Toda cidade no interior do Brasil tem seus loucos. Antigamente, andavam livres pelas ruas, correndo atrás de crianças, quebrando vidraças ou simplesmente cumprimentando as pessoas e tomando uma xícara de leite quente nas casas das vizinhas que tinham um coração melhor do que a maioria das pessoas. O fato é que crescíamos acostumados com essa presença. Aqueles adultos que não haviam crescido, que se vestiam de modo esquisito e não tinham vergonha de nada.
Na minha infância houve três loucos. Um deles era mais famoso na cidade, o segundo na vizinhança e a terceira, pois era uma louca, minha tia, habitava o ambiente doméstico quando comecei a perceber o mundo à minha volta. Lembro-me que as pessoas diziam que os loucos morriam cedo, tinham, de repente, um mau súbito e faleciam. Acredito que muitas famílias rezavam por isso todos os dias. Porém, muitos deles enterraram os pais, os irmãos e até os sobrinhos.
Minha tia é um desses casos de loucos longevos. Enterrou os pais, depois uma irmã e anos depois um irmão. Também já esteve no velório de pelo menos um sobrinho e alguns cunhados. Hoje mora com minha mãe e é uma respeitável louca de 63 anos. Que vigiem as línguas, pois ela é capaz de ver mais gente ir para cova antes dela, uma vez que outros dois tios meus estão com um pé mais para o lado de São Pedro do que para ver o jogo entre Corinthians e São Paulo.
Embora em ordem invertida, já que o presente texto não pretende ser um primor acadêmico, tem o Tiba, um menino que nunca cresceu. Morríamos de medo dele com seu estilingue e mira perfeita. De boné para trás e a língua posta no canto da boca, Tiba acertava pedras nas canelas dos meninos que ousavam zombar dele.
Uma vez ele passou por nós e nos chamou para perto de uma árvore em frente à casa de Dona Brígida. Ali, esticou o estilingue e acertou a cachopa de marimbondos. Foi uma correria só de pernas, que na época ainda se davam o luxo de acertar os calcanhares nos traseiros e todos, loucos e não loucos, agachados atrás de um carro, rimos às gargalhadas. Depois levamos uma bronca igual.
Não sei o que aconteceu com Tiba de verdade. Disseram-me uma vez que ele havia morrido perto de seus cinquenta anos. Manteve dignamente seu papel de menino e visitador das vizinhas, que foram desaparecendo aos poucos. Algumas se foram antes dele, mas como ele pouco compreendia, simplesmente deixaram de fazer parte de suas visitas.
Ser louco em uma cidade pequena é ser um patrimônio local. Todos respeitam os loucos, com exceção das crianças, que só o farão quando adultos. Tirando este leve desvio de caráter que todos nós tivemos um dia, a vida de um louco é pacífica nas pequenas cidades. Andam livres e protegidos por anjos das mais diversas origens, até pelos de mau caráter e valentões que impunham medo aos homens de sã consciência.
O terceiro louco da cidade era o Jair. Jair louco, como era conhecido, era um louco livre. De pés descalços e falando sozinho, pitando bitucas de cigarros, Jair andava solto pelas ruas da cidadezinha. Sempre levava consigo um violão sem cordas, com o qual parava nas portas de botecos e cantava uma canção só sua; como paga, recebia um copo de cerveja ou cachaça.
Ao final do dia, a família de Jair louco o buscava pelas ruas e bares até encontrá-lo. Aí, dizem as línguas boas e más, a luta era insana para metê-lo debaixo de um chuveiro e lhe tirar a sujeira do dia. Acredito que com o tempo, a família se cansou e Jair andava quase os trinta dias do mês com a mesma calça esfarrapada, camiseta suja e vermelho como a terra. Ao final do mês, era apanhado novamente e logo todos o viam limpo, barbeado e fumando sua bituca de cigarro.
Meus pais e tios contavam que Jair tinha, na mocidade, um belo aspecto e que chegara a ser cobiçado pelas moças. Mas, ao ver sua amada casando-se com outro na Igreja Matriz da cidade, perdeu a cabeça e nunca mais foi o mesmo. Além disso, era rico. A família, no entanto, teve a sabedoria de deixá-lo livre a andar pela cidade e não o submeteu ao desumano tratamento dos hospícios da época.
Jair gozava de prestígio entre todos. Até entre os garotos, que no máximo pediam a ele, em tom de gozação, que tocasse seu violão. Executada a cantoria, Jair louco seguia seu rumo, andava quilômetros todos os dias, num solilóquio sem fim. Nunca o vi comer qualquer alimento que fosse; seu paradeiro para mim hoje é desconhecido.
Esses são os loucos de minha infância. Pessoas simples, honestas, de riso fácil e de ira fácil também. Mas, eram boas pessoas, incapazes de fazer mal a qualquer ser humano. Talvez uma pedrada, um xingamento ou um beliscão. Nada que ferisse a integridade física ou moral dos habitantes da cidade. Eles, os loucos, ainda existem, o problema é que muitos andam pintados por aí de gente honesta e até com poderes demais para mandar e desmandar.
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