sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A casa da esquina

Quase todos os dias pela manhã passo por uma casa de dois andares. Ela fica em uma esquina, na cidade de Bron-France. Ela nada diz, está ali muda em sua estrutura de tijolos e telhas a observar o mundo.

Há inúmeras casas nesse mesmo caminho, inúmeros apartamentos, casas simples e ricas com jardins floridos na sua frente e alguém a varrer a calçada.

Mas, a casa da esquina desperta em mim particular interesse. Como vivem as pessoas que nela habitam? São jovens? Velhas? Têm cachorros ou gatos? Há netos que correm pelas escadas e pelo pátio da casa imune aos olhares visitantes, que se espicham desde à rua aos seus cantos e lacunas?

De quem é a casa? Qual o seu proprietário? A casa é antiga. Devem morar ali dois velhinhos que raramente são visitados pelos filhos. Talvez os netos se acheguem para tomar um copo de leite e tentar entender aquelas duas figuras estacionadas no tempo. 

A casa pode ser de um casal jovem. A porta de entrada é um risco no marco antigo da habitação. Fere o tempo com sua moldura nova e parece um erro na constituição antiga que se erige diante da rua. Ou a troca foi feita pelos filhos, que de tanto insistir com os pais substituíram a porta roída nos cantos e apodrecida nas beiradas.

Lembra-me uma casa colonial. Uma casa de fazenda. Imagino, se avós eu tivesse ainda, que poderiam ser de meus avós, que eu poderia entrar, tomar um café, conversar sobre o passado deles, ouvir histórias verdadeiras e sobretudo as inventadas. Se tivesse avós vivos, gostaria que a casa deles fosse como a casa de dois pisos, que habita uma esquina no interior da França.

A casa imaginada é sempre melhor do que a casa de material. Lembro-me ainda da vontade que tinha, quando crescesse, em comprar a casa que fora de meus avós. Anos depois passei em frente à casa. Ela nada tinha daquele ar de minha infância que me assombrava os sonhos, estava velha, decadente, com aquele círculo que já fora azul, exibido na fachada do imóvel. Sim, virou um imóvel, um amontoado de tijolos, areia, cal e telhado, que nada mais abrigava. Desfiz-me feliz daquela ideia e não perdi meu dinheiro investindo numa casa de nuvens.

Agora, anos mais tarde, quando a casa de meus avós nem sombra mais fazia em meus pensamentos, surge a casa da esquina, com suas escadas, seus muros baixos, suas janelas altas, silenciosa e imponente a criar em minha cabeça uma vida imaginada, uma xícara café com leite que nunca tomarei, um bolo quente com manteiga, que nunca tocará meus lábios.

Teria vivido nesta casa minha infância. Confortavelmente, tomaria meu banho, me sentaria à mesa e gritaria "mãe" como todas a crianças fazem quando algo sai errado. Cresceria um pouco mais, e também varreria a calçada, veria o dia se por trás das paredes do pátio dos fundos e pela manhã abriria seu breve portão para iniciar meu dia.

Esta casa, porém, é como a casa de meus avós, uma casa de sonhos. Ela não existe na minha realidade, não sei quem são seus proprietários, se vivem ali pessoas que a alugaram, emprestando suas memórias às paredes que ficarão para sempre a observar seus moradores.

É uma casa que eu habitaria. Moraria ali os dias de minha vida e quando a tarde chegasse, eu sem nada para fazer, sorriria ao fim do dia, acenaria discretamente ao sol que se põe em definitivo e cerraria sobre mim suas portas e janelas para a viagem inevitável de todos os vizinhos. Ouviria as últimas ave-marias e deitaria meu corpo leve sobre as abas do crepúsculo. 


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