À pequena flor do Quênia
A menina escondeu-se na sua carteira escolar. Ocultou-se nas trincheiras de seus dedos. Os livros pesavam como pedras em suas costas. Sabia que não teria uma segunda chance. Os olhos dos colegas a perseguiam como predadores que limavam suas presas no desprezo que sentiam por ela.
Ela quis escrever mas não pôde. Ainda não sabia ler. Sua dor só aumentava. Sabia que em poucos minutos teria de ler um texto que para ela era um verdadeiro enigma. As letras e palavras dançavam um ritmo macabro diante de seus olhos. Acenavam com o inferno. Dor e dilaceração corriam pelas veias da menina.
Havia no colégio de tapera os ares da morte. Nem na sala de aula estava livre. Sentia que a sombra tumular a perseguia desde a semana anterior. Por onde passava, sentia o hálito quente daquele ser disforme a atraí-la com as mãos. Se na rua havia estupradores, se na casa havia o pai e os tios lascivos por seu sexo, na escola havia o professor e o inferno das letras. Não sabia qual condenação pesava mais. Impossível sorrir.
Quis adoecer, ter febre, saltar do penhasco. Não fez nada disso. Foi à escola como quem vai para o matadouro. Vítima que precisa ser imolada. Ovelha negra que não serve ao sacrifício, mas que seria atirada ao suplício de mãos e dentes ávidos por devorá-la.
Passou nesses pensamentos até a hora do intervalo. O professor adiava a dor do fim em todos seus detalhes. Sabia como pressionar com os olhos, insinuar com as mãos. Retardar o sopro de vida que logo recolheria daquela menina, a qual nunca se dignou nem sequer de saber o nome. Vulto de gente. Negra como os demais, como o professor, mas de uma beleza bruta e irritante que sempre se negou ao alfabeto. Isso o professor jamais perdoou.
Comeu seu pedaço de mandioca com uma mistura escura que bebeu no pátio da escola como o condenado que tem direito à última refeição. Ao grito da bedel, caminhou a passos contados, como se quisesse caminhar ao contrário, como se desejasse que seus calcanhares a levassem para casa, onde poderia ver os olhos de mágoa da mãe no antigo retrato escondido debaixo do colchão entre suas míseras riquezas.
Nunca tão curto pedaço de terra pareceu tão longo à menina.
O professor esperava a jovem na porta da sala. Com um safanão arrancou-lhe as primeiras gotas de sangue que inundariam a sala em poucos minutos. O ouvido zumbiu, as carnes tremeram, sentiu o salgado da lágrima escorrer pelo canto da boca e sugou aquelas gotas como o melhor alimento do dia. Tudo girava à sua volta. Os amigos riam, pulavam bestializados, regidos pelas vociferações do professor.
Alguém com um pontapé a colocou em sua cadeira e lhe espalmou frente ao rosto o livro aberto. A história de Sherazade. Nem o mito salvou a menina.
O velho homem de dentes afiados como um lobo em fim de carreira se arreganharam e soltou a sentença:
-Caros alunos, se ela não conseguir ler, todos têm o direito de bater nessa insignificância até as mãos lhes doerem. Não sem que antes eu solte a primeira paga do castigo. Exijo para mim o primeiro golpe contra essa aberração do Quênia.
A menina nem chorava mais. Ergueu a cabeça em um gesto altivo, até ali nunca visto. Encarou seu algoz, limpou seu corpo de toda aquela maldita terra a que fora condenada a nascer. Teve nojo dos colegas, dos amiguinhos que há poucos dias pulavam corda com ela. Teve nojo de seus trapos nunca lavados porque a chuva não caíra desde quando havia atingido os cinco anos. Há cinco longos anos usava a mesma túnica.
Levantou sobre suas pernas de flamingo e alçou o voo da liberdade. A cada linha que engasgava nas letras, nas vírgulas, nas palavras que pulava, recebia a alforria deste mundo que nunca a desejou desde o ventre da mãe naquela noite de desavisos, quando seus pais não resistiram ao doce coito entre as canas e a terra.
A menina parada em meio à página que lhe girava como um carrossel de serpentes, sentiu novo golpe contra suas costas e a bofetada quente que lhe abriu um rio de sangue no canto da boca. Depois não viu mais nada, seu corpo recebia varadas, socos, pontapés em meio à gritaria insana dos amigos. Aos poucos não ouviu mais o som da vida, apenas um zumbido de abelhas africanas a ecoar em seus ouvidos. Logo sentiu em sua carne macerada pelos pontapés a sensação de doces carícias. Já não sentia dor.
Depois disso, perdeu os sentidos e sua memória foi limpa de toda a sujeira que essa terra lhe havia atirado ao rosto desde quando pisara neste mundo construído por palavras. Desejou apenas ouvir a meiga cantiga de quando fora embalada nos braços por sua mãe, uma mãe distante, refeita de imagens várias, que lhe doaram as pessoas com quem sua progenitora convivera antes da curta existência desta que agora se comprimia contra o chão como uma sola de borracha em dias de calor.
Aos poucos os gritos silenciaram. Não havia mais palavras, não havia mais leitura, apenas um corpo macerado em vermelho e negro no solo do Quênia. Por fim, voltara aos braços de seus antepassados, tão muda quanto à voz que lhe negaram na terra dos homens. Não era mais castigada pelas palavras, ela se voltara toda a seu ser e sua pele reluzia como um vestido de seda negra em noite de festa.
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