sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Jesus no pé de goiaba

Nos últimos dias outra polêmica se acendeu na nomeação dos ministros do presidente eleito no Brasil. Para seu gabinete vários nomes foram chegando, até surgir o de Damares (deixando o preterido Magno Malta a comer goiabas, ops, a chupar os dedos), parece até nome de cantora evangélica, daquelas das antigas, mas tirando o fato de não ser cantora, ela também é evangélica e será a super mega power (parece uma das meninas super poderosas) ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que passa a incluir a FUNAI em suas atribuições. 

Fora o show de besteirol, que já é comum na política brasileira, desta vez o que mais chamou a atenção dos internautas foi uma declaração da futura ministra, ao assumir que encontrou Jesus na goiabeira. Afirmação de fé genuína, meio inocente até, que de testemunho, rapidamente virou piada nas redes sociais: memes, piadas, montagens de whatsapp. O fato é que a ministra experimentou um pouco do próprio veneno, do ódio e da intolerância que o partido ao qual ela se liga tem distribuído às pessoas.

Mas, qual o problema com as goiabas? Eu, particularmente, adoro goiabas, as vermelhas são ótimas, mas na minha infância, quando ainda se trepava nos pés de goiabas para conquistar a fruta mais bonita, as goiabas brancas também serviam quando o assunto era passar a tarde às sombras das árvores.

Lembro-me também de sempre ouvir que Jesus adorava figos, que chegara a secar uma figueira que não dera os figos que ele queria. Demorei anos até entender que era uma espécie de parábola, mas fiquei com pena da figueira por muito tempo. Até porque no galinheiro, que havia na casa de minha avó, tinha uma figueira e todo fim de ano eu ficava ali debaixo como um galo a ciscar, esperando os figos amadurecerem. 

Será que a futura ministra teve um momento de obnubilação brasílica? E quis substituir os figos pelas goiabas? Ou ela trepava também em goiabeiras para comer os frutos? Confesso que fiquei imaginando Jesus meio maroto, arregaçando a barra do seu manto e bem tranquilo sentar-se, assobiar um pouco e depois comer uma bela goiaba. 

Será que a ministra quis mudar a parábola bíblica e colocar uma goiabeira no texto? Será que ela quer ser a autora de um apócrifo novo texto bíblico em terras das, já quase no passado, reservas indígenas? Não sei. O fato é que Jesus em uma goiabeira rendeu inúmeros comentários, brincadeiras e o que não tinha ar de nenhuma seriedade (a nomeação dela como ministra), virou piada total. 

Cada um tem o direito de encontrar Jesus onde quiser. Até em uma goiabeira, em uma faixa de pedestres em uma rua movimentada, em um mendigo, que do alto de nossa arrogância, doamos uma moeda certos de estar comprando um terreninho no céu, nem que seja para construir uma meia água com os futuros irmãos e depois ter a chance de bater boca pelo lixo jogado na calçada ou discutir se Jesus pode trepar em uma goiabeira ou se é melhor ele voltar para debaixo da figueira. 

O problema é o contexto da citação e o bizarro do que é contado como se fosse anedota de infância. Jesus em um pé de goiaba, em uma goiabeira. Só o Brasil mesmo para produzir tantas frutas maravilhosas. Espero que a declaração abra os comércios de exportação de goiabas e quem sabe surjam romarias para visitar as pobres goiabeiras, que virarão santuários visitados por pessoas desesperadas para encontrar a salvação ou mesmo para comer as goiabas, que diga-se de passagem: são uma delícia; e que muita gente só conhece de prateleira de supermercados ou naquelas peneiras em cima de carriolas de pedreiros, que os vendedores usam para oferecer goiabas como frutas exóticas no centro das capitais do país.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Pirulito


Quero um pirulito assim
rosa, lindo, rosa pink.

Não, quero um pirulito lindo
laranja, hummmm...tô com fome,
fome de pirulitoooo...hummmm, azul.

Tive uma ideia: quero um pirulito amarelo
bem bonito, igual ao sol.
Pirulito com sucoooooo!!!!

Me dá um pirulito, papai,
um pirulito bem bonito,
um pirulito pretoooooo....
igual coca-cola.

Só tem pirulito azul, serve azul?
é da cor do céu...
hummm....tá bom...
quero um pirulito bem bonito
azul, nhame nhame
que delícia, pirulito azul
tô como fome de pirulitooooo....

Os olhos felizes e brilhantes
sorriem com a boca
e o pirulito é um universo
azul, amarelo, rosa,
rosa pink, bem bonito.

E o papai é o papai
mais lindo do mundo
porque ele tem a chave
do armário cheio de pirulitos
rosa pink e nada mais importa,
porque naquele momento
a vida se resume a um pirulito
e dois olhinhos felizes,
para quem o mundo
é um pirulito doce e colorido.








sábado, 8 de dezembro de 2018

El túnel

Parado frente al túnel negro, miraba hacia el infinito que los ojos podrían alcanzar. Había un juego de ladrillitos blancos, pintados a mano y viejos que hacían el techo algo húmedo y sin gracia. Pero, sabía que arriba, donde la gente pasaba en la calle, necia de la vida bajo los pies, también había un aislamiento inevitable.

Miró al reloj y vio que faltaban aún tres minutos para la llegada del próximo tren que lo llevaría de vuelta a la calle y a un aire un poco menos agobiante que este cielo húmedo de ladrillos. Pero una sensación agobiante dejaba el aire pesado y daba un tono antíguo a la vida. Qué lo esperaba del otro lado del río? Quién le daría la mano? No lo sabía, pero mecánicamente puso las manos dentro de los bolsillos del sobretodo. Paris lo esperaba indiferente a su figura.

Entró en el tren. Un pordiosero ocupaba un asiento con su bolso lleno de cosas viejas y maltrechas. Se veía solamente sus espaldas hecha un arco en dirección al suelo. Tampoco él ha notado el viajero mudo. Pero, él lo miraba en solidaridad andarilla, del viajero que es un doble, su hermano olvidado de otras vidas.

En algunos minutos ha percibido que el metro no paraba en ninguna parada. La gente que antes llenaba los asientos poco a poco iba humeándose y restaba sólo como una niebla de sus rostros. Estaba poniéndose ciego? O la gente nunca estuvo allí. Lo hecho es que nada más escuchaba, las bocas estaban cerradas y los ojos negros como el túnel.

De pronto el pordiosero se puso erecto, sus espaldas crecieron y él le miraba fijamente como se viera en un espejo, quizás un poco más joven, cosa de unos veinte años, su rostro. Él le dije: "lo conozco? Tengo la sensación de ya haber ocupado su cuerpo, pero no lo comprendo. Qué hace en este tren? Hace más de veinte años que nadie lo monta.

Él viajero lo contestó: Busco a la Catedral de Notre-Dame, caballero; - Pero, ésta no es la dirección correcta. No lo avisaron? - Y dónde debo bajar? - El tren no para en ninguna parada hace más de veinte años. Cuando entré acá era como usted, joven y bien vestido.

No es posible. El billete vale por una sola hora, nunca lo cobraron el trayecto de nuevo? - Creo que no me ha comprendido, caballero! Nadie monta en este tren hace veinte años, usted es el primero vivo que veo acá en este tiempo, llegué a pensar que yo había perdido el habla, pero ahora veo que no, pues hablo con usted, como si mi voz fuera la suya, me parece raro hasta el tono y el acento, estoy seguro que nos conocemos de largo tiempo. Pero, siéntese, hay muchos asientos libres. - No, muchas gracias, bajo en seguida, amigo.- El tren no lo baja más, la última vez que entré, hace más de veinte años, era joven como usted y había un pordiosero sentado en este asiento que hoy ocupo.

Sin percibir la broma que la vida o la muerte le aplicaba, el viajero miraba al espejo borrado del vidrio y empezaba a asemejarse al pordiosero, que ahora lo miraba pícaramente y ya no estaba tan sucio más. Su pelo se acortaba y la barba vieja había desaparecido. Está casi como el viajero y lo miraba fijamente, como si tomara prestado su rostro para él.

Poco a poco el viajero fue curvándose y cómo un autómata se sentó en el lugar del pordiosero, El ahora joven desconocido, le dejaba una moneda y decía "bajo ahora, mi parada es la próxima. Mucho gusto señor, es muy agradable, pero hace veinte años dejé a mi hija esperándome frente a la Catedral de Notre-Dame".

El viajero no comprendía nada, pero tampoco le faltaba fuerzas para erguirse y volar sobre el cuello de aquel picarón que le sonreía feliz de la broma. Pronto se acordó de Lazarillo y el ciego; "Para ser guía de ciego hay que saber un punto más que el diablo" y cómo un encarcelado bajó definitivamente sobre sus espaldas en el asiento.

El viajero fue despertado por una señora que lo decía: "Pardon, monsieur" creo que se ha dormido. Ella hablaba en francés, pero lo raro es que la comprendía  en español y esto también lo pareció un sueño. - Ya es la parada de la Cité, acá encuentra la Catedral de Notre-Dame. - Merci, madame, est très gentil. Bajó del tren y subió a la calle, pero había una sensación agobiante de no saber quién se había quedado en el tren y  quién había bajado. Pronto escuchó: Papá, papá y siguió hacia su hija como si nunca la perdiera, hace veinte años.




sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Uma lata de Coca-Cola


O que é uma lata de Coca Cola? Pergunto-me às 12h52min aqui na França? Penso em levá-la comigo, guardar mais que na memória o momento e colocá-la na bagagem de volta daqui a um ano. Mas, o que levaria comigo? O momento e o sentimento que envolvem a lata de Coca Cola teriam ficado para trás, nada mais diriam da sexta-feira chuvosa e fria que ainda é e que no futuro já terá sido esquecida. Não só ela, o sentimento do momento, do despertar que uma simples lata de Coca Cola pode produzir em nós.

Olho para a lata de Coca Cola. Há a estampa de dois jogadores da Seleção Francesa de Futebol. Embora seja novembro, ainda é o ano da Copa do Mundo e os franceses não se cansam de lembrar disso nas bandeiras que ficaram esquecidas nas janelas das casas, nos parapeitos, nas propagandas velhas que ainda não foram substituídas, nas figuras de um Mbappé sorridente que insiste em mostrar ao mundo os "Bleus". E agora, na lata de Coca Cola, ele está a me olhar, enquanto eu como um "Rosette", nada mais do que pão com salame. 

Penso comigo: a camiseta poderia ser amarela, poderia ser a seleção brasileira ali registrada na lata. Não é. A seleção francesa ocupa a estampa. Novamente ficamos para trás. Assim, não levo comigo a lata, guardo-a na minha memória. Há objetos que ficam sem sentido fora do local que foram produzidos, eles devem guardar seu espaço, sua origem e essa lata é francesa, pertence ao sentimento de vitória da Copa do Mundo e na minha estante, ela lembraria apenas a derrota, a minha derrota, que ainda eu vivia em felicidade naquela tarde,  e a saída do Brasil do torneio, diante uma Bélgica muito mais animada. 

O sorriso de Mbappé vai crescendo, enchendo a sala, engolindo-me em sua alegria de menino que ganhou um novo brinquedo. Deixo-me estar ali sentado, mastigando e olhando aquela lata como um troféu sobre a mesa. Vejo como essa lata tem sentido aqui na França, como ela é nacional, como ela veste as cores da seleção Francesa e sinto-me um pouco participante desta alegria, deste sorriso que insiste em me contagiar.

Não, a lata de Coca Cola não poderia correr o risco de parar em uma cooperativa de material reciclável no Brasil. Ela tem de ficar aqui. Ser enterrada no local que nasceu, ser recriada, vestir novas roupas, ser uma Coca Cola cheia de novo, esperando novos lábios a beijá-la. Por isso, não posso levar esta lata comigo, aqui é a casa dela e fica tão bonita vê-la assim como um troféu, que não ouso ultrajar sua nacionalidade. Não imponho a ela o exílio. 

Desisto de levá-la. Procuro a lata de lixo mais próxima e com certo cuidado a deposito no fundo do cesto, como se enterrasse a um ente querido ou a um amigo. Antes, porém, fotografo a lata em suas cores vermelhas tão conhecidas de todos os consumidores. Registro o momento para alguma necessidade que ainda desconfio não saber exatamente qual é.

É só uma lata, eu sei. Mas, o sentimento que me invade agora não é compartilhável, é único, íntimo. É meu momento de estrangeiro, de estudante, de profissional em licença para um Pós-Doutorado na França. Sinto-me um pouco Mbappé. Sem o sorriso dele, é claro. Não ganhei a Copa do Mundo, não recebi um troféu, não fiz a viagem sob os fogos da alegria dos vencedores. No entanto, estou aqui e este sentimento de irmandade com um Mbappé de lata, sorridente e menino é que me dá esperança de que o mundo é possível.

Recupero rapidamente a lata. Empunho-a como um jogador que venceu a Copa do Mundo e nessa contemplação também sou um pouco Mbappé, também sou um pouco vencedor e deixo que seu sorriso ilumine uma vez mais a sala nesta tarde chuvosa que nos avisa do inverno. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O peso do ar

Quando vou respirar um ar mais leve na vida?
Quando perceberei que o chumbo dos dias
é mera perspectiva que adoto diante
das inevitabilidades do cotidiano?

Cabe a mim saber o peso do ar que respiro,
abrir as janelas que estão fechadas
soltar o ar denso e podre dos pensamentos
que se acumulam no canto da mente.

O ar pode corroer, quando nos damos conta
ele acabou com as veias, com o pulmão,
secou as mãos e os lábios perderam o viço.

Peso o ar, sinto sua densidade, sua aspereza
e nele contemplo os dias lixando
minha materialidade, desgastando o verniz
que longamente lustrei ao longo dos anos.

Preciso filtrar o ar e com ele os dias
saber o que vale a pena
o que deixou a alma pequena
e reduziu o horizonte de meus olhos.

Quanto pode pesar o ar? Quanto deve pesar o ar?
O oxigênio tão necessário à vida
cobra seu peso em gramas, quilos, toneladas,
mas como pagamos aos poucos,
não percebemos que ele nos leva a casa e a vida.

Quanto pesa o ar, que derruba as folhas das árvores,
que vinca nossa pele como um bicho geográfico
que traz a poeira, que suja as narinas com a poluição
dos escapamentos dos carros e das indústrias?

Quanto pesa o ar, capaz de derrubar nosso semblante
marcar o rosto e as mãos?

Quanto pesa o ar que deixa o corpo lento
e faz a marcha dos dias se arrastar ao som
do tic tac incessante das horas?

Quanto pesa o ar?

Enquanto não me respondem,
enquanto alguém não me responde,
vou respirando esse ar, sentindo sua densidade
seu peso cobrado ao longo dos anos.

Meto a mão no bolso e não tenho com o que pagar.
Pago com o corpo o ar que respiro
e seu peso vai aliviando o meu peso,
fazendo com o que desça à terra
não seja mais que o leve peso de uma pluma
a desenhar no ar o último voo aprisionado
de quem sempre quis ter os pés no chão.








sábado, 17 de novembro de 2018

Moedas

Para que servem as moedas? Compras? Pagamentos de bilhetes de tramway? Esmolas? Comprar balas ou chicletes na cantina? Tomar aquele expresso de 0,80 cents de euros? Se tiver 1 euro, e com sorte, pode encontrar 300 gramas de chocolate ao leite no supermercado. Comprar pirulitos ou aquela baguetinha básica que os franceses adoram. Se comprar para assar em casa, pode levar duas e ainda te sobram 15 cents. Ah... temos também as moedas de 2 euros, elas compram mais coisas, mas deixem-nas por ora. As moedas servem para muitas coisas, além, é claro, de acabar com os moedeiros de nossas carteiras e entulhar os cantos dos armários com aquelas que são esquecidas às pressas ao se tirar as calças. 

Interessa-me, porém, outra questão. Por onde passam as moedas? Quem as pegou antes de mim? Por onde andaram? Por quais bolsos passaram? Quais as mãos sustiveram aquela moeda entre os dedos? Brincaram com elas, olharam-na ou simplesmente no gesto mecânico pagaram algo? Gosto de imaginar que as moedas viajam. Há alguns anos um amigo me deu 1 euro no Brasil e disse: para dar sorte, para quando fores à Europa. Achei bobagem e guardei  no porta-canetas, sempre à minha vista, aquela moeda sem valor real naquele momento. Eu a perdi, no entanto, cheguei à França.

Por que há pessoas que guardam moedas? Afeiçoam-se tanto a elas? Sempre que vou a museus, vejo coleções de particulares de moedas. Algumas com mais de duzentos anos e penso: nossa, elas viram muita gente nascer e muita gente morrer. Viram políticos ascenderem e com a mesma velocidade caírem; derrubaram alguns políticos também e foram trocadas por outras de maior valor.

As moedas nos cercam todos os dias. São valores menores, não são sonhadas, poucos ainda têm aquele porquinho rosa de cofre para deixar as economias. Nunca tive um porco, mas já tive uma lata. Nas épocas gordas do real, juntei quase 100 reais em alguns meses e paguei todos os pedágios e cafés de uma viagem que eu havia feito. Antes troquei as pobres numa padaria, o dono ficou super feliz com o troco para a semana. Vejam, as moedas nunca são valorizadas, sempre estão de passagem, são dadas como trocos, estão longe do glamour dos cheques especiais ou dos cartões de créditos internacionais.

Ninguém se arrisca por uma moeda. Se ela caí ao atravessar a faixa de pedestres, deixamos-na ali. Porém, presenciei quase mortes, nas faixas de pedestres de São Paulo, de garotos que deixaram seus bonés voarem da cabeça, pessoas derrubando seus celulares ou moças as suas bolsas. Mas, por uma moeda, quem se atira ao desconhecido do além? 

Moedas são seres resistentes como as baratas. Habitam cantos escondidos das casas, brechas de móveis, pés de cama, cantos de armários, bolsos de calças e casacos e ficam ali quietinhas, imunes ao tempo, sempre sendo moedas à espera de que novamente dedos as toquem e as coloquem em circulação. Moedas são seres silenciosos, até valem alguma coisa, até pagam pequenas contas, mas estão longe de serem desejadas. 

As moedas são andarilhas. Passam pelas mãos dos mendigos, de pedintes, que jamais te pedem 5 ou 10 euros para comer. Mas, uma "monnaie", "une pièce pour manger". E, no final das contas, as moedas vão alimentando muita gente ao longo do dia. Aqui na França dá até para aquela cervejinha e uma baguete em um dia mais generoso nos corações humanos. As moedas são andarilhas, dormem debaixo dos bancos e das árvores e um belo dia habitam nossas casas, nossas latas e moedeiros à espera de outras mãos, de outras carícias, de outros dedos. As moedas são promíscuas por natureza, se vendem fácil e se desapegam fácil também. 

Para mim, as moedas são os seres mais solidários do mundo. Elas habitam as mãos dos mendigos, seus chapéus, latas, garrafas, ocupam as caixinhas de ofertas das igrejas, estão nos bolsos dos bêbados para tomar aquele "esquenta peito", para beber aquele "querosene" e nos salvam ao final do dia, quando desesperados batemos as mãos nos bolsos e achamos aquele metal para pagar a volta para casa. Nunca agradecemos as moedas, talvez nem as olhemos, a não ser para sua cifra, mas quem se atenta à sua arte, suas musas e animais em extinção esquecidos em alto relevo em uma de suas faces?

Uma moeda é um valor de mercado. Compramos moedas estrangeiras para viagem, mas recebemos as notas de papel. As moedas estão por aí, à espera de uma mão, de alguns dedos e de mais uma viagem pelos cantos das cidades e dos países do mundo. Elas não precisam de malas, estão nas carteiras, nos bolsos e nas bolsas. Uma moeda sempre viaja e raramente é declarada como um valor trazido na bagagem, uma moeda é um imigrante capaz de habitar os cantos mais desconhecidos da humanidade. 


sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Permissões

Permita-me lhe dizer,
mas sem ressentimentos
que isso venha a causar
ou desilusões que possam
brotar e do nada
crescerem no jardim
que com tanto cuidado
cultivaste longe da verdade.

Permita-me lhe dizer;
que nem todas as pessoas
do mundo são felizes
nem todas acordam sorrindo
pela manhã, mesmo que haja sol,
nem todas as pessoas amam
e nem todas que amam
têm o amor ao seu lado.

Permita-me lhe dizer
que nem todos gostam de política
e alguns que gostam
nem por isso são melhores;
que nem todas as pessoas do mundo
são bonitas, mesmo que os livros
de autoajuda digam o contrário.

Permita-me lhe dizer
que nem todos os sonhos se realizam
que nem todas as mulheres gozam
que nem todos os homens têm ereção
nem por isso deixam de viver.

Permita-me lhe dizer
que nem todas as casas são grandes
e que outras por serem grandes
nem por isso trazem alguma felicidade.

Permita-me lhe dizer
que ter o emprego dos seus sonhos
pode não lhe trazer felicidade,
que comprar satisfaz nos primeiros
cinco minutos e que os próximos
cinco minutos serão de frustrações.

Permita-me lhe dizer
que nem todo sorriso é de alegria
que nem toda selfie é verdadeira
e que a casa do vizinho pode
ser um inferno
e que cortar a grama do seu jardim
pode ser algo entediante.

Permita-me lhe dizer
que nem toda transa é boa
que nem toda punheta é ruim
que tem punheta que é melhor
que transar o mês inteiro.

Mas sobretudo....
permita-me lhe dizer
que não precisa concordar comigo
que na verdade, poucos concordam
e nem assim o mundo
parou de girar um dia.

E por fim, permita-me lhe dizer
que nem todo the end
tem final feliz
que comédia romântica
é legal só para o cinema
que nem todo romance
é agradável de ler
nem por isso o desgostamos
e que com meia dúzia de palavras
um porco pode ser rei.

Mas, sobretudo, e daí sim, por fim,
permita-me lhe dizer
que não abra mão de ser feliz
nem que isso seja idiota para as pessoas.
Permita-se dizer aos outros
que na parede de sua sala
você dependura quantos quadros quiser
e que as fotos de seus porta-retratos
mudarão quantas vezes as pessoas
que nele habitam não mais servirem
para encher seus olhos
e abrir-lhe o sorriso de sua boca.

domingo, 11 de novembro de 2018

Os loucos de minha infância

Toda cidade no interior do Brasil tem seus loucos. Antigamente, andavam livres pelas ruas, correndo atrás de crianças, quebrando vidraças ou simplesmente cumprimentando as pessoas e tomando uma xícara de leite quente nas casas das vizinhas que tinham um coração melhor do que a maioria das pessoas. O fato é que crescíamos acostumados com essa presença. Aqueles adultos que não haviam crescido, que se vestiam de modo esquisito e não tinham vergonha de nada.

Na minha infância houve três loucos. Um deles era mais famoso na cidade, o segundo na vizinhança e a terceira, pois era uma louca, minha tia, habitava o ambiente doméstico quando comecei a perceber o mundo à minha volta. Lembro-me que as pessoas diziam que os loucos morriam cedo, tinham, de repente, um mau súbito e faleciam. Acredito que muitas famílias rezavam por isso todos os dias. Porém, muitos deles enterraram os pais, os irmãos e até os sobrinhos.

Minha tia é um desses casos de loucos longevos. Enterrou os pais, depois uma irmã e anos depois um irmão. Também já esteve no velório de pelo menos um sobrinho e alguns cunhados. Hoje mora com minha mãe e é uma respeitável louca de 63 anos. Que vigiem as línguas, pois ela é capaz de ver mais gente ir para cova antes dela, uma vez que outros dois tios meus estão com um pé mais para o lado de São Pedro do que para ver o jogo entre Corinthians e São Paulo. 

Embora em ordem invertida, já que o presente texto não pretende ser um primor acadêmico, tem o Tiba, um menino que nunca cresceu. Morríamos de medo dele com seu estilingue e mira perfeita. De boné para trás e a língua posta no canto da boca, Tiba acertava pedras nas canelas dos meninos que ousavam zombar dele.

Uma vez ele passou por nós e nos chamou para perto de uma árvore em frente à casa de Dona Brígida. Ali, esticou o estilingue e acertou a cachopa de marimbondos. Foi uma correria só de pernas, que na época ainda se davam o luxo de acertar os calcanhares nos traseiros e todos, loucos e não loucos, agachados atrás de um carro, rimos às gargalhadas. Depois levamos uma bronca igual.

Não sei o que aconteceu com Tiba de verdade. Disseram-me uma vez que ele havia morrido perto de seus cinquenta anos. Manteve dignamente seu papel de menino e visitador das vizinhas, que foram desaparecendo aos poucos. Algumas se foram antes dele, mas como ele pouco compreendia, simplesmente deixaram de fazer parte de suas visitas. 

Ser louco em uma cidade pequena é ser um patrimônio local. Todos respeitam os loucos, com exceção das crianças, que só o farão quando adultos. Tirando este leve desvio de caráter que todos nós tivemos um dia, a vida de um louco é pacífica nas pequenas cidades. Andam livres e protegidos por anjos das mais diversas origens, até pelos de mau caráter e valentões que impunham medo aos homens de sã consciência. 

O terceiro louco da cidade era o Jair. Jair louco, como era conhecido, era um louco livre. De pés descalços e falando sozinho, pitando bitucas de cigarros, Jair andava solto pelas ruas da cidadezinha. Sempre levava consigo um violão sem cordas, com o qual parava nas portas de botecos e cantava uma canção só sua; como paga, recebia um copo de cerveja ou cachaça.

Ao final do dia, a família de Jair louco o buscava pelas ruas e bares até encontrá-lo. Aí, dizem as línguas boas e más, a luta era insana para metê-lo debaixo de um chuveiro e lhe tirar a sujeira do dia. Acredito que com o tempo, a família se cansou e Jair andava quase os trinta dias do mês com a mesma calça esfarrapada, camiseta suja e vermelho como a terra. Ao final do mês, era apanhado novamente e logo todos o viam limpo, barbeado e fumando sua bituca de cigarro.

Meus pais e tios contavam que Jair tinha, na mocidade, um belo aspecto e que chegara a ser cobiçado pelas moças. Mas, ao ver sua amada casando-se com outro na Igreja Matriz da cidade, perdeu a cabeça e nunca mais foi o mesmo. Além disso, era rico. A família, no entanto, teve a sabedoria de deixá-lo livre a andar pela cidade e não o submeteu ao desumano tratamento dos hospícios da época.

Jair gozava de prestígio entre todos. Até entre os garotos, que no máximo pediam a ele, em tom de gozação, que tocasse seu violão. Executada a cantoria, Jair louco seguia seu rumo, andava quilômetros todos os dias, num solilóquio sem fim. Nunca o vi comer qualquer alimento que fosse;  seu paradeiro para mim hoje é desconhecido. 

Esses são os loucos de minha infância. Pessoas simples, honestas, de riso fácil e de ira fácil também. Mas, eram boas pessoas, incapazes de fazer mal a qualquer ser humano. Talvez uma pedrada, um xingamento ou um beliscão. Nada que ferisse a integridade física ou moral dos habitantes da cidade. Eles, os loucos, ainda existem, o problema é que muitos andam pintados por aí de gente honesta e até com poderes demais para mandar e desmandar.



sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Conversa Inevitável


Senti que minha mente entrava em um turbilhão de labirintos, enquanto os ouvidos zumbiam e o estômago parecia ter levado um soco. Havia uma bola nele que insistia em vir até a garganta e voltar. Os dedos tremiam, os pés buscavam um chão que aos poucos ia se tornando cada vez mais líquido. Eu olhava para quem estava à minha frente e disfarçava com um leve sorriso, quase automático de quem estava lendo uma piada ou vendo algum vídeo enviado pelos amigos.

No fundo eu me retorcia, era o inevitável, a conversa adiada por dias, que eu esperava, embora tivesse a esperança de que ela nunca ocorresse. Mas, sim, ela ocorreu e agora estava parado diante de um salão lotado por pessoas a me espiar como se todos pudessem ter lido o conteúdo que eu recebera.

Tanta dor não poderia durar mais tempo, nem esperar mais dias. Até o luto tem um fim. A dor era, no entanto, algo a que se segurar; uma âncora para o barco vazio e naufragado há dias, que um capitão solitário agarrava-se ao último pavilhão seco onde pudesse sentir os pés.

Havia outras conversas, outras tentativas, outros afastamentos. O retorno aliviava por algumas horas a dor e as certezas voltavam a crescer. O mundo tinha cores novamente. Podia-se abrir as janelas e ver o sol irritadiço a queimar-me a pele, a lembrar-me a cor um pouco desbotada pelo tempo fechado entre quatro paredes. Tomar o café da manhã não era mais um sacrifício e os olhares trocados entre dedos que roçavam os outros dedos a sustentar a xícara davam à manhã uma sensação de riso fácil e um perfume de primavera. 

A distância e o tempo corroem os corpos. Viver e reviver as lembranças começam a revirar no estômago e na boca fica um travo de amargor. Os corpos se pedem, desejam-se, buscam pelo calor que um dia os aqueceu. O amor preserva a alma, mas o corpo exige o corpo, a presença, o toque, a saliva, o visgo que torna a junção entre dois seres tão diferentes algo natural. Um corpo nunca está completo sem outro corpo, alguém retirou maldosamente uma parte que só o outro pode completar, ele tem a chave, a parte do quebra-cabeças que faltava e julgávamos perdido.

O corpo certo é como a poesia. Não o texto escrito e banal dos versos e a concretização miúda que resta nas palavras daquele enorme sentimento. Um corpo tem voz, cheiro, calor, texturas únicas, insubstituíveis. E sobre o corpo uivamos livres, indiferentes aos padrões aborrecedores da sociedade. Mas, um corpo é um corpo e ele precisa mais do que palavras para sobreviver.

Por isso, eu sabia que aquela conversa ocorreria. Era inevitável. Até o luto tem um fim. A dor da ausência pode amenizar com o silêncio. Há, porém, dentro de mim um lobo que ainda uiva, estranhamente lamenta algo, exige algo que as mãos desastradamente deixaram quebrar. Ouço os corvos baterem contra a janela e quando olho tenho a impressão que dentro de mim as asas fazem um alvoroço enorme.

Aceito a conversa, a fatalidade dela. Aceito o tempo. Embora eu não o veja, sei que ele tem de ser respeitado. Abrimos as portas quando nos cedem as chaves e momentaneamente estou sem elas. Claro, sei que deixei-as dependuradas por mais tempo do que deveria. E as chaves devem ser usadas para abrir as portas. Agora estou sem as chaves. Pelo menos elas ficaram guardadas e espero recebê-las novamente, habitar os espaços, mobiliar a casa, regar o jardim, ver as flores.

Olho para a xícara de café e para o salão. Não choro, não posso chorar. O corpo está desmoronando por dentro. Também evito levantar, as pernas podem falhar e as pessoas pensarem que envelheci antes do tempo. O sorriso se desfez em algum momento que não posso precisar direito, ao menos para mim posso evitar a mentira. Sei que se abrir o livro será um gesto puramente mecânico, mas para a pessoas basta ver ali um solitário leitor.

O gesto é interrompido. A moça avisa que precisa fechar o café, que todos já se foram. Ela trabalhou o dia todo e precisa descansar. Preciso sentir de volta minhas pernas e decididamente a garçonete nem precisa saber quem sou. Pago a conta, peço desculpas e caminho, caminho até os pés doerem e lembrar-me que é preciso regressar para o apartamento antes que me faltem condições para fazer o inevitável caminho da volta.

Chego calado. Dispo-me lentamente; encaminho-me para o banho, deixo a água escorrer sobre o corpo e mesmo com as mãos molhadas, verifico inúmeras vezes se a conversa realmente existiu. A data e a hora desmentem o sonho e vou para cama sem sono e talvez sem sonhos para os próximos meses. 


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Dois árabes e uma lembrança de Camus



Tu parles anglais? Tu parles français? Tu parle espagnol? Ouvi de repente o grito às minhas costas.

Ainda zonzo pelo zumbido em meus ouvidos, quase em forma de vociferações proferidas pelo mec, que agora me olhava duramente nos olhos, tentei organizar a situação. 

Outro jovem o acompanhava e eu vendo-os com uma sacola de compras do Carrefour, assim como quase todos os franceses, perguntava-me o que eu poderia haver feito. Repassei rapidamente as cenas anteriores e me dei conta de que olhávamos para a mesma torta de maçã na prateleira. Julgando-os, provavelmente franceses, na minha condição de estrangeiro havia cedido a vez a eles, então, reorganizava o cenário novamente à procura de alguma gafe.

Prontamente, o mec mais violento queria saber por que eu o havia olhado. Foi quando ele pareceu-me ser árabe, mas isso podia não ser uma constatação lógica, pois, eu mesmo fora confundido com árabe várias vezes naquela semana. 

O jovem era alto. Para piorar a situação, estava acompanhado por um rapaz que de dentro do seu mutismo, vigiava-me como um animal pronto para abater a caça. Olhei à minha volta e vi que as pessoas procuravam ignorar a cena e esquivavam-se pelos corredores como cobras entre as relvas.

Se não fosse pelo queimado da pele, muito parecida com a minha, poderia lembrar o jovem de mandíbulas de aço e cabelo loiro sujo que me cercara quando eu tinha meus doze anos. Eu estava orgulhoso de mim. Havia ido ao mato, encontrado a árvore ideal, cortado a madeira em forma de forquilha, limpado o tronco fino e deixado-o curar ao sol por alguns dias. Ao cabo deles, com tiras de câmara de ar de bicicletas, pedidas ao meu amigo que trabalhava na bicicletaria e com a tripa de mico em mãos, comprada com as economias das gorjetas de entrega do jornal, havia feito eu mesmo meu estilingue. Confeccionara com uma perna de calça jeans meu embornal e saí à caça. Maldito dia, à beira do rio, o jovem loiro e seu amigo, tomaram-me o estilingue sem qualquer resistência de minha parte. Era como se eu não acreditasse na cena. Simplesmente pegaram e saíram como se cobrassem uma dívida. Voltei para casa e jamais contei aos meus pais o ocorrido.

Vinte e quatro anos depois, em Lyon, na França, a cena quase se repetiria. Agora dentro de um Carrefou City, num final de sábado, era eu abordado de novo por dois jovens. Com a diferença que agora o mais velho era eu. Apalpei rapidamente o bolso de trás da calça, nada, verifiquei os bolsos do casaco e nada. Eles me olhavam intimidadoramente, como se ignorassem minhas intenções, talvez, de uma remota vingança jamais posta em prática. 

O peso do ar se tornava irrespirável, o trio que se formara na arena imaginária se provocava mudamente, como se fossem explodir os vidros a qualquer momento. Ninguém parecia ter a decisão de recuar um centímetro que fosse. Outros olhos miravam pelas frestas das prateleiras e voyeurs da batalha rezavam pelo jovem estrangeiro que a qualquer momento poderia jazer estatelado contra o chão.

Infelizmente, havia deixado meu passaporte no apartamento, afinal, duzentos metros me separavam do mercado, ao qual eu fora buscar uma garrafa de vinho para o fim da noite. Se me metesse em briga, teria dificuldades na delegacia e o fantasma de uma deportação prematura me assombrava. 

Resolvi encarar os dois friamente. Talvez, calmamente seja o melhor a dizer. Mas, estaquei à frente do dois e não, não fazia sol, nem havia uma lâmina de navalha nas mãos deles a brilhar contra o sol. Mesmo assim, lembrei-me de Camus e a longínqua leitura que eu havia feito de o Estrangeiro. Na época não passava dos vinte e poucos anos e li a história entre as idas a vindas do coletivo que me levava à universidade. Havia emprestado o livro da biblioteca e ele, por alguns dias, virou meu companheiro de viagem.

Quis matá-los. Não naquele momento, em que apenas queria livrar-me de um olho roxo ou uma represália da polícia, caso a oferta da outra face não fosse o suficiente e eu tivesse de me por em roupas de coragem e rolar inutilmente pelo solo do mercado; agora, em minha mente, convertido em arena de uma luta injusta. Vociferei no caminho, xinguei mentalmente, dei murros no ar  como um boxeador e ao entrar no apartamento bebi sem violência os primeiros goles de vinho rosé.

Voltei à cena e ao presente. Ainda era encarado pelos dois que não compreendiam o que eu sem vontade alguma murmurava em um francês ainda mais travado que dos primeiros dias da minha chegada a Lyon. Não podiam ver minhas mãos suadas e frias, afinal não estávamos de namorados ali. Acho que minha posição de estátua quase muda os irritava ainda mais.

O maior e mais irritado vociferava para ele mesmo. Entrou num jogo mental que eu também não compreendia, grunhia, passava as mãos pela cabeça a arrancar pequenas mechas de cabelo, enquanto seu amigo continuava impassível, quase estático ao lado dele. 

Do nada, o rapaz virou-me as costas. Se me xingou é impossível saber, porém, atirou todo o conteúdo da sacola contra o chão do mercado e como um ifrit, que surgira em uma nuvem de tempestade de areia, desapareceu do mercado, deixando à moça que trabalhava no local a tarefa de recolocar latas e  outros produtos de volta às prateleiras. 

Todos me olhavam como se eu houvesse feito algo. Julgavam-me, uma nuvem de olhos me recriminava e o público que não pagara mais que suas compras, deixava o local decepcionado. Talvez, pela luta que sanguinariamente desejavam assistir, talvez por me julgarem covarde. Jamais saberei.

Fiquei ainda algum tempo no mercado. Não mais estático. Havia controlado minhas pernas e num gingado entre o samba e a capoeira, zanzava pelo mercado em busca do vinho mais barato que me fosse digno. Ignorei a prateleira onde estava o vinho diversas vezes, no fundo queria ter a certeza de que eles não me esperavam do lado de fora do mercado.

Enfim, saí a passos acelerados e com olhar vigilante rumei para o apartamento que ficava na Rue Garibaldi. Por favor, não sorriam, guardem o julgamento para o silêncio de vossas maldosas línguas. No meio do caminho, para infelicidade maior, cruzei a Place des Martyrs de la Résistance, o que me pareceu uma ironia demasiado grotesca do destino. 


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Do amor e seus detratores

Quando bebi tuas lágrimas
não sabia que tragava com elas
tua alma, teu corpo, teus olhos,
que choravam aquela partida inevitável
contra todos os prognósticos da razão.
Ainda não compreendo bem
aquela noite, mas em teus braços
soube o amor e a vida necessários
para planos e sonhos de um futuro.
Não era possível, não podia ser possível
encontrar assim um amor
no meio do caminho e ter de deixá-lo.
Aferrei-me aos teus braços
como o náufrago que sabe ser o mar
grande demais para se sobreviver à deriva.
Ainda lembro, é inevitável a lembrança
de um tempo que nunca desejei se acabasse.
Quis romper os ponteiros, quebrar os segundos,
despedaçar os mostradores que anunciavam
o fim daquele abraço.
Abria um abismo em mim
e as horas me massacravam
torturavam meus ossos, aumentando dias
e meses de uma ausência que ainda julgo
uma trapaça do destino.
Pagaria meus pecados, faria novenas,
rezaria missas, iria ao candomblé
e falaria com os espíritos se soubesse
da dolorosa partida.
Tudo eu faria
[se cego o amor não me deixasse]
para não ter perdido um momento
da luz azul de teus olhos.
Neles vi o céu, enquanto as pontas
dos dedos escorregavam despercebidas
obrigando-me a partir sem rumo,
sem planos, somente viagem e bagagem.
Riam os críticos amargos em sua solidão,
chorem escondidos os que amam,
mas infelizes
são aqueles a quem nunca do amor
puderam ao menos experimentar
a dor da partida.
Reclamem das rimas,
da falta de sonoridade
da ausência de metáforas,
do tema inadequado;
essas são preocupações de quem não ama,
porque quem ama de nada servem
os bibelôs das aliterações vazias.
Esse é um grito de amor de dor e solidão
é um grito de desespero, um apelo
aos que viram e aos que não viram
aos que amaram e aos que não amaram,
porque quem ama
apela para tudo quanto é santo
faz simpatias, despachos, promessas,
quando a razão desaparece e resta
do amor só a dor de quem espera
por ele mesmo, o Amor,
essa tábua de salvação
para aqueles que acham ser a vida
sem graça demais longe da mão
de quem tem o poder
de nos suspender no caminho da vida,
dando a ilusão de que jamais
estaremos sós novamente
e que para a curva no caminho
nunca mais precisaremos lançar
o olhar em triste despedida.




segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Tempo de orações



Eu hoje me calo porque as orações são mudas.
O tempo das imprecações cessou
e só resta o triste e doloroso choro
daqueles que sabem enterrar seus mortos.
Catemos os cacos, colemos as xícaras de porcelana
para tomarmos o quente café ralo
vendo os trabalhadores, meio gado meio gente,
sombra do que restou da sua humanidade,
arrastarem seus sonhos, tendo colado às costas
os estômagos com fome de pasto e saber.
Caminharemos sombrios, taciturnos, rodeados
de uma nuvem negra de olhos 
que zumbem como abelhas
mas, do mel em nossas bocas, 
só teremos o gosto agudo
da ferroada a inchar os lábios balbuciantes.
Tristes sentaremos em frente à TV, 
e alimentaremos sonhos de liberdade hollywoodiana.
Dançarinos desengonçados que somos 
tentaremos sapatear o  último sucesso de La la land
enquanto o samba bate no couro de nossas nádegas,
lembrando que é carnaval e precisamos sorrir 
na marquês de Sapucaí ao som dos tambores
que regem nossas vidas.
Chorar para quê, aqui é o Brasil 
e o bispo Sardinha foi devorado
pelos supostos canibais de Colombo e companhia.
É hora de partir, 
às dezoito horas os sinos 
chamarão os crentes à oração 
e todos estarão mudos com uma vela
a queimar entre os dedos das mãos 
É preciso orar, é preciso rezar, 
nunca se sabe quando o noivo voltará
e àqueles que sem lume estiverem cochilando
não será dado nem pão, nem batata, 
nem um copo de leite morno,
antes de serem atirados para fora, 
onde há choro e ranger de dentes.
É tempo de orações, 
é tempo de gente muda, 
sem graça e sem dentes
para sorrir ao sol quando ele voltar.


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A casa da esquina

Quase todos os dias pela manhã passo por uma casa de dois andares. Ela fica em uma esquina, na cidade de Bron-France. Ela nada diz, está ali muda em sua estrutura de tijolos e telhas a observar o mundo.

Há inúmeras casas nesse mesmo caminho, inúmeros apartamentos, casas simples e ricas com jardins floridos na sua frente e alguém a varrer a calçada.

Mas, a casa da esquina desperta em mim particular interesse. Como vivem as pessoas que nela habitam? São jovens? Velhas? Têm cachorros ou gatos? Há netos que correm pelas escadas e pelo pátio da casa imune aos olhares visitantes, que se espicham desde à rua aos seus cantos e lacunas?

De quem é a casa? Qual o seu proprietário? A casa é antiga. Devem morar ali dois velhinhos que raramente são visitados pelos filhos. Talvez os netos se acheguem para tomar um copo de leite e tentar entender aquelas duas figuras estacionadas no tempo. 

A casa pode ser de um casal jovem. A porta de entrada é um risco no marco antigo da habitação. Fere o tempo com sua moldura nova e parece um erro na constituição antiga que se erige diante da rua. Ou a troca foi feita pelos filhos, que de tanto insistir com os pais substituíram a porta roída nos cantos e apodrecida nas beiradas.

Lembra-me uma casa colonial. Uma casa de fazenda. Imagino, se avós eu tivesse ainda, que poderiam ser de meus avós, que eu poderia entrar, tomar um café, conversar sobre o passado deles, ouvir histórias verdadeiras e sobretudo as inventadas. Se tivesse avós vivos, gostaria que a casa deles fosse como a casa de dois pisos, que habita uma esquina no interior da França.

A casa imaginada é sempre melhor do que a casa de material. Lembro-me ainda da vontade que tinha, quando crescesse, em comprar a casa que fora de meus avós. Anos depois passei em frente à casa. Ela nada tinha daquele ar de minha infância que me assombrava os sonhos, estava velha, decadente, com aquele círculo que já fora azul, exibido na fachada do imóvel. Sim, virou um imóvel, um amontoado de tijolos, areia, cal e telhado, que nada mais abrigava. Desfiz-me feliz daquela ideia e não perdi meu dinheiro investindo numa casa de nuvens.

Agora, anos mais tarde, quando a casa de meus avós nem sombra mais fazia em meus pensamentos, surge a casa da esquina, com suas escadas, seus muros baixos, suas janelas altas, silenciosa e imponente a criar em minha cabeça uma vida imaginada, uma xícara café com leite que nunca tomarei, um bolo quente com manteiga, que nunca tocará meus lábios.

Teria vivido nesta casa minha infância. Confortavelmente, tomaria meu banho, me sentaria à mesa e gritaria "mãe" como todas a crianças fazem quando algo sai errado. Cresceria um pouco mais, e também varreria a calçada, veria o dia se por trás das paredes do pátio dos fundos e pela manhã abriria seu breve portão para iniciar meu dia.

Esta casa, porém, é como a casa de meus avós, uma casa de sonhos. Ela não existe na minha realidade, não sei quem são seus proprietários, se vivem ali pessoas que a alugaram, emprestando suas memórias às paredes que ficarão para sempre a observar seus moradores.

É uma casa que eu habitaria. Moraria ali os dias de minha vida e quando a tarde chegasse, eu sem nada para fazer, sorriria ao fim do dia, acenaria discretamente ao sol que se põe em definitivo e cerraria sobre mim suas portas e janelas para a viagem inevitável de todos os vizinhos. Ouviria as últimas ave-marias e deitaria meu corpo leve sobre as abas do crepúsculo. 


sábado, 20 de outubro de 2018

Gente indigesta

Hoje acordei com vontade de me livrar de gente indigesta. Pessoas que se acham os melhores do mundo, que vivem como se precisássemos delas vinte e quatro horas e que estaremos disponíveis ao estalar de dedos.

Fiz uma limpa no meu whatsapp, apaguei alguns contatos, bloqueei outros e iniciei o lento processo de desprendimento e apagamento dessas pessoas. Aos poucos elas virarão pó, sombra e nada. Nem nomes serão, pois aos poucos me esquecerei dos nomes, dos rostos e de suas breves importâncias, que deixo aqui meu muito obrigado.

É um exercício, um exorcismo necessário para se viver bem. Cada um escolhe seus amigos e sabemos quando fomos deixados de lado. O mundo é vasto e cheio de pessoas, novos amigos, sinceros amigos que nos querem estender as mãos e realmente compartilhar bons dias, boas tardes e boas noites.

Feio é ficar com pessoas nos seus contatos que de nada servem. Se são pessoas com quem temos de trabalhar, basta usar os meios formais de convivência, do cinismo diário necessário a ocupar o mesmo espaço e os meios formais de comunicação, dentro das formalidades dos e-mails institucionais.

Este texto é a última lembrança delas, é a última referência a esses tristes fantasmas infelizes que deixo no caminho. Sei que ainda terei de me encontrar fisicamente com esses seres, com esses vultos num futuro breve, mas serão apenas corpos desprovidos de sentido, de alma, de vida ou sentido.

Dispenso o luto ou os velórios, cremei-os na cinza das horas, na liberdade de ver o sol nascer e se pôr belamente todos os dias. Há vários meios de morte ou de se matar alguém. Assim, mato esses fantasmas, gente sem nome, sem face, sem caráter, neste texto. É o meu adeus a eles, não minha morte, nem minha despedida. Mas sim, a morte deles que decreto e como os braços do coveiro que movem a pá no cemitério, jogo sobre eles a última pá de cal. 

Viver é deixar para trás uma série de corpos que mais nada significam e se eu me lembrar deles, meus amigos, meus inimigos, como dizia Bandeira, aqueles que ainda restam, lembrem-me de que eu nunca costumo visitar cemitérios, afinal, lá encontram-se apenas os ossos daquilo que fomos um dia.

Esse é o meu adeus, enterro-os no texto e abro as portas para novos amigos, para pessoas que valem a pena conhecer, viver e preencher os espaços que agora ficaram livres. Sejam bem-vindos, novos amigos, para vocês há espaço na mesa, uma boa taça de vinho e um mundo para contemplarmos livre das cadeias das formalidades burocráticas de um cotidiano miserável.


Não me peçam um grande tema
nem o pico da montanha
se vivemos sempre ao rés-do-chão.

Nem me peçam uma poesia grandiosa
se a vida é isso que vemos todos os dias.

Estou cansado de exercícios poéticos,
dessa academia de alienações
que nega o óbvio.

Ninguém toma poesia para se alegrar
tomamos vinho, pinga, cerveja,

ninguém faz um sarau sem bebidas
seria chato demais ouvir todas
aquelas declamações.

Comemos pizza, pipoca, carne
sozinhos ou com os amigos
(de preferência com os amigos)

e ali realizamos a poesia da vida
porque se dá sem preocupações estéticas
no primitivo que é a necessidade básica
da vida: comer, beber, foder e dormir.


Velho tema

A morte ou a vida?
A morte em vida?
Ou a vida em morte?
Qual a melhor opção?
Qual a menor dor?
A de viver ou a de morrer?
Afinal, o que é a vida
sem a morte?
Essa parceira perene
certa, exata em seus atos?
Acordamos e agradecemos a vida
agradecemos por estar vivos.
Mas, qual o medo da morte?
De que cesse a dor
ou a felicidade de estar vivo?
Será o medo de que a morte
seja mais medíocre do que a vida
em seus boletos, contas,
compromissos, contratos assinados,
de uma vida em parcelas
com cheiro de pão assado pela manhã
e manteiga a derreter sobre o miolo?
Do que teme o homem
o que tememos nós, desmascarados
da visão científica que nos coloca
como seres humanos?
Será que é o medo da igualdade
da morte e seu desnudamento?
Será que é o medo da morte
em expor nossos ossos
livres de psicanálises ou padrões
de beleza das revistas e blogs?
A morte, não há muito o que
dizer sobre ela,
assim como não há muito
o que se dizer sobre a vida.
Morte e vida, faces da mesma moeda
nunca sabemos quando se começa
a viver ou a morrer efetivamente.


quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Uma flor


Pensei em escrever algo
mas o que dizer em tempos
nos quais as palavras são insuficientes
em tempos surdos à razão
em tempos de intolerância.
Resolvi mandar uma flor
uma flor amarela
isolada no espaço urbano
dos transeuntes apressados
em seus delírios de morte.
Uma flor porque as palavras
não podem expressar
a mínima solidariedade humana.
Em um tempo mudo, cego,
as palavras são (in)dispensáveis.
Vivemos o tempo de pedras e paus
falar pode ser uma abstração
exageradamente humana.
Então, mando uma flor amarela
sem filtros ou luzes,
despudoradamente limpa
em seu protesto de nudez e de obscenidade.
Sim, porque a beleza é obscena
e a nudez da realidade crua demais
para quem com os olhos da censura
vê o mundo em uma tela escura.


quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O brilho da noite

As pernas cruzaram. Não com a agilidade de antes. Os pés trôpegos registrando no chão de paralelepípedos um x, acusaram o golpe. A traição. Mestre Moa nunca levara uma rasteira, nem a cabeçada em seu peito o jogara contra o chão. 

Mais dois passos, ainda na elegância do gingado ao qual se acostumara e Mestre Moa sentiu o sangue quente ferver-lhe nos olhos e no canto da boca. Ainda tentava reagir diante de tanta covardia. Porém, misturava-se ao negro da noite o agressor.

Brilhou pela terceira vez a lâmina do punhal contra a face da lua. E como se retardasse o passo ao encontro de seus ancestrais, Mestre Moa sentiu abrir-lhe um vão entre costelas. Não havia ainda se acostumado com a traição e sorria da fraqueza de seu oponente.

Tentava lembrar dos avisos dos Orixás, a última benção de seu Pai de Santo, do carinho de sua mãinha ainda a lhe estender a caneca de lata com o café ralo e quente nas manhãs antes de descer ao Pelourinho vender as fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim aos turistas.

Mestre Moa, sorriso branco, dentes escancarados à vida, descia com pernas ligeiras as ladeiras e os becos de Salvador. Agora sentia que as pernas lhe faltavam, os dentes tinham uma fina película vermelha das dores, das perdas que começaram há alguns séculos ao pisar a Bahia de todos os Santos.

Quarto golpe e Mestre Moa sente abrir-lhe nova boca em suas costas. O branco das costelas, ainda mostra o negro rijo que fora, palmeira que verga e luta contra o vento, contra o Judas novo que não fora malhado no sábado de aleluia. 

Não devia ter-lhe virado as costas. Procurava agora os olhos do agressor que lhe abria novo talho no  corpo. Justo ele, corpo fechado nas encruzilhadas, dera as costas ao destino fatídico. Mestre Moa ainda tentava ouvir a voz de seus ancestrais e estendia as mãos a pegar a cesta de doces das mãos de sua mãe a lhe sorrir.

Mestre Moa não vê mais a noite. Nova facada entra-lhe no corpo e um sol sorri-lhe quente e forte, banhando-lhe o rosto, trazendo tempos remotos de uma África perdida. Sente o seio quente e morno daquela que lhe dera os peitos nos primeiros dias, em que ainda sem dentes, dera seus primeiros sorrisos ao sol de Salvador.

Mestre Moa desce a ladeira, digno em seu talhe de negro forte, sedutor, serpente negra a enlaçar as negras, mulatas e brancas que lhe assanhavam o sangue nos primeiros dias da juventude.

O mestre capoeira vira-se ao receber nova facada. O agressor não pode entender o sorriso, o brilho ainda preso aos olhos como se tivesse visto ângoro. 

O agressor foge, derrama-se pelas ruas de Salvador covardemente e Mestre Moa entregue ao seu ritual de passagem, dança trôpego e ri, ri um riso de anos, de séculos, de alegrias de quem viu este mundo com dignidade e é recebido agora no centro de um terreiro, numa festa gigante de capoeiristas e Orixás a dançar indiferente ao destino marcado na ponta da faca.

Mestre Moa não sangra mais e ri, seu riso é branco como sua camisa branca de domingo e suas sandálias de couro costuradas por sua mãe. Mestre Moa é eterno e o agressor é só um covarde com um punhal na mão e a gargalhada de Mestre Moa a soar-lhe nos ouvidos pela noite negra de Salvador.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Saudades

Mãe...saudades...Mãe que ficou no portão, parada na sua mágoa de anos, ferida, rejeitada, sentindo a solidão de seu corpo franzino, suas pernas miúdas, seu olhar severo de enfrentar o tempo e seus contratempos. Sei que não vais ler esta carta, mas escrevo-a para mim, para dar-lhe a voz que o tempo não lhe permitiu, para acertar as contas, talvez em outro tempo, em outra época...

Ela ficou ali, com um adeus preso na garganta, como um nó difícil de engolir, parecendo pedra, esperando que o filho voltasse para se despedir, para dizer que não era bem o que gostaria de ter falado na última vez que o viu, para dar um tchau simplesmente, um breve dia que fosse, para olhá-lo nos olhos, perdoar a viagem mais longa que faria, justo agora, às portas dos sessenta anos, esperando ter todos os filhos à sua volta, ficava-lhe aquele adeus interrompido e outra mágoa, esta talvez maior do que aquela outra de há vinte anos, quando o filho saíra de casa e fora trabalhar longe.

Mãe do interior, seca de cumprimentos, econômica nas expressões que dizem respeito ao amor. Por dentro, porém, amava longamente. Imaginava-se abraçando, beijando, acolhendo os filhos, mas, quando chegava o momento, a ocasião, os braços encurtavam, as mãos fechavam punho cerrado, os olhos embaçavam e fechava-se num mutismo de décadas, de mágoas e reflexões que a levavam para longe dali. O movimento tornava-se mecânico, como de um autômato, e recebia as visitas antes tão esperadas e agora, presentes, como invasores que ocupavam-lhe um espaço a ser retomado.

Dormi à tarde e acordei com esta saudade de dias, de horas e minutos, misturada com outra saudade, sem saber ao certo qual doía mais no fundo do peito. Justo eu que me esforcei para abrir os braços, dar os beijos necessários fiquei com os adeuses entalados, interditos, econômicos. Outras pernas também ficaram pelo caminho. A cena, porém, era outra e enquadrada pela janela de um carro, cheia de promessas de um até breve, de um volto logo, que aqueles olhos ficaram ali encastelados à espera do regresso.

É como se de modos diferentes, os gestos se misturassem, um corpo entrasse no outro, um pedra se chocasse contra as outra e nesses estilhaços, os cacos fossem o reflexo de meus olhos, nos olhos de minha mãe, em outros olhos, em um espelho infinito de reflexos e reflexões que me prendiam à cama, enquanto meu olhar contemplava o teto branco.

Ela viajou pouco. Presa por anos a um homem que a humilhava, que lhe partiu os últimos dentes ainda na gravidez do primogênito, esperou pacientemente que ele morresse. O velho, nem tão velho assim como a expressão parece denotar, morreu aos quarenta anos. Abriu as portas do mundo para todos de seu feudo, mas não ao ponto de que alguns reconhecessem na porta aberta, o caminho para trilhar. Pássaro quando nasce preso desconhece das asas o mundo que pode voar. Cedo volta para a gaiola e ignora a porta aberta. É necessário que lhe ponha todos os dias o alpiste e a água para que não morra.

Fiz meus caminhos, deixei mágoas, tristezas, incompreensões. Minha primeira partida foi o leito dispensado à morte de um pai violento e incompreensível.

Agora isso, acordo com o retrato de minha mãe imaginado em minha mente. Minha mãe parada no portão, que eu havia pintado de cinza, com rolinho de espuma, mesmo após anos de falta de prática. O sol torra-lhe a cabeça, o cérebro em brasas, as mãos na cintura, inconformada com a falta do adeus. No desabafo do telefone dissera tudo: acusara-me de dureza, insensibilidade, frieza. Não entendia bem por que ela dissera tudo aquilo. Porém, a voz denunciava que seu ventre secava em dores e mágoas e era preciso, em caso de uma viagem inesperada, em caso de ter de deixar a foto do portão vazia, desabafar com este mundo suas dores.

É tarde? Ou é cedo? Perco-me nos fuso-horários e no tempo em que cada um de nós se encontra. Escrevo e sei que a carta não será enviada. É um exercício de memória, de lembrança, de exorcismo de dores, um esforço para que o passado não se apague, não se perca em meio  aos espinhos das plantas que rasgam minhas pernas pelo caminho árido. 

Sei que tem esta saudade, esse tempo interrompido, esta culpa calada. Em descompasso nos encontramos; passado e futuro, faces da mesma moeda que não podem se encontrar, unidas e separadas pelas paredes de um tempo e de uma materialidade inevitável de que se constroem os mundos e as relações, passado e futuro, irmãos siameses, colados pelas costas sem poder se olhar nos olhos, sempre partindo, mas carregando sobre as costas a trouxa da saudade.

Mãe....a mãe ficou lá...cuidando da tia, trocando-lhe as fraldas, ouvindo suas loucuras sussurradas ao invisível de outra mágoa desconhecida, tecida entre banhos intermitentes, como se lavasse uma culpa que neste mundo nunca pôde compreender. Os silêncios se confundem, as raivas de misturam e a sobriedade não encontra espaço nesta incompreensão que é a saudade. 





domingo, 30 de setembro de 2018

De barbeiros e barbearias

Quando era adolescente, meu irmão e eu começamos a frequentar os barbeiros. Eram onde deviam ir os meninos, os "hominhos" dos quais os pais(quero dizer os homens) se orgulhavam em ter. Abriam a boca e diziam: meu filho é homem. E filho homem de respeito não ia à cabeleireira da mamãe, ia aos barbeiros.

Lembro-me de um alguns deles: José Sebrian Gomes, que depois virou meu patrão na entrega de jornal; havia Josuel, que amolava a navalha numa tira de couro e fumava o tempo todo, enquanto cortava o cabelo e conversava sobre a vida, independente da idade do cliente. Meu irmão, por exemplo, cresceu cortando cabelo no Josuel e cortou com ele até que o barbeiro morreu. 

Em geral, havia o quadro do time do coração do barbeiro, um cinzeiro para ele e os clientes apagarem as bitucas, uma cadeira daquelas bem antigas, algumas revistas velhas da mulher e um rádio AM para os mais velhos debaterem as notícias do dia. Nada de horário marcado, agenda, ou telefonemas, cortava o cabelo quem chegasse primeiro, havia fila, alguns permaneciam nela, outros ia ao bar "tomar uma" e voltavam depois, Sei que de quinta-feira em diante, a barbearia era lotada, pois o fim de semana estava chegando e era necessário estar bonito, cabelo cortado, barba aparada, pelos do nariz cortados.

O método era o tradicional, após cortar o cabelo com a tesoura, auxiliado por um pente fino, o barbeiro se advogava no máximo o direito a usar uma tesoura dentada para repicar o cabelo dos meninos, homem cortava no tradicional. Para finalizar uma mão bem cheia de álcool para matar os germes e cicatrizar os pequenos cortes deixados pelas navalhas.

Lembro-me até hoje das primeiras vezes que fui ao salão de cabeleireiro "unissex", morrendo de medo que meu barbeiro de confiança visse ou algum amigo meu viesse a tirar sarro. Entrava desconfiado e para tirar a dúvida da placa que dizia "unissex", perguntava se cortava cabelo de homem. Eu na minha hombridade dos 16 anos, morria de medo de ser visto como um fresco. O certo é que gostei do corte, do banho dado no cabelo após o término e o "creminho" que o cabeleireiro passava. Enfim, como um membro do partido comunista que trai seus amigos, abandonei para sempre as barbearias.

O tempo passou, surgiram salões para todos os lados, cursos profissionalizantes formando novos cabeleireiros e os barbeiros quase sumiram. Só não desaparecem de todo por causa de seus antigos clientes e sua fidelidade aos seus dignos barbeiros. Pensei que era o fim de mais uma profissão no mundo. Eu já não fazia botas no sapateiro, nem mandava por salto ou meia sola no meu sapato velho, ia à loja e pegava um novo, mesmo que barato.

Para meu espanto, usando aqui a linguagem popular do "raiz" e do "nutella", surgiram os novos rapazes, metro sexuais, que passam perfumes, usam cremes e gel para cabelo e se orgulham de sua vaidade. Para eles surgiram as barbearias gourmets. Será que comem algo lá? E não é que comem. Há cervejas, bebidas variadas e algum lanchinho, agora com hora marcada, cabeleireiro agendado, ar condicionado, sofá confortável e cadeira de salão chique dos bairros caros das cidades e um cabeleireiro que faz topetinhos até nos marmanjos de 40 anos.

Sentem-se homens, machos alfas, na moda, mas se se negam a ir ao salão de cabeleireiro. Para eles surgiram as babearias com canal pago para ver os jogos da Champions League, ver UFC e o espaço é decorado como se fosse um clube de futebol. Dizem que retomaram a tradição dos avós, mas se negam a enfrentar uma navalha e aquele velho e bom barbeiro, que com o tempo ficava com as costas curvadas, fumava e usava um lenço de pano tirado do bolso traseiro para enxugar o suor.

Restam poucas barbearias "raízes" pelas cidades. Mas, ainda é possível encontrá-las, ouvir a rádio AM, discutir o futebol local e ver a segunda divisão dos campeonatos, Jogar até mesmo um truco enquanto espera a sua vez de cortar o cabelo. Ali o corte não passa de 15 reais e o cabelo sai cortado do mesmo modo que nas barbearias gourmets, que cobram 60 reais, que imitam o passado e apresentam ao mundo o novo homem da sociedade. 

Há ainda alguns barbeiros. Eles olham o passado, alisam o velho pôster de campeão brasileiro de seu time do coração, afiam as navalhas e sentem-se como museus da nova sociedade, na qual se multiplicam as barbearias gourmets para uma burguesia cada vez mais ávida em consumir sem respeito ao passado e sem saber que regridem pouco a pouco ao mesmo passado que condenam, preconceituosos, disfarçados em suas calças jeans e suas barbas bem aparadas de uma heterossexualidade limitada. 

sábado, 29 de setembro de 2018

Paraná-Paris


Em 2012 quando mudei para a cidade de Maringá, no estado do Paraná aconteceram muitos episódios curiosos. Todos demonstravam o desconhecimento que as pessoas têm em relação ao território paranaense. A primeira coisa que ouvi foi: “lá é muito frio, você vai congelar”; “já comprou blusas?” “Você vai ficar sem ver o jogo do seu time preferido, eles não gostam de paulistas” e por aí vai.

Além disso, descobri que para o mundo lá fora, no qual eu ainda estava, mas em fase de transição: Maringá não existia, assim como Londrina, Ponta Grossa, Cornélio Procópio, Santa Mariana, Matinhos, Paranavaí, Cascavel, Foz do Iguaçu, Colombo, Toledo e muitas outras cidades. Eu estava de mudança para o Paraná, este estado desconhecido por muitos, ignorados por outros e lembrado, muitas vezes, pelo fato de os Curitibanos serem fechados demais.

Mas, a rigor, não moro em Maringá, moro no Paraná. Minha mãe mesmo quando perguntada onde está o filho mais novo, responde: “ah... agora ele mora no Paraná”. Para piorar a situação, estou eu de passeio por terras paulistas e ao assistir o jornal Nacional, o Hoje, a Band, a Record, todos os repórteres se referem ao Paraná: prefeito é preso no Paraná, advogada é morta pelo marido no Paraná, acidente na 376 mata 20 no Paraná. “Ué, Paraná não tem cidades?

Já instalado em Maringá, nada melhor do que ver os jornais locais e conhecer a cultura do estado. Logo descubro um jornalista local, pronto para ascender a repórter de rede nacional pela Globo. Mas, ainda no seu sabor local, chamava-se Wilson Cereja, veja que belo o sobrenome: Cereja. Cereja, porém, é fruta demais para o jornal de âmbito nacional e em pouco tempo, temos o jornalista, imponente, com seu microfone em mãos com mais uma matéria, produzida pelo agora, então, Wilson Kirsche.

Ainda bem que tem o “Plug” todos os sábados e com uma simpática repórter paranaense (risos...) apresentando as cidades do Estado para nós. Amei conhecer lanches, rios, cachoeiras, as bebidas, as capelas, as praças, os imigrantes que construíram esse estado chamado Paraná.

Vejo que me alongo demais e ainda não expliquei por que Paraná-Paris. Logo ao chegar à França, mais propriamente à cidade de Lyon, algumas pessoas voltaram a falar comigo e outras se afastaram também. Algo não mudou: quando digo que estou na França, vem logo a pergunta: você está em Paris. Ao responder Lyon, o interesse diminui e o diálogo encurta ou recebo um conselho de amigo: não deixe de conhecer Paris, quase dado ao pé do ouvido.

Percebi, então, que não se vem à França, vem-se a Paris, o que foge disso não interessa às pessoas. Claro, em algum momento irei a Paris e aí minha viagem ganhará novos contornos e, finalmente, terei feito a conexão Paraná-Paris tão esperada e sonhada pelas pessoas. Viva o Paraná, viva a França. O “Plug” que me aguarde.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Ah aquele avanço....


Aqui na França, pelo menos em Lyon, Auvergne-Rhône-Alpes, tem um desodorante chamado Cien em todos os mercados. Não custa mais que um euro e é cheirosinho. Supre as necessidades diárias de alguém que sue, pegue um tramway, um metrô ou um bus. Baratinho e bom, nem precisa de promoção. O Rexona, Dove ou Axe em promoção no Carrefour custam em torno de 3 euros. Ah...e antes que digam: é espanhol, já adianto minha pesquisa feita no Google maps, é feito em Stolberg e não é na Espanha.
Não quero, porém, me perder em preços e em mapas que nada provam. Após o banho, benditas as águas que nos levam às reflexões, resolvi ler o rótulo e vi “parfum vitalisant”, dura 24 horas. Confesso que nunca entendi bem isso. O Axe, Rexona, Dove ou Nívea Man, dizem que duram por 48 horas. Chego a ter medo só de imaginar que alguém possa ficar 48 horas sem banho, só na base do “tchitchi” do aerossol. Mas, vá lá, há pessoas e pessoas pelo mundo.
Neste momento, deu aquele estalo, as portas do passado se abriram na memória e me lembrei da época em que eu assistia aos Trapalhões na Globo aos domingos. Aquele original ainda, com Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Nos intervalos havia propagandas de diversos produtos. Uma delas era de Xuxa nova e pernuda, que vivia passando o creme hidratante da Monange, que acredito eu, ela corria tirar aquilo do corpo após a gravação. Ainda não entendo como minha mãe e minhas tias usavam aquilo. Um dia cheirei o creme e quase tive um desmaio, creme para afastar qualquer love à noite.
Havia também as propagandas que me interessavam. Já que a Xuxa era a rainha dos baixinhos e vê-la naquela posição sensual, às 19h00, dava a sensação de estar espiando minha mãe e não tenho vocação para relações incestuosas.
Lembro-me das propagandas dos desodorantes masculinos. Pensava comigo: Ah...quando eu começar a trabalhar vou ao mercado comprar um desses. Tomar um banho, ficar cheiroso e sair para ver as meninas que giravam feito carrossel em volta da pequena praça de Palmital.
Uma das propagandas me chamava a atenção e anos mais tarde virou motivo de piadas dos rapazes de minha geração nas mesas de bar: “Avanço, você passa e elas avançam”. Lembro bem do slogan e tinha um Vitor Fasano que passava o perfume e sem camisa, na posição clássica do macho alfa da época, se apoiava com o braço no batente da porta, tendo uma bela fêmea que vinha ser acolhida debaixo de seu braço. Anos depois, já maior, passei aquilo nas axilas e Gzuis dos pobres moços, aquilo só poderia atrair as moscas. Também com aquele tubo marrom e preto e com as letras garrafais escrito “Avanço” não podia ser lá aquelas coisas. Mais uma ilusão da infância pelo ralo ou pelas axilas, porque como coçava aquilo.
Tive outras decepções na vida. Havia outra propaganda mais imponente. Très de Marchand, tubo verde, com duas espadas cruzadas, ao modo de um filme de espadachim. Pensei, este deve ser bom e nos meus primeiros salários de entregador de jornal, nas pequenas madrugadas palmitalense, e de servente pedreiro ao longo do dia, ao final de semana, com o cheque em mãos fui ao supermercado com minha mãe. Mais um homem em casa, o salário da semana ia para comprar o alimento que nos ajudaria a sobreviver. Estávamos melhor nesta época, juntávamos o salário de meu irmão e o meu e vinha uma compra razoável, sobrando para eu comprar, então, meu sonhado perfume da propaganda do intervalo dos Trapalhões.
Eu sabia até onde era a prateleira em que ficava o imponente “Très de Marchand”. Sem titubear apanhei-o avidamente antes que outra necessidade surgisse eu o atirei no pequeno carrinho de compras. Na época não tinha essas coisas de aerosol, os tubos de perfume eram de plástico e tinha um canudinho interno que levam à tampinha com um pequeno furo que servia para, literalmente, esguichar o perfume nas axilas e, é claro, pelo peito, pescoço e onde mais julgasse necessário para ficar cheiroso, não tinha esse negócio de 15 cm longe das axilas e, em caso de irritação, suspenda o uso.
Era sábado, à noitinha tomei meu banho penteei meus cabelos e antes de enfiar a camiseta por dentro da calça e apertar o cinto para parecer um homenzinho, esguichei o poderoso Très de Marchand”. Que decepção! Era pior que o Avanço, cheiro forte, daqueles de dar dor de cabeça.  Como sairia de casa com aquele cheiro? Quase chorei; emburrei e fui ver a Globo, na nossa TV ainda em preto e branco. Para piorar, o luxo de um novo desodorante só seria permitido no mês seguinte. Não me lembro bem, mas acho que parei de ver os Trapalhões, pelo menos na hora das propagandas.
Como no mundo não há mal que dure para sempre, alguns anos mais tarde fui salvo pelo Axe, Axe Native, ainda me lembro o nome. Parecia perfume e eu podia usar sempre. Já ganhava mais e se o tubo acabava em quinze dias eu comprava outro. Às vezes na compra eu já trazia dois. Porém, não há bem que dure a vida toda também, a empresa tirou a fragrância de linha. Percorri supermercados, farmácias de amigos, comprei o que havia de resto no estoque e usava menos para durar mais, sabendo que em breve o cheiro do Axe Native seria apenas uma lembrança.
Tudo bem, anos depois eu usava Yves Saint Laurent, Bylgari, Dior, Paco Rabanne, mas guardo na memória ainda os primeiros desodorantes e suas decepções, que só não são maiores porque há pouco surgiu uma propaganda que me faz rir sempre e pensar quais os garotos cairão na mesma armadilha que eu um dia caí. Old Spice, o único “carregado com partículas de cabra macho”. Opa, peraí, que história é essa. Vou passar um Old Spice e ter partículas de macho percorrendo meu corpo o dia todo? Não, muito obrigado. Acho que a própria empresa percebeu a mancada e substituiu o amado Malvino Salvador das moçoilas pelo pai do Cris, do “Todo mundo Odeia o Cris”, o ator até tem nome, mas depois de ser o pai do Cris, ele sempre ficará em nossa memória. Pelo menos, a propaganda é bem-humorada e acredito, em breve, falirá a empresa ou ela retirará o produto do mercado.
Ah e antes que alguma empresa resolva processar o pobre consumidor aqui, já adianto: não tenho dinheiro no banco, não tenho carro e nem moto. Então, se quiserem, podem penhorar minhas axilas, elas foram bastante maltratadas ao longo da vida.




quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Meu antigo Lorenzetti


Sempre fui um sujeito que gostou de se levantar antes dos horários dos compromissos para tomar meu banho. Nada melhor que aquele banho cedo, demorado, a água escorrendo pelo corpo, desculpem-me os ecologistas de plantão, horrorizados neste momento, mas um bom banho, um banho de patrão, e olha que nem precisa dos sais na banheira, é uma maravilha. Às vezes, quando a água escorre pelo meu corpo e sinto aquele calor, lamento o dia em que tiver de morrer e não puder mais ter essa sensação do corpo limpo. Nessas horas, lembro-me de Deus e até faço uma pequena prece, meio envergonhado de ter esquecido do patrão mor por tantos dias.
Mas nem tudo são sais, melhor rosas, como dizem na linguagem popular. Todo mundo te enche a cabeça que banho de chuveiro comum não presta, que eu deveria jogar fora aquele Lorenzetti e que não ouse comprar um Corona, que eu coloque um aquecedor no apartamento para ter água quente nas torneiras e, é claro, no chuveiro, para tomar aquele banho de hotel, no qual desperdiçamos água e tomamos um banho de horas, já que estamos pagando....
Ninguém te avisa, porém, que o relógio deve despertar antes. Ao entrar no box, meio apressado, querendo aquele banhinho digno, pelo menos de 10 minutos, para sentir as ideias fluírem e descerem pelo ralo em seguida, para fazer uma reflexão sobre a vida, amar os amigos, as antigas namoradas e odiar os inimigos, ensaiar tudo o que vamos jogar na cara deles, vira quase uma odisseia.
Primeiro a água escorre por quase cinco minutos, enquanto você espera que ela esquente e poderiam ter sido cinco minutos de fantasias, aquela dosinha diária de cachaça que o mestre Candido nos ensinou a fazer. A luta se torna mais ferrenha, aos primeiros vapores que sobem pelos ares anunciando a água quente, entramos rapidamente debaixo da ducha e nessa hora tenho dó dos porquinhos sendo pelados, porque a sensação é esta: a água está quente demais e somos obrigados aos saltos a fugir para o canto do box, acuados pelo furor da modernidade.
Nova luta. Toalha enrolada no braço para evitar as queimaduras, bye bye tolha seca para depois do banho e iniciamos os ensaios dos giros das torneiras. Abre-se o lado frio e a água esfria demais, não dá para refletir assim. Viramos um pouco mais e a imagem dos porcos assassinados voltam à minha mente ou se preferirem à minha pele. Vira para cá, vira para lá, o tempo do banho escoando pelo ralo das horas, acertamos algo no meio termo e nada pior que o meio termo, é igual café morno, chá frio, meia paixão, é igual a incerteza se a pessoa do encontro da noite passada vai te mandar um whatsapp ou não. Enfim, a água entra num processo diplomático do nem tão quente e nem tão frio te dando tempo para um banho de operário, com hora marcada na parada de ônibus e cartão de ponto a descontar seu atraso.
O banho se torna nossa primeira decepção do dia. A vontade de ligar para a mulher do amigo e mandá-la às favas, por ficar enchendo as paciências e louvando as benesses do banho com aquecedor vem-me à mente. Respiro fundo, visto minhas calças, vou à cozinha, esquento a água para o café e tenho saudades: “bem que o Lorenzetti poderia mandar um whatsapp, dar notícias, coitado, fora atirado ao lixo com um inútil”.
Meus amigos, meus inimigos, alguém viu o Lorenzetti por aí, se o virem avisem que sou um homem que aceita tudo e que até lhe troco a resistência se for preciso. Por favor, peçam para o Lorezentti voltar, prometo nunca mais reclamar que ele não esquenta quase nada no inverno, que paguei barato demais por ele e que o barato sai caro.




quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Salamalekum

Há vários tipos de exames. Algumas mulheres tocam as mamas, alguns homens vão ao médico fazer o toque da próstata, alguns são autoexames e outros nem tanto, mas precisamos de alguém que nos ajude a fazer a avaliação que, em geral, é dolorida.
Nem sempre se olhar no espelho adianta. Não porque tenhamos comprado o espelho barato demais e ele nos distorça por inteiro ou, no meu caso, o astigmatismo ajude a piorar a situação. Precisamos do olhar do Outro, por mais que doa.
No meu caso, algo curioso vem acontecendo. Desde que deixei o Brasil e passei pelo Marrocos, perdi um pouco daquilo que eu achava ser minha brasilidade. Não que eu gostasse dela e fizesse disso uma bandeira, mas era algo que eu tinha para reclamar todos os dias. Agora nem isso. Ninguém me pergunta: você é brasileiro? Ninguém vê em mim o latino-americano, resultado da cultura subalterna, de um país que foi colonizado e vive o atraso mental do cone sul tão estereotipado nos programas da norte-americana HBO.
A pergunta é outra. Melhor, não é uma pergunta, é uma saudação em quase todos os lugares por onde passo e há um representante da comunidade árabe ou muçulmana, logo me diz: "Salamalekum", ao que prontamente respondo o mesmo e recebo um leve acenar de cabeça quase reverente. Sou árabe e não sabia. Meu orgulho do lado indígena, meu avô negro e pedreiro, minha avó italiana e fogosa, do lado paterno, e minha avó cafuza, do lado materno, viraram um borrão no quadro da árvore genealógica, cultivada a duras penas dentro de mim.
E não há o que mude a forma de me verem. Um taxista marroquino todo empolgado começou a conversar comigo em árabe, fez-me a saudação e depois, se teve alguma decepção, soube disfarçar e falamos numa salada que nem nós entendemos direito: usamos português, francês, espanhol, inglês e cada um gastando um pouco do que sabia, discorreu sobre literatura, música, política e cultura entremeados pelos comentários do ainda boquiaberto taxista  que jurava ser eu um árabe.
Assim é a vida, não como ela é, mas como nos veem e como nos julgam ao longo dela. Se no Brasil, já fui pretinho, escurinho, moreninho, meio narigudo, narigudo, magro demais, cara de cigano, aqui, na França, neste momento, que foi meu destino final, virei árabe, muçulmano, sou outro, meu eu novamente ficou pendurado em um retrato que olha para uma bandeira nacional vista só na memória, e habita a parede da sala de minha mãe .
Salamalekum! Já é tarde e vou dormir.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Sob o sol de Lyon


Lyon corre ligeira sob meus pés,
bolhas e calos levantam-se em protesto
e os meus pés mudos cubistas
 queimam ao sol do meio dia,
sabendo que o fim da jornada ainda tarda.
Lyon corre indiferente sob meus pés
e aos meus olhos ninguém pode ver.
Angústia, tristeza e felicidade são detalhes
que não interessam ao alienígena que passa
ao lado, com suas preocupações francesas
da baguette e do petit déjeuner.
A vida como uma serpente negra sinuosa
segue quente sob meus pés.
A cabeça é um sol escaldante e ainda acesa
queima milhares de arquivos indesejados.
Lyon dorme quente sob meus pés
sinto seu corpo nu escaldante
e vivo a sensação do eterno bonjour,
que se encerrará às nove da noite,
quando ainda há um sol sobre minha cabeça
e nem todas as estrelas da noite poderão apagar
de meus pés cansados o corpo nu e quente de Lyon.






  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...