quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Meu antigo Lorenzetti


Sempre fui um sujeito que gostou de se levantar antes dos horários dos compromissos para tomar meu banho. Nada melhor que aquele banho cedo, demorado, a água escorrendo pelo corpo, desculpem-me os ecologistas de plantão, horrorizados neste momento, mas um bom banho, um banho de patrão, e olha que nem precisa dos sais na banheira, é uma maravilha. Às vezes, quando a água escorre pelo meu corpo e sinto aquele calor, lamento o dia em que tiver de morrer e não puder mais ter essa sensação do corpo limpo. Nessas horas, lembro-me de Deus e até faço uma pequena prece, meio envergonhado de ter esquecido do patrão mor por tantos dias.
Mas nem tudo são sais, melhor rosas, como dizem na linguagem popular. Todo mundo te enche a cabeça que banho de chuveiro comum não presta, que eu deveria jogar fora aquele Lorenzetti e que não ouse comprar um Corona, que eu coloque um aquecedor no apartamento para ter água quente nas torneiras e, é claro, no chuveiro, para tomar aquele banho de hotel, no qual desperdiçamos água e tomamos um banho de horas, já que estamos pagando....
Ninguém te avisa, porém, que o relógio deve despertar antes. Ao entrar no box, meio apressado, querendo aquele banhinho digno, pelo menos de 10 minutos, para sentir as ideias fluírem e descerem pelo ralo em seguida, para fazer uma reflexão sobre a vida, amar os amigos, as antigas namoradas e odiar os inimigos, ensaiar tudo o que vamos jogar na cara deles, vira quase uma odisseia.
Primeiro a água escorre por quase cinco minutos, enquanto você espera que ela esquente e poderiam ter sido cinco minutos de fantasias, aquela dosinha diária de cachaça que o mestre Candido nos ensinou a fazer. A luta se torna mais ferrenha, aos primeiros vapores que sobem pelos ares anunciando a água quente, entramos rapidamente debaixo da ducha e nessa hora tenho dó dos porquinhos sendo pelados, porque a sensação é esta: a água está quente demais e somos obrigados aos saltos a fugir para o canto do box, acuados pelo furor da modernidade.
Nova luta. Toalha enrolada no braço para evitar as queimaduras, bye bye tolha seca para depois do banho e iniciamos os ensaios dos giros das torneiras. Abre-se o lado frio e a água esfria demais, não dá para refletir assim. Viramos um pouco mais e a imagem dos porcos assassinados voltam à minha mente ou se preferirem à minha pele. Vira para cá, vira para lá, o tempo do banho escoando pelo ralo das horas, acertamos algo no meio termo e nada pior que o meio termo, é igual café morno, chá frio, meia paixão, é igual a incerteza se a pessoa do encontro da noite passada vai te mandar um whatsapp ou não. Enfim, a água entra num processo diplomático do nem tão quente e nem tão frio te dando tempo para um banho de operário, com hora marcada na parada de ônibus e cartão de ponto a descontar seu atraso.
O banho se torna nossa primeira decepção do dia. A vontade de ligar para a mulher do amigo e mandá-la às favas, por ficar enchendo as paciências e louvando as benesses do banho com aquecedor vem-me à mente. Respiro fundo, visto minhas calças, vou à cozinha, esquento a água para o café e tenho saudades: “bem que o Lorenzetti poderia mandar um whatsapp, dar notícias, coitado, fora atirado ao lixo com um inútil”.
Meus amigos, meus inimigos, alguém viu o Lorenzetti por aí, se o virem avisem que sou um homem que aceita tudo e que até lhe troco a resistência se for preciso. Por favor, peçam para o Lorezentti voltar, prometo nunca mais reclamar que ele não esquenta quase nada no inverno, que paguei barato demais por ele e que o barato sai caro.




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