Nunca sabemos por que cargas d'água a memória puxa algum fio solto do novelo e nos leva a algum ponto do passado. O fato é que mal acordamos, pensamos no acontecido. Terá sido o cheiro do café, um comentário de facebook, uma rancor antigo, que julgávamos esquecido, um episódio banal como lavar as louças? A questão é que ali está a memória a girar com seus ponteiros diante de nossos olhos, avisando que é hora de lembrar.
Há pouco tempo, poderia ser no tempo do rei, ou do era uma vez, mas não é. Faz pouco tempo, no semestre que passou. (Maldita mania que nós professores adquirimos de dividir a vida em bimestres ou semestres). Estava com meus alunos começando um seminário - e aqui o gerúndio é verdadeiro - quando assoma pela porta da sala um rapaz alto, que se apresenta como Paul Cabannes, um francês, que de acordo com ele, não realizaria aquela invasão se fosse na França, os professores não o perdoariam. Mas um professor ali, um amigo seu talvez, disse que no Brasil não tem disso e que ele podia invadir minha aula, interromper alunos primeiro anistas, aterrorizados com a ideia de comentar um poema, para divulgar seu telefone para dar aulas vip de língua francesa.
Emprestou meu pincel atômico, o qual deixou aberto e sobre o suporte de apoio da lousa, divulgou seu curso e saiu sorridente e orgulhoso de sua falta de educação tão recentemente aprendida com seu novo amigo brasileiro, um candidato a professor universitário. Claro, seu sorriso denunciava que sentia orgulho de ser um europeu em meio a quase índios, negros, terceiro mundistas, que desgraçadamente - assim dizem os engenheiros - estão fazendo um curso de humanas.
Naquele momento lembrei-me de João Ubaldo e seu livro Viva o povo brasileiro!, e sonhei em ser canibal, fazer como aquele índio do romance que descobrira que a carne dos holandeses era mais adocicada que a dos franceses e prendê-lo. Dá-lo às meninas brasileiras afoitas por um estrangeiro, como se boca, olhos e carne tivesse alguma diferença no mundo todo. Mas não, sorri com a dentada de pré-avó macaca de Lobato e reiniciei com algum custo minha aula.
Mas, como a memória não pára, fiquei a pensar quem ensinara aquele francês a não ter educação no Brasil. Espanta-me como ensinamos facilmente o que não presta às pessoas e como elas aprendem rapidamente, afinal que ser humano não folga com uma mamata.
Rapidamente, a memória puxou mais outro fio solto do novelo e me transportou mais rápido que "De volta ao futuro" - as referências começam a ficar antigas - para um episódio de um diálogo bizarro tido em tom douto de quem acaba de entrar no doutorado e está deslumbrado com suas leituras. Fato compreensível, mas não perdoável. O sujeito, amigo do francês, agora que vocês já conhecem Paul, afirmava em alto e bom som que Cortázar e Borges eram franceses, pois é, pasmem hermanos, duas grandes vozes da América Latina, franceses. Para mim que dei aula de Literatura Hispânica soou à provocação ou à ignorância gritante. Não respondi e o sujeito saiu achando que havia arrasado comigo na discussão. Responda a um néscio e fique como ele, Salomão já dizia isso. Homem sábio, homem de muitas mulheres, terá inspirado nossos índios? Não sei e nunca vamos saber.
Mas, infelizmente, ainda somos aqueles velhos canibais, encantamo-nos com as escolas de línguas que contrabandeiam professores nativos, temos orgulho de falar aos nossos amigos: meu professor é nativo; vejam só quem diria isso um dia, o caminho inverteu. Hoje trazemos nativos para ensinar os nativos de Cabral. O pessoal se encanta com as mulheres da terra, com a caipirinha, a cerveja gelada, o forró e aprende a falta de educação nos primeiros dias.
Aula interrompida, vida que segue, mas que inveja de João Ubaldo. Viva o povo brasileiro!!! Viva Macunaíma, o herói de nossa gente! Viva Iracema, que se não trouxe o carnaval, deixou o cauim e a nudez do povo brasileiro.