quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Salamalekum

Há vários tipos de exames. Algumas mulheres tocam as mamas, alguns homens vão ao médico fazer o toque da próstata, alguns são autoexames e outros nem tanto, mas precisamos de alguém que nos ajude a fazer a avaliação que, em geral, é dolorida.
Nem sempre se olhar no espelho adianta. Não porque tenhamos comprado o espelho barato demais e ele nos distorça por inteiro ou, no meu caso, o astigmatismo ajude a piorar a situação. Precisamos do olhar do Outro, por mais que doa.
No meu caso, algo curioso vem acontecendo. Desde que deixei o Brasil e passei pelo Marrocos, perdi um pouco daquilo que eu achava ser minha brasilidade. Não que eu gostasse dela e fizesse disso uma bandeira, mas era algo que eu tinha para reclamar todos os dias. Agora nem isso. Ninguém me pergunta: você é brasileiro? Ninguém vê em mim o latino-americano, resultado da cultura subalterna, de um país que foi colonizado e vive o atraso mental do cone sul tão estereotipado nos programas da norte-americana HBO.
A pergunta é outra. Melhor, não é uma pergunta, é uma saudação em quase todos os lugares por onde passo e há um representante da comunidade árabe ou muçulmana, logo me diz: "Salamalekum", ao que prontamente respondo o mesmo e recebo um leve acenar de cabeça quase reverente. Sou árabe e não sabia. Meu orgulho do lado indígena, meu avô negro e pedreiro, minha avó italiana e fogosa, do lado paterno, e minha avó cafuza, do lado materno, viraram um borrão no quadro da árvore genealógica, cultivada a duras penas dentro de mim.
E não há o que mude a forma de me verem. Um taxista marroquino todo empolgado começou a conversar comigo em árabe, fez-me a saudação e depois, se teve alguma decepção, soube disfarçar e falamos numa salada que nem nós entendemos direito: usamos português, francês, espanhol, inglês e cada um gastando um pouco do que sabia, discorreu sobre literatura, música, política e cultura entremeados pelos comentários do ainda boquiaberto taxista  que jurava ser eu um árabe.
Assim é a vida, não como ela é, mas como nos veem e como nos julgam ao longo dela. Se no Brasil, já fui pretinho, escurinho, moreninho, meio narigudo, narigudo, magro demais, cara de cigano, aqui, na França, neste momento, que foi meu destino final, virei árabe, muçulmano, sou outro, meu eu novamente ficou pendurado em um retrato que olha para uma bandeira nacional vista só na memória, e habita a parede da sala de minha mãe .
Salamalekum! Já é tarde e vou dormir.

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