopa é o refúgio
no qual me auto-devoro
em definições comestíveis.
 A despreocupada cor de sua pele
na indiferença do dia escureceu
o sol luminoso de meus olhos.
Justo eles que tanto brilharam,
ao te olhar não resistiram
à força de serem por ti ignorados.
O amor resiste ao ódio,
faz-se todo de pedra e rocha
frente ao choque das águas,
mas não resiste nem pode
com a dor da indiferença dos olhos
aos quais por doce ventura dos amantes
deixou-se estar, por desejo, prisioneiro.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Espelho

De quem é essa mancha
refletida no espelho?
Quando me tornei
esse ser bizarro?
Em que momento da vida,
doce ilusão de eternidade,
meus olhos se esvaziaram?
Quando abandonei o sorriso
e meus lábios se fizeram retilíneos
como duas retas paralelas?
Em que ano de meus anos
o espelho deixou de refletir
meus sonhos e esperanças?
Por que, espelho, deixaste
de acompanhar a evolução
de meus cabelos brancos?
Por que não me avisaste
que o tempo passava?
Por que nessa intimidade
de te olhar todos os dias
só eu não percebi
o que todos viam?
Onde está o meu rosto?
Em qual espelho do passado
deixei minha felicidade?

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...