As pernas cruzaram. Não com a agilidade de antes. Os pés trôpegos registrando no chão de paralelepípedos um x, acusaram o golpe. A traição. Mestre Moa nunca levara uma rasteira, nem a cabeçada em seu peito o jogara contra o chão.
Mais dois passos, ainda na elegância do gingado ao qual se acostumara e Mestre Moa sentiu o sangue quente ferver-lhe nos olhos e no canto da boca. Ainda tentava reagir diante de tanta covardia. Porém, misturava-se ao negro da noite o agressor.
Brilhou pela terceira vez a lâmina do punhal contra a face da lua. E como se retardasse o passo ao encontro de seus ancestrais, Mestre Moa sentiu abrir-lhe um vão entre costelas. Não havia ainda se acostumado com a traição e sorria da fraqueza de seu oponente.
Tentava lembrar dos avisos dos Orixás, a última benção de seu Pai de Santo, do carinho de sua mãinha ainda a lhe estender a caneca de lata com o café ralo e quente nas manhãs antes de descer ao Pelourinho vender as fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim aos turistas.
Mestre Moa, sorriso branco, dentes escancarados à vida, descia com pernas ligeiras as ladeiras e os becos de Salvador. Agora sentia que as pernas lhe faltavam, os dentes tinham uma fina película vermelha das dores, das perdas que começaram há alguns séculos ao pisar a Bahia de todos os Santos.
Quarto golpe e Mestre Moa sente abrir-lhe nova boca em suas costas. O branco das costelas, ainda mostra o negro rijo que fora, palmeira que verga e luta contra o vento, contra o Judas novo que não fora malhado no sábado de aleluia.
Não devia ter-lhe virado as costas. Procurava agora os olhos do agressor que lhe abria novo talho no corpo. Justo ele, corpo fechado nas encruzilhadas, dera as costas ao destino fatídico. Mestre Moa ainda tentava ouvir a voz de seus ancestrais e estendia as mãos a pegar a cesta de doces das mãos de sua mãe a lhe sorrir.
Mestre Moa não vê mais a noite. Nova facada entra-lhe no corpo e um sol sorri-lhe quente e forte, banhando-lhe o rosto, trazendo tempos remotos de uma África perdida. Sente o seio quente e morno daquela que lhe dera os peitos nos primeiros dias, em que ainda sem dentes, dera seus primeiros sorrisos ao sol de Salvador.
Mestre Moa desce a ladeira, digno em seu talhe de negro forte, sedutor, serpente negra a enlaçar as negras, mulatas e brancas que lhe assanhavam o sangue nos primeiros dias da juventude.
O mestre capoeira vira-se ao receber nova facada. O agressor não pode entender o sorriso, o brilho ainda preso aos olhos como se tivesse visto ângoro.
O agressor foge, derrama-se pelas ruas de Salvador covardemente e Mestre Moa entregue ao seu ritual de passagem, dança trôpego e ri, ri um riso de anos, de séculos, de alegrias de quem viu este mundo com dignidade e é recebido agora no centro de um terreiro, numa festa gigante de capoeiristas e Orixás a dançar indiferente ao destino marcado na ponta da faca.
Mestre Moa não sangra mais e ri, seu riso é branco como sua camisa branca de domingo e suas sandálias de couro costuradas por sua mãe. Mestre Moa é eterno e o agressor é só um covarde com um punhal na mão e a gargalhada de Mestre Moa a soar-lhe nos ouvidos pela noite negra de Salvador.
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