terça-feira, 14 de novembro de 2023

Père Lachaise

Ouvi em algum lugar que a cova ou a sepultura, se quiserem ser mais educados, é o fim de todos nós. A morte nos iguala, ricos ou pobres se veem diante do fato que se tornarão pó logo após os vermes terem roído suas carnes. Não à toa, Machado de Assis dedicou seu Memórias Póstumas ao primeiro verme que roeria suas carnes. 

Assunto mórbido assim duas semanas após o dia dos mortos parece algo pesado demais para ser ler. O problema é que sofro de tardâncias, demoro a processar as datas, as viagens, os eventos, vivo de memória e isso demanda tempo. 

O fato é que a morte é um tema universal. O homem se bate em torno da vida com um olho na morte ou na vida eterna. Sofremos de pressas, queremos viver tudo ao máximo no menor tempo possível. Logo esquecemos a indesejada das gentes e pedimos vida ao vento, ao sol, às fotografias, ao encarte que anuncia o próximo cruzeiro de verão.

Assim, buscando mais vida, em março fui para a França. Demorei-me na cidade de Lyon por um mês. Durante aquelas semanas, como todo bom viajante à terra da baguete e do vinho, fui a Paris. E lá se respira vida. Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Champs Élysées, Galeries Lafayette, Montmartre, Louvre, Orsay e, por que não, Père Lachaise.

Sim, deixei toda a luz das lojas, dos cafés, das galerias e fui dar uma espiada aos mortos de Paris. O cemitério fica no alto de uma colina. Cheguei tarde ao local. Entrei e fiquei por umas duas horas andando sem rumo pelas sepulturas, só a admirar aquilo que chamam de final da vida.

E posso dizer: a morte não iguala todo mundo. A cada sepultura uma estátua, uma homenagem, uma obra de arte. Uma coisa é ser enterrado numa carneira de cimento com uma cruz de metal e uma inscrição de perpétua, com um mísero retrato do que fomos em vida, outra é estar no Père Lachaise, sendo visto por inúmeros turistas que ainda dão alguma coisa por nossos ossos carcomidos pelo tempo. A morte tem suas vaidades e o cemitério é uma enorme celebração da vida.

Parece paradoxal, mas não é. Ali se celebra a vida, a importância daquilo que fomos enquanto ainda tínhamos a capacidade de abrir a boca. Até nos túmulos mais simples, uma homenagem, uma estátua da filha que morreu acompanhada de seu cachorro, um homem quase a flutuar no ar, anjos, esculturas, dando um adorno à morte. De Balzac ao mísero suicida. Podemos contemplar o fim da vida e o início da arte tumular, fúnebre. 

Père Lachaise é um cemitério que convida os vivos a se sentarem com os mortos. E, por isso, sentei-me, respirei o ar fúnebre daquelas sepulturas, observei as pessoas ávidas por acharem um famoso. Eu não, não cheguei a nenhum túmulo famoso, contemplei tão somente a morte em suas últimas instâncias agarrada à vida como o náufrago a um pedaço de madeira no meio do mar. Subi escadas, desci, contornei sepulturas, olhei datas, tentei decifrar o que prendeu tanto tempo alguns à vida, enquanto outros desceram à tumba em tão breve idade.

Logo esqueci o medo que estava em ficar fechado no cemitério e ter de ali dormir entre gente tão desconhecida e me pus como um bom turista a fazer selfies, fotografar túmulos desconhecidos, registrar o lugar para aquilo que a mente apagasse depois. 

Consegui sair pouco antes do fechamento. Tomei um metrô e segui em direção à Place de Italie, no oitavo arrondissement. Estava cansado e feliz. Estive com os mudos da terra, com aqueles que não podem mais se pronunciar. Meses depois, no Brasil, fico sabendo que o cemitério foi inaugurado para dar uma sepultura digna a todos os franceses, inclusive os pobres. Gostei ainda mais do local, ninguém nesta terra deve morrer sem ter direito a uma pedra que cubra seu caixão. 

Foi assim que celebrei na morte a vida e à noite fui para a Torre Eiffel comer um crepe com Nutella e olhar as luzes a anunciar uma Paris viva, indiferente ao seus mortos. Isto é já outra história...

Um comentário:

Loide Nascimento de Souza disse...

👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽
Paris é memorável! Uma cidade-arte! Por aqui, no Novo Mundo latino-americano, ainda vai demorar muito para que todos os mortos sejam enterrados de forma organizada. O que há, especialmente nos pequenos municípios, são novas sepulturas construídas em cima ossadas não identificadas, restos mortais extraviados, arquivos perdidos ou destruídos e ossários repletos de ossos sem nome. Mas a gente tem pouco mais de 500 anos. Um dia, chegaremos lá. Nada de morbidez! Só esperança!

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...