segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Dois árabes e uma lembrança de Camus



Tu parles anglais? Tu parles français? Tu parle espagnol? Ouvi de repente o grito às minhas costas.

Ainda zonzo pelo zumbido em meus ouvidos, quase em forma de vociferações proferidas pelo mec, que agora me olhava duramente nos olhos, tentei organizar a situação. 

Outro jovem o acompanhava e eu vendo-os com uma sacola de compras do Carrefour, assim como quase todos os franceses, perguntava-me o que eu poderia haver feito. Repassei rapidamente as cenas anteriores e me dei conta de que olhávamos para a mesma torta de maçã na prateleira. Julgando-os, provavelmente franceses, na minha condição de estrangeiro havia cedido a vez a eles, então, reorganizava o cenário novamente à procura de alguma gafe.

Prontamente, o mec mais violento queria saber por que eu o havia olhado. Foi quando ele pareceu-me ser árabe, mas isso podia não ser uma constatação lógica, pois, eu mesmo fora confundido com árabe várias vezes naquela semana. 

O jovem era alto. Para piorar a situação, estava acompanhado por um rapaz que de dentro do seu mutismo, vigiava-me como um animal pronto para abater a caça. Olhei à minha volta e vi que as pessoas procuravam ignorar a cena e esquivavam-se pelos corredores como cobras entre as relvas.

Se não fosse pelo queimado da pele, muito parecida com a minha, poderia lembrar o jovem de mandíbulas de aço e cabelo loiro sujo que me cercara quando eu tinha meus doze anos. Eu estava orgulhoso de mim. Havia ido ao mato, encontrado a árvore ideal, cortado a madeira em forma de forquilha, limpado o tronco fino e deixado-o curar ao sol por alguns dias. Ao cabo deles, com tiras de câmara de ar de bicicletas, pedidas ao meu amigo que trabalhava na bicicletaria e com a tripa de mico em mãos, comprada com as economias das gorjetas de entrega do jornal, havia feito eu mesmo meu estilingue. Confeccionara com uma perna de calça jeans meu embornal e saí à caça. Maldito dia, à beira do rio, o jovem loiro e seu amigo, tomaram-me o estilingue sem qualquer resistência de minha parte. Era como se eu não acreditasse na cena. Simplesmente pegaram e saíram como se cobrassem uma dívida. Voltei para casa e jamais contei aos meus pais o ocorrido.

Vinte e quatro anos depois, em Lyon, na França, a cena quase se repetiria. Agora dentro de um Carrefou City, num final de sábado, era eu abordado de novo por dois jovens. Com a diferença que agora o mais velho era eu. Apalpei rapidamente o bolso de trás da calça, nada, verifiquei os bolsos do casaco e nada. Eles me olhavam intimidadoramente, como se ignorassem minhas intenções, talvez, de uma remota vingança jamais posta em prática. 

O peso do ar se tornava irrespirável, o trio que se formara na arena imaginária se provocava mudamente, como se fossem explodir os vidros a qualquer momento. Ninguém parecia ter a decisão de recuar um centímetro que fosse. Outros olhos miravam pelas frestas das prateleiras e voyeurs da batalha rezavam pelo jovem estrangeiro que a qualquer momento poderia jazer estatelado contra o chão.

Infelizmente, havia deixado meu passaporte no apartamento, afinal, duzentos metros me separavam do mercado, ao qual eu fora buscar uma garrafa de vinho para o fim da noite. Se me metesse em briga, teria dificuldades na delegacia e o fantasma de uma deportação prematura me assombrava. 

Resolvi encarar os dois friamente. Talvez, calmamente seja o melhor a dizer. Mas, estaquei à frente do dois e não, não fazia sol, nem havia uma lâmina de navalha nas mãos deles a brilhar contra o sol. Mesmo assim, lembrei-me de Camus e a longínqua leitura que eu havia feito de o Estrangeiro. Na época não passava dos vinte e poucos anos e li a história entre as idas a vindas do coletivo que me levava à universidade. Havia emprestado o livro da biblioteca e ele, por alguns dias, virou meu companheiro de viagem.

Quis matá-los. Não naquele momento, em que apenas queria livrar-me de um olho roxo ou uma represália da polícia, caso a oferta da outra face não fosse o suficiente e eu tivesse de me por em roupas de coragem e rolar inutilmente pelo solo do mercado; agora, em minha mente, convertido em arena de uma luta injusta. Vociferei no caminho, xinguei mentalmente, dei murros no ar  como um boxeador e ao entrar no apartamento bebi sem violência os primeiros goles de vinho rosé.

Voltei à cena e ao presente. Ainda era encarado pelos dois que não compreendiam o que eu sem vontade alguma murmurava em um francês ainda mais travado que dos primeiros dias da minha chegada a Lyon. Não podiam ver minhas mãos suadas e frias, afinal não estávamos de namorados ali. Acho que minha posição de estátua quase muda os irritava ainda mais.

O maior e mais irritado vociferava para ele mesmo. Entrou num jogo mental que eu também não compreendia, grunhia, passava as mãos pela cabeça a arrancar pequenas mechas de cabelo, enquanto seu amigo continuava impassível, quase estático ao lado dele. 

Do nada, o rapaz virou-me as costas. Se me xingou é impossível saber, porém, atirou todo o conteúdo da sacola contra o chão do mercado e como um ifrit, que surgira em uma nuvem de tempestade de areia, desapareceu do mercado, deixando à moça que trabalhava no local a tarefa de recolocar latas e  outros produtos de volta às prateleiras. 

Todos me olhavam como se eu houvesse feito algo. Julgavam-me, uma nuvem de olhos me recriminava e o público que não pagara mais que suas compras, deixava o local decepcionado. Talvez, pela luta que sanguinariamente desejavam assistir, talvez por me julgarem covarde. Jamais saberei.

Fiquei ainda algum tempo no mercado. Não mais estático. Havia controlado minhas pernas e num gingado entre o samba e a capoeira, zanzava pelo mercado em busca do vinho mais barato que me fosse digno. Ignorei a prateleira onde estava o vinho diversas vezes, no fundo queria ter a certeza de que eles não me esperavam do lado de fora do mercado.

Enfim, saí a passos acelerados e com olhar vigilante rumei para o apartamento que ficava na Rue Garibaldi. Por favor, não sorriam, guardem o julgamento para o silêncio de vossas maldosas línguas. No meio do caminho, para infelicidade maior, cruzei a Place des Martyrs de la Résistance, o que me pareceu uma ironia demasiado grotesca do destino. 


Nenhum comentário:

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...