sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Conversa Inevitável


Senti que minha mente entrava em um turbilhão de labirintos, enquanto os ouvidos zumbiam e o estômago parecia ter levado um soco. Havia uma bola nele que insistia em vir até a garganta e voltar. Os dedos tremiam, os pés buscavam um chão que aos poucos ia se tornando cada vez mais líquido. Eu olhava para quem estava à minha frente e disfarçava com um leve sorriso, quase automático de quem estava lendo uma piada ou vendo algum vídeo enviado pelos amigos.

No fundo eu me retorcia, era o inevitável, a conversa adiada por dias, que eu esperava, embora tivesse a esperança de que ela nunca ocorresse. Mas, sim, ela ocorreu e agora estava parado diante de um salão lotado por pessoas a me espiar como se todos pudessem ter lido o conteúdo que eu recebera.

Tanta dor não poderia durar mais tempo, nem esperar mais dias. Até o luto tem um fim. A dor era, no entanto, algo a que se segurar; uma âncora para o barco vazio e naufragado há dias, que um capitão solitário agarrava-se ao último pavilhão seco onde pudesse sentir os pés.

Havia outras conversas, outras tentativas, outros afastamentos. O retorno aliviava por algumas horas a dor e as certezas voltavam a crescer. O mundo tinha cores novamente. Podia-se abrir as janelas e ver o sol irritadiço a queimar-me a pele, a lembrar-me a cor um pouco desbotada pelo tempo fechado entre quatro paredes. Tomar o café da manhã não era mais um sacrifício e os olhares trocados entre dedos que roçavam os outros dedos a sustentar a xícara davam à manhã uma sensação de riso fácil e um perfume de primavera. 

A distância e o tempo corroem os corpos. Viver e reviver as lembranças começam a revirar no estômago e na boca fica um travo de amargor. Os corpos se pedem, desejam-se, buscam pelo calor que um dia os aqueceu. O amor preserva a alma, mas o corpo exige o corpo, a presença, o toque, a saliva, o visgo que torna a junção entre dois seres tão diferentes algo natural. Um corpo nunca está completo sem outro corpo, alguém retirou maldosamente uma parte que só o outro pode completar, ele tem a chave, a parte do quebra-cabeças que faltava e julgávamos perdido.

O corpo certo é como a poesia. Não o texto escrito e banal dos versos e a concretização miúda que resta nas palavras daquele enorme sentimento. Um corpo tem voz, cheiro, calor, texturas únicas, insubstituíveis. E sobre o corpo uivamos livres, indiferentes aos padrões aborrecedores da sociedade. Mas, um corpo é um corpo e ele precisa mais do que palavras para sobreviver.

Por isso, eu sabia que aquela conversa ocorreria. Era inevitável. Até o luto tem um fim. A dor da ausência pode amenizar com o silêncio. Há, porém, dentro de mim um lobo que ainda uiva, estranhamente lamenta algo, exige algo que as mãos desastradamente deixaram quebrar. Ouço os corvos baterem contra a janela e quando olho tenho a impressão que dentro de mim as asas fazem um alvoroço enorme.

Aceito a conversa, a fatalidade dela. Aceito o tempo. Embora eu não o veja, sei que ele tem de ser respeitado. Abrimos as portas quando nos cedem as chaves e momentaneamente estou sem elas. Claro, sei que deixei-as dependuradas por mais tempo do que deveria. E as chaves devem ser usadas para abrir as portas. Agora estou sem as chaves. Pelo menos elas ficaram guardadas e espero recebê-las novamente, habitar os espaços, mobiliar a casa, regar o jardim, ver as flores.

Olho para a xícara de café e para o salão. Não choro, não posso chorar. O corpo está desmoronando por dentro. Também evito levantar, as pernas podem falhar e as pessoas pensarem que envelheci antes do tempo. O sorriso se desfez em algum momento que não posso precisar direito, ao menos para mim posso evitar a mentira. Sei que se abrir o livro será um gesto puramente mecânico, mas para a pessoas basta ver ali um solitário leitor.

O gesto é interrompido. A moça avisa que precisa fechar o café, que todos já se foram. Ela trabalhou o dia todo e precisa descansar. Preciso sentir de volta minhas pernas e decididamente a garçonete nem precisa saber quem sou. Pago a conta, peço desculpas e caminho, caminho até os pés doerem e lembrar-me que é preciso regressar para o apartamento antes que me faltem condições para fazer o inevitável caminho da volta.

Chego calado. Dispo-me lentamente; encaminho-me para o banho, deixo a água escorrer sobre o corpo e mesmo com as mãos molhadas, verifico inúmeras vezes se a conversa realmente existiu. A data e a hora desmentem o sonho e vou para cama sem sono e talvez sem sonhos para os próximos meses. 


Nenhum comentário:

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...