domingo, 2 de setembro de 2018

Uma manhã difícil e um coração


Um coração não é fácil de se achar. Quem tem um coração disponível? Disposto a enfrentar as dores e os problemas das relações amorosas? Um coração é como um tesouro, frase de Almanaque Fontoura, eu sei. Porém, uma vez encontrado, temos de trabalhar todos os dias para não quebrá-lo e isso não é fácil. Um coração disponível, então, mais difícil ainda.
Será possível encontrar um coração novo, sem uso, com todas as etiquetas para o caso de uma troca ou devolução? Um coração embalado para venda? Será possível comprar um coração na loja de usados? Talvez em um brechó de corações? Nas lojas de antiguidades? No site da Amazon? Existe um coração que pode ser encontrado em alguma praça pública, escondido entre as flores ou entre as folhagens de um jardim? Não sei. E tudo o que sempre desejei foi saber, saber de tudo, ser um sabe tudo, um sabichão. 
Um coração quebrado não é fácil de se consertar, é quase obsceno um coração quando está despedaçado (Os Aztecas amavam a guerra florida). Porém, no mercado das relações amorosas conhecidas ou desconhecidas, legais ou clandestinas (Clarice bem o sabia), nacionais ou estrangeiras, falsificadas na 25 de março ou em Ciudad del Este, os corações vivem sendo quebrados, colados, remendados, mas, continuam sendo corações à procura de um amor ou de quem os ame, e também em busca de alguém para amar.
Em tempos modernos falar de amor parece "breguice"; no entanto, por que procuramos tanto? Por que há tantas redes sociais e sites de encontros lotados de pessoas, na longa fila do sonhado amor. Programas de televisão se multiplicam e fazem encontros às cegas, brincam de cupidos, fazem propostas e o público aplaude. Do outro lado da TV há uma grande quantidade de telespectadores rindo, entupindo-se de pipoca e coca-cola, comendo lasanhas, chocolates, enquanto discretamente olham seus celulares para ver se alguém ligou, enviou mensagem, deixou algum "like" ou deu "match".
Um coração não é fácil de se achar, temos de procurar com calma, com cuidado, pode estar perdido em uma praça, escondido entre as folhagens, quebrado, remendado, mas à espera de alguém que o veja, que o compreenda, que possa ajudar a juntar os cacos, dar forma e sentido novamente àquilo que fora quebrado.
Tudo isso me passou pela cabeça em uma manhã fria em Lyon, não muito fria para um francês e bastante fria para um brasileiro. As coisas não andavam bem, estavam desordenadas e desequilibradas; eu olhava para o rio Rhône e tentava entender o fluxo da vida, quando resolvi sentar em um banco e vi o mesmo morador de rua do dia anterior sentado no banco ao lado. Como se olhasse para o nada, ria e ria sem incomodar-se com as pessoas.
Sentado, e também com o nada diante de mim, vi entre as folhagens um coração em alto relevo, vermelho, colado, montado, um mosaico de cacos que parecia pulsar, saltando da pedra; havia os espaços entre os cacos, rios que cortavam o coração, pequenos cortes de concreto, mas era um coração como tantos outros: ferido, triste, solitário por diversos motivos que fugiram aos planos; mas estava lá, ainda sendo um coração, vermelho como o das caixas de bombons compradas a preço de ouro nas lojas de souvenirs.
Havia ali um coração, um coração de pedra, esculpido por algum artista triste, solitário, que resolvera deixar na pedra seus sentimentos. Seu coração endurecido habitava um jardim de solitários, transeuntes, andarilhos, pessoas apressadas para chegar ao trabalho, pessoas precisando pensar na vida, como era o meu caso. Todos, portadores de um coração, talvez inconfessadamente em pedaços, assim como aquele coração, quebrado, com os cacos colados, desafiando os habitantes da praça a olhá-lo, a enfrentá-lo como um espelho, como um reflexo puro de uma manhã triste em Lyon.

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