terça-feira, 30 de agosto de 2016

Minha amizade com Susy Delgado

No ano passado tive o prazer de ir a Asunción lançar, na Feira do Livro Capel, uma tradução do livro La sangre florecida, de Susy Delgado. Confesso que as narrativas da protagonista Maria'i me encantaram desde a primeira leitura. E em um desses eventos acadêmicos, conheci a poeta pessoalmente. Falei com ela e, timidamente ainda, disse que gostaria de traduzir o livro para o português. Para espanto meu, Susy aceitou e, a partir desse dia, começamos a trocar nossos e-mails, amizades de facebook, ligações.

No dia do lançamento do livro me ocorreu que minha amizade com Susy começara na infância e que traduzir suas narrativas me reconciliavam com o Paraguai. Não um Paraguai verdadeiro, geográfico, de compras e cuias de tereré; definitivamente, não. Porém, com um Paraguai muito distante, mágico, de uma infância na qual eu nem sabia que existia a língua espanhola e quando o guarani era apenas uma língua engrolada que meu avô desembestava a falar quando bebia.

Após a morte de minha avó, com quem meu avô teve uma relação nada pacífica de décadas, o velho deu de beber e muito. Chegava trançando as pernas. Nessa época, meu irmão, minha mãe e meu pai nos mudamos para a casa de meus avós maternos. A pobreza e a bebida não nos deixou solução a não ser pedir arrego na casa dos herdeiros.

Ali provamos o inferno de viver em família. Mas, às vezes, meu avô chegava bêbado e sentimental, sentava, chamava os netos e rememorava na sala de chão vermelho sua juventude no exército. O serviço militar, sua farda, os serviços prestados na fronteira com o Paraguai. Suponho que pelas regiões do Mato Grosso do Sul, porque foi nessas bandas que ele conheceu a minha avó e repetindo uma história que está mais no imaginário do povo do que é uma realidade, também disse que a laçou no meio do mato como touro bravo.

Nunca soubemos ao certo o motivo. No entanto, meu avô fora expulso do exército e por anos se virou como meieiro em fazendas no interior do Estado de São Paulo. A bebida, porém, reavivava parte dessa memória gloriosa, que o permitia até mesmo, agora com minha avó morta, revelar o que todos sabiam e não ousavam falar: minha avó era uma indiona brava, a parte do brava os filhos e netos sofreram na pele, a índia foi apenas mais um segredo de família, que se quebra ao seu portador descer à terra. 

Enfim, com o cuidado de quem guarda um tesouro, meu avô tirava de uma pequena caixinha de sapatos, dessas de criança, uma nota de 50 mil guaranis. Era a prova que ele tinha que conhecera o Paraguai e que aprendera a língua falada pelos índios. Na verdade, não tenho certeza do valor da nota, na época não conhecia números, nem ao menos dinheiro. Então, passo a história como me foi contada, com todas suas imprecisões e ignorâncias.  

E com essa nota na mão, meu avô embrulhava a língua, falava por horas um idioma que nada entendíamos e naqueles momentos, aquele senhor cansado e bêbado, funcionário braçal da prefeitura de Palmital, se tornava importante para nós: nosso avô fala uma língua estrangeira, nosso avô falava guarani.

Outra prova, mas essa não da língua ou do Paraguai, era o enorme projétil de mosquetão que também habitava a caixinha de sapatos. Com esses dois instrumentos na mão, meu avô virava o maior contador de histórias que eu já vi e nunca entendi nada, afinal não sabia guarani. Hoje, mesmo que soubesse, não entenderia nada daquele delírio bêbado, pois nunca falou mais do que um português simples dos homens do interior. 

Anos depois, com a morte de meu avô, a caixinha foi desaparecendo aos poucos: primeiro a nota de 50 mil guaranis; em seguida o projétil, alguém falara para minha mãe que aquilo poderia explodir e ela com medo atirou-o na privada, daquelas de cordinha ainda e que o cano dava em uma enorme fossa no fundo do quintal.

Ao voltar de Asunción, deixei em Ciudad del Este todas as notas de guarani que tinha no bolso. Trouxe comigo livros de autores paraguaios, algumas amizades e um país real ou pelo menos mais palpável em minha mente. Por décadas, o Paraguai foi para mim uma nota de 50 mil guaranis e um projétil numa caixinha de sapatos. Mas, estive em Asunción, ao lado de Susy Delgado, reconciliando-me com meu passado, com meu Paraguai inventado, com minha infância perdida. Falando espanhol com meus irmãos latino-americanos, pagando a dívida com meu avô, entendendo uma ou outra palavra em guarani e encantado com uma literatura que me fez navegar pela ilha sem mar, por um mundo de histórias que me contou Susy Delgado. 

Aguyjevete, Susy!


  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...