quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A flor do coração

 

        Recolheu-a na concha de suas mãos. Pequena, frágil, de um rosa antigo emocionante. Era a primeira flor que colhia para sua mãe. Estava ali solta, no pátio, à hora do intervalo. O jardim da irmã. Assim as crianças chamavam aquela parte da escola. Era uma flor pequena, mas que cabia perfeitamente aconchegada nas palmas das pequenas mãos. Cheirou a flor, sentiu algo que os adultos chamam de emoção.

            Valentina mostrou a flor para sua amiga Maria Luiza. É para minha mãe, disse. Vou levar comigo para sala. Você me ajuda a guardá-la? Meu pai vem me buscar à tardinha, quando a professora deixar de falar com o fim do dia.

            Prestou pouca atenção à boca da professora, que se mexia insensivelmente à sua flor. Não entendia porque a professora não compartilhava do mesmo sentimento seu. Uma flor, só minha, só para minha mãe e a professora descuidava de tão grande momento.

            Seguiu olhando sua flor. Se tivesse a noção de horas acharia o dia imenso. Mas, apenas contemplava sua flor, a flor que seria a primeira que daria para sua mãe. Aquilo era tão imenso, que não cabia bem em seu coraçãozinho. Teve a certeza de que estava certa colhendo a flor porque ninguém a censurou. Ficou ao seu lado, na mesa. Sua amiga, de longe, guardava a flor com o olhar, feliz por Valentina estar com a flor que daria à mamãe quando ela chegasse em casa.

            "Valentina do infantil quatro", soou a voz no corredor. Era a hora de ir para casa. Certamente seu pai estaria no portão à sua espera. E quando desceu a rampa, correndo com sua amiga Maria Luiza lá estava seu pai, aguardando por ela. O mundo era estável e seguro até aquele momento.

            Olha papai, trouxe uma flor para mamãe. Vou dar para ela quando chegar em casa. Tenho uma surpresa para você filha. A mamãe está no carro nos esperando. Valentina soltou a mão de seu pai e acelerou seus pequenos passos. Antes, ainda, pôde se despedir da amiga, que correu até ela dizendo tchau.

            Papai, quero dar a flor para mamãe. Olha que bonita a flor, peguei no jardim da irmã. A jabuticaba acabou, não tem mais. Tem essa flor que achei linda. Olha filha, mamãe está no carro, vai poder dar a flor agora mesmo.

            Entrou no carro apressada, sentou-se na cadeirinha e disse: olha mamãe, trouxe essa flor para você. Que linda filha, mamãe vai guardar, obrigada. Gostou, mamãe? Gostei, é linda.

            Valentina estava feliz, um mundo novo se abria diante de seus olhos e a cidade parecia imensa, ampla. Os carros deviam todos estar cheios de crianças que os pais foram buscar na escola, mas nenhum teria a flor rosa que ela dera para sua mãe. Não sabia nomes de flores, apenas achara a flor linda e, então, levou-a para combinar com sua mãe. Nesta tarde nem lembrou de pedir sorvete, queria chegar logo em casa com a flor que dera para sua mãe.

            O caminho foi rápido, os sinais estavam verdes e o carro não precisou fazer pausas na rua. Queria chegar logo e ver sua mãe com a flor em casa. Chegaram em poucos minutos. Valentina entrou, tirou os sapatos satisfeita de ter dado uma flor para sua mãe. Foi brincar, comer, ver televisão até a hora que deveriam chamá-la para o banho.

            À hora do banho se lembrou da flor. Estava nua, quase para entrar no box, quando quis ver a flor de novo. Correu nua pela casa, livre de todos os olhares que essa idade permite. Chegou à lavanderia onde a mãe deixara a flor. Sentiu a garganta doer e chorou muito quando viu a flor murchando. Não era para acontecer isso, a flor era para durar para sempre. Era a flor que dera para sua mãe e não poderia haver outra flor igual.

            Pôs a boca no mundo, chorou sentida, a flor estava murcha poucas horas depois de ter sido colhida no jardim. A mãe tentou consolar, mas ela não queria ouvir. Mamãe, foi a flor que eu te dei, ela não pode murchar, ela não pode morrer assim.

            E ali, nua como estava começou a desfolhar a flor. Estava com raiva, dor, tristeza e eram muitos sentimentos para um só coraçãozinho. Não cabia em si e nua desfolhava cada vez com mais força e mais choro a flor rosa que dera para sua mãe. Apertava forte, conhecera a morte, sem saber o que era a perda. Mas, no fundo, sabia que a flor não existia mais e perdia, perdia o presente que dera à sua mãe. O choro era mais intenso, a mãe percebeu que a filha realmente ficara sentida com a perda da flor.

            Por que não a guardou num pote com água? Por que não cuidou da frágil flor que a filha lhe dera. Valentina não percebia os pensamentos da mãe que a abraçava cada vez com mais força. Chorava a flor e a dor da filha. Será que ela também era culpada de a flor ter murchado tão rápido, ali, esquecida sobre a máquina de lavar roupas. E a flor começou a colar em seu coração. A primeira flor que a filha lhe dera era agora esmagada pelas mãozinhas da menina. Choravam juntas, uma a perda da flor, outra o sofrimento da filha e a flor que se desfazia na memória.

            Tudo fora tão rápido, tão inesperado. Como imaginar que a filha sofreria tanto por uma pequena flor. Agora se sentia culpada e dizia para a filha que ela poderia lhe dar outras flores amanhã ou quando quisesse.

            Mãe e filha se uniam na ausência da flor. Da flor memória, da flor essência dos laços que uniam as duas. Sentia-se cúmplice da filha, ela também esmagara a flor ao não dar a devida atenção ao presente da filha. Era a primeira flor e a primeira flor não se esquece, assim como não se esquece o primeiro amor, o primeiro beijo, o primeiro choro por ter perdido o namorado.

            O pai espiava tudo de longe. Fora tirado de cena. A vida era as duas mulheres que ali estavam se abraçando. Uma pequena demais para perceber sua feminilidade, a outra velha demais para entender que a primeira perda pudesse causar tanta dor.

            Ambas nasciam naquele momento, chorando a flor rosa, a flor ausência que embalou a tarde da menina em seus sonhos de dar a primeira flor à sua mãe. Não era tarde, elas estavam unidas como pétalas formando uma pequena flor que sofria. Mãe e filha se reconheciam naquela solidariedade muda que unem as mulheres para sempre.

            Valentina chorou nua abraçada à sua mãe. Chorava sua primeira perda. Não entendia por que a flor durara tão pouco. Mas, renascia nos braços de sua mãe que lhe dava à luz pela segunda vez.  

            Assim, abraçada à sua mãe, foi para o banho, para que as águas da ducha se misturassem às águas de seus olhos e levassem embora todo o sofrimento. Valentina era uma menina com sua mãe, e a flor rosa que desaparecera, ficou para sempre em seu coração.

Respiração


Sublevo-me contra o nada,

este é um mar de ausências

a me fustigar o peito.

Vejo cadáveres por todos os lados.

Pessoas que se calaram para sempre

ainda sufocadas, querem dar o último adeus.

Foram-lhes negadas as despedidas

cerraram suas bocas, romperam seus dentes

e ninguém ouviu o último estalo de seus corações.

Estou só, estamos sós, abandonados,

no mar das inconclusões e das dúvidas.

Espanco desesperado o ar

ainda tenho essa saída.

O grito preso na garganta agride o ar,

sinto-me vivo, inflo os pulmões

e digo aos que partiram

um até breve com os olhos,

para não lhes ofender  os ouvidos.

Sou um privilegiado e isto assusta-me,

não posso doar o ar aos que se foram.

Justamente nós que éramos irmãos do vento

sem pátria, sem nacionalidade, sem documentos,

que provassem nossa humanidade.

Hoje, somos números, cifras, estatísticas,

o oxigênio virou exceção

e nós, os que restaram deste jantar insano,

sentimos a leve mão do ar a nos afagar

com culpas, com desculpas,

por respirar.

Filha

Filha, deverias crescer devagarinho

sem a pressa do mundo

e correr atrás de teus sonhos

pelos cômodos da casa.

Como planta ao sol

a filha fica viçosa,

de um verde esperança.

Brinca de bonecas

penteia pelúcias

e olha para frente

sonhando ser adulta. 

Brevidades

Gostaria de dormir

e acordar poeta

ter a palavra certa

divagar sobre a vida,

as estrelas e a morte.


Quando me amares

avisa-me com antecedência 

para que eu me ocupe de ti

e de ti somente saibas,

esquecendo-me de mim.


O tempo é um relógio

a dizer-me que é tarde

e que devo dormir

porque amanhã levanto cedo. 


A poesia é a alegria

de ver seu sorriso

desmanchando-se na curva

do verso seguinte.

Fim de ano

 A vida corre solta

como um cão alucinado.

A lua brilha no céu

como lâmina de navalha

a barbear-me o rosto.

Sangue e espuma misturam-se

na vida quente das veias.

Um cão rosna solto lá fora,

um gato mia sobre o telhado

e a noite se faz quente e louca

num fim insano de dezembro.

Natal

 As memórias pulsam pelas ruas

na pequena cidade onde nasci.

Aquela esquina tem um beijo meu,

aquele quarteirão está cheio de emoção

e as ruas sem saída rezam uma cantilena

de vozes e sussurros passados.

Nestas ruas de minha infância

deixei meu sangue nas brigas entre meninos

no futebol de asfalto, com os pés descalços

sangrei, gritei gol e fui herói.

Também frequentei igrejas, cultos e missas,

carreguei pão de Santo Antônio

e preguei no púlpito dos crentes.

As memórias são dolorosas

e mal cheguei já penso em partir.

A cidade de minha infância

não brilha no Natal.

Abraço minha mãe, aperto a mão de meu irmão

e sigo rumo ao futuro

fechando as portas atrás de mim.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Meu corpo

                                                                                                             A Óssip Mandelstam

Tenho um corpo que me deram

ao qual devo ser fiel

e guardá-lo das intempéries,

dos medos e das ameaças.

Mas um corpo é uma forma

à qual me aprisionaram ao nascer.

Um corpo tem braços e pernas

e uma cabeça que o guia pela vida.

Tenho um corpo que me deram

e não sei o que com ele fazer.

Um corpo nunca anda só

está sempre preso aos pensamentos.

Um corpo é só uma forma

com a qual nos apresentamos ao mundo,

um padrão universal de feitura

que nos enquadra no gênero humano.

Tenho um corpo que me deram

que não sei se agradeço a Deus

ou aos meus pais pelo invólucro

com o qual desfilo pelo mundo.

Um corpo com o qual enfrento a vida,

que está cheio de memórias a contar.

Uma história com ele escrevi

com o corpo que me deram quando nasci.


Saudades de São Paulo

Domingo, doze de dezembro de 2021. Ouço uma fala de Luz Ribeiro e Sérgio Vaz na FLIM de Maringá. Nasce uma saudade enorme no meu peito. São Paulo acena para mim do passado e uma série de lembranças me invadem. Não quero usar rimas, nem sonoridades, nem métricas, quero falar da São Paulo que habita em mim, quero olhá-la com os olhos do passado, das saudades, do afeto que pulsa em mim. Quero falar da São Paulo vivida, que está na minha identidade, que esteve em alguns momentos decisivos de minha vida e que hoje dói em meu peito como saudade de mãe. Saudade de mãe é para sempre, guarda o infinito de nossa finitude e só se encerra no tempo de nossa estadia neste mundo. Assim, São Paulo me veio hoje à mente e ao coração, por isso quero versar sobre minhas memórias, sem rimas, sem métricas, sem estrofes, só versos soltos a correr o tempo do passado. 

Que saudades de São Paulo

de seus domingos claros

de frango assado com macarrão.

Que tempo bom o da infância

quando tomava tubaína só aos domingos

e à tarde comia doce de bar.

Domingo em São Paulo

tem jogo do Timão

e a galera andando por Itaquera

é um bando de louco e irmão.

Tinha domingo triste

tinha domingo alegre

em que o grito do gol

explodia nos pulmões.

Que saudades do metrô

de gente cansada do trabalho.

Que saudades das ruas de pedra

e dos edifícios de concreto.

Que saudades do CEFET

onde passei em meu primeiro concurso.

Hoje é domingo e não estou em São Paulo

não vou comer macarrão com frango assado,

tomo Coca Cola e olho para a parede

para o tempo das tubaínas

e do abraço quente de mãe. 

sábado, 11 de dezembro de 2021

Noemi Jaffe, Rubem Braga e eu em Paris

Um dos caminhos pelos quais comecei minha vida de leitor foi pela crônica. Lembro-me de ter caído em minhas mãos o livro Ai de ti, Copacabana! Hoje, sábado à tarde, estava lendo Não está mais aqui quem falou, de Noemi Jaffe e para minha surpresa, em uma das histórias, encontrei-me novamente com meu velho e bom cronista.
Noemi contava de um possível relacionamento amoroso entre Rubem Braga e Marguerite Duras, durante a resistência francesa ao nazismo. Havia ali uma história de aventura, na qual a autora francesa, com seus encantos físicos e com sua capacidade de atrair amores, seduz um oficial nazista e o leva à morte com a ajuda de seus companheiros, entre os quais, constava o brasileiro. Tudo isso ela soube por uma mulher, que ao que tudo indica, foi uma das namoradas de Braga. Agora velha e sem pudores, pôde contar sua história e mostrou uma carta a Noemi, que emocionou-se diante de tal acaso. 
Não foi pela guerra, porém, que me relacionei com Rubem Braga. Comecei identificando-me com ele pelo fato de ambos não gostarem de guarda-chuvas. Eu, quando jovem, perdia muitos guarda-chuvas e acabei desistindo deles, preferia chegar molhado a carregá-los. Em uma das crônicas de Rubem Braga, ele também narrava seu mal-estar com o objeto grande e negro. 
É curioso os caminhos que nos levam a um autor ou que nos fazem reencontrá-lo. Coincidentemente, está acontecendo a FLIM, na cidade de Maringá. Na festa literária uma das convidadas era justamente Noemi Jaffe. Em um momento da entrevista ela diz que os autores roubam de outros autores suas histórias e misturam-nas em novas histórias, dando-lhes outras roupagens. Faço o mesmo aqui. Roubo um pouco da história de Jaffe para compor a minha, porque foi por meio dela que reencontrei meu velho e bom Rubem Braga. Há anos não o leio, mas ele entrou de contrabando em minhas memórias neste sábado à tarde. 
Acho que Braga esteve comigo em Paris em 2018, mesmo que eu não soubesse. O tempo de repente virou e me vi atingido por uma enorme pancada de chuva sob a Torre Eiffel, corri a me abrigar, mas mesmo assim fiquei encharcado. Novamente, a despeito do tempo, estava eu sem guarda-chuva. O tempo já se mostrava revolto, no entanto, quis confiar em minha intuição, que falhou. Devo constar aqui que havia vendedores de guarda-chuvas nas imediações da Torre, inclusive vendendo aparatos transparentes com inscrições de "Paris Je t'aime". 
Não me arrependo de ter evitado o guarda-chuva, afinal de contas, tomei uma chuva em Paris. Não é todo dia que alguém pode se encharcar na cidade mais famosa do mundo. Para eu que já tomei chuvas mais modestas em rincões pouco conhecidos, era um batismo a água que molhava meu corpo. Pouco tempo depois, veio um sol arrebatador e logo eu estava seco e em um barco, navegando pelo canal do Sena.
Posso dizer que mantive a minha dignidade e a de Rubem Braga, fiéis ao hábito de não portar guarda-chuva. Afinal, era uma tarde de passeio e a chuva só trouxe uma experiência a mais. Agora, que li a história de Noemi Jaffe, fico me perguntando se Braga não tomou alguma chuva em Paris, enquanto esperava por Marguerite Duras à beira do rio Sena. Será que eu teria olhado o Sena diferente, se soubesse que meu cronista favorito havia estado em Paris? Não sei. Mas, agora que sei da história, dei um jeito de enfiar Rubem Braga em minhas memórias e sem autorização alguma de família ou de amigos, o cronista esteve comigo em Paris pois, como diz Maurice Halbwachs: nunca estamos verdadeiramente sozinhos. 
Assim, a partir de hoje, quando voltar a Paris, poderei ver o rio Sena acompanhado de Rubem Braga. Olharei o rio, contemplarei o passado e saberei que sou mais um brasileiro a andar pelas ruas parisienses sem guarda-chuva. 



sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Pandemia

Olho pela janela

uma tragédia lá fora

anuncia mais de 600 mil mortos.

Esforço-me por sair

de dentro de mim,

piso corpos e o cheiro fétido

da morte exala pelo ar.

Um cheiro atroz de sepulcro

sai da boca do presidente

e mães, filhos e pais choram

a ausência dos que partiram.

A voz insensível da morte

se espalha pelos bares

em casas noturnas corpos dançam,

em campos de futebol se gritam gol,

enquanto corpos apodrecem

sob a terra escura.

Olho pela janela

e lá de fora só vem um forte cheiro de morte.

Tempos de amores

Houve um tempo de quimeras

amores ouviram promessas,

mulheres, comigo, partilharam planos

para umas, louco me dei

para outras, pouco me entreguei.

Houve amores de meses, de dias,

alguns tiveram a sorte das estações

a todos, porém, o inverno chegou,

a todos o crepúsculo tragou

e fui ficando só

de uma solidão mansa

calma dos loucos alucinados. 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O testemunho das flores

As flores....

a sintonia 

entre as árvores.

As flores cravadas

no asfalto.

Amarelo sobre o negro

a brilhar como o sol.

As flores cândidas

de abril em florescer

a vida que o mês viu nascer.

As flores testemunhas

da vida e da morte

do princípio e do fim.

As flores que viram

meu lento adoecer

florescem sobre o asfalto

hirtas, imunes à dor. 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O gesto humano da crônica

Escrever uma crônica em uma cidade grande é fácil. A vida pulsa, o trânsito é caótico, mil possibilidades de crimes e acontecimentos passam pelos olhos do cronista. Nas cidades pequenas a vida já é diferente, exige do cronista um olhar mais atento aos fatos, às pequenas coisas que acontecem ao seu redor. Um evento em uma feira, uma conversa de ônibus, uma fila de posto de saúde, a página de crimes da cidade. E olha que nem moro em uma cidade tão pequena assim.

Mas, acredito que sobretudo, a falta de assunto também vem do fato de eu estar saindo pouco. A pandemia trouxe uma nova realidade e eu que saía raramente à cata de vida para colocar nas crônicas, passei a sair menos ainda. Confesso que isso tem me atrapalhado a olhar o mundo. E escrever uma crônica exige do cronista um olhar sobre o mundo.

O cronista munido de seus olhos, papel e caneta nos bolsos parte em busca da inspiração ideal. Anda pelas ruas, visita mercados, passa pelo shopping, anda em feira de adoção de animais, artesanato, visita todos os lugares e olha qualquer coisa que possa parar em um texto. O trabalho do cronista não mudou muito desde João do Rio, que também saía à cata de histórias para sua Alma encantadora das ruas.

A vida do cronista é a rua, por isso os bares são tão importantes. É onde se para a observar o mundo. Ver pessoas, ouvir histórias, lamentos, choros que desaguam em um copo de bebida. Mas, hoje o mundo está cheio de cafés e gente chata. Não é a mesma coisa que ir a um bar ou uma padaria, encostar o umbigo no balcão e pedir uma média e um pão com manteiga na chapa. Não. Definitivamente não. Gourmetizaram até as padarias, que passaram a ser vistas como boutiques do pão. 

Por isso, ainda gosto daquela padaria de bairro, onde se chega, cumprimenta o balconista que já te conhece e sabe teu pedido. Nos bairros a vida ainda pulsa. Pode se ir ao mercadinho comprar carne ou um sabonete a anotar na fichinha sem que se consulte o CPF ou te exijam o maldito cartão de crédito. A vida ainda se baseia numa relação de confiança e dependência. 

O centro da cidade desumanizou as relações. São computadores e consultas a cadastros, números de celulares para enviar mensagem por Whatsapp, fidelizações inúmeras que nos transformam em cadastros. Por isso, ainda gosto de ir à feira, passo no banco, tiro o dinheiro e vou à feira do produtor no pátio do Willi Davis comprar em espécie, sentir o cheiro do pastel frito e do espetinho que é feito na hora. Ali é possível comprar com o produtor, sem caixas de mercado a passar códigos de barras em um leitor. Apalpamos a verdura, escolhemos o tomate e a abobrinha e a fidelização é feita ali na confiança da próxima compra que ocorrerá dois dias depois. 

Acho que estou um pouco cansado dessa vida mediatizada. Tudo são computadores e telas, reuniões por meet, os encontros reais desapareceram e com eles a crônica corre grandes riscos de sumir também. A crônica se faz no contato humano, nos fatos inusitados, no ponto de ônibus, com o vizinho chato que varre a calçada com água, com o bêbado do bairro, com a tia inconveniente que passa para dar um oi. 

Sem vida pelas ruas a crônica morre. Ela se nutre das situações inesperadas. Ela está no detalhe com que se levanta o copo para levá-lo à boca. O instante mágico em que a crônica acontece na cabeça do cronista se nutre dos gestos humanos. E é isto que estou tentando fazer hoje, buscar o gesto humano ideal, o assunto chave para a crônica que tento escrever e, por isso, flanei, falei de tudo e de nada, me perdi em assuntos, caí em incoerências e deixei a crônica fluir em busca de suas vítimas. 


quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Menino

Quando menino

ainda franzino

subia goiabeira

e vivia sem eira nem beira

a correr pelas ruas.

Jogava bole de gude,

bola de meia e capotão,

vivia as aventuras

de correr as ruas

de revirar os becos.

De traquinas,

mexia com as meninas

e apanhava do pai

sem nem dizer ai.

Os livros também lia

e nas horas de vigília

sonhava ser herói

para o mundo salvar.

Salvaria a mãe

das pancadas do pai,

faria do irmão

um grande gavião

para sonhar liberdade

e viver sua idade.

De tudo que sonhava

e de todos que amava

queria do choro livrar

e para eles uma casa dar.

Onde de manhã

teria café da manhã

com leite e pão

e uma suave mão

a acariciar um cão.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Inundação

 Nóis é rio

que corre ladeira abaixo

ninguém para a gente

descemos brandamente

no mansamente das águas,

mas nóis arrasta tudo

não confundam constância

com moleza

nóis é duro que nem pedra

com nóis não se brinca

que uma chuvinha

faz de nóis uma inundação.

Da partida dos poetas

 Foi

partiu

sumiu

deu as costas

e nem adeus deixou.

Não volta mais a este mundo

nada mais deve

deixou uns inimigos

poucos amigos.

Foi para não voltar

de mãos às costas

caminhou resoluto

sempre mudo

sabendo que não havia mais atrás.

Deixou uma filha,

legítima esta,

por criar 

nas mãos da mãe.

Não verá a chuva do dia seguinte

nem o sol da manhã

no sábado que virá.

A cerveja ficou na garrafa

o copo vazio

as risadas interrompidas.

Foi

e desta vez não voltará.

Não foi à esquina comprar cigarros

nem à padaria comprar pães.

Foi e esta palavra

se tornou assim definitiva.

Foi e não pôde dizer

nem sequer até logo.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Imagens

 Assim preso a teu corpo

busco minhas mãos

que ondeiam tuas curvas

desgovernando-se de desejos. 


És nua e meu desejo cresce

e afronta os limites da idade.

Neste corpo renasço e cresço de novo,

fazes de mim alegria e alvoroço.


Perco-me nesta extensão,

as flores cheiram e os odores voam

pelos ares anunciando o amor

que entrança seus braços.


És nua e por isso esqueço a vida,

o amanhã se perde como vaga lembrança

e resta-me o presente de teus seios

o caminho de tuas coxas.


Tudo me leva a esta selva molhada

e submerjo ao teu toque úmido

de polvo a me abraçar.

Sou náufrago e não me fujo a ti. 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dores

 Já tive dor de cabeça

de nem poder abrir os olhos.

Já tive dor de estômago

de enrolar na cama.

Já tive dor de barriga

de me contorcer sobre o assento.

Hoje tenho dor de alma

e os analgésicos não resolvem.

Por isso, caminho com minha dor

elegante pelas ruas,

a lustrar meu troféu de cidadão.

Mas assim é melhor

que me exibo puro com minha dor

desafiando os outros

a ter um andar definitivo como o meu. 

Um homem que caminha com sua dor

é algo assim de inesperado.

A vida....

 A vida é assim uma busca

ora achamos

ora perdemos

ora nos encontramos

ora não sabemos onde estamos.

Essa é a graça da vida

[se é que em algum momento sorrimos]

nossas certezas são raras

as casas onde moramos, passageiras

e a vida vai ficando para trás

como um riozinho fino

a escorrer entre as pedras.

Um hora desemboca no rio

mas até lá é longo o caminho,

vivemos mais de riachos

a nos matar a sede

do que dos rios a nos arrastar. 

domingo, 17 de outubro de 2021

Memórias de um leitor

 Amo livros. Há anos venho colecionando-os. Na verdade, desde os meus dezessete anos, quando passei a ter um dinheiro que me sobrava.

Comprava os livros novos ou usados. Os novos têm um cheiro indescritível, enquanto os usados estão carregados de histórias de seus antigos donos. Costumava imaginar onde era a casa original deles e as mãos que os manusearam. Eles tinham viajado, às vezes, quilômetros. É o caso de um exemplar de El mundo es ancho y ajeno, de Ciro Alegría. Adquiri a primeira edição, da década de 1940. Alguém o comprou no Peru, ele viajou até o Brasil e veio aconchegar-se em minha casa. 

É como se os livros tivessem um espírito. Eles povoam nossas casas, nossas estantes, os cantos vazios, a mesa da sala de estar. Eles habitam nossas casas, espiam nossas aventuras e desventuras e, sempre calados, guardam segredos como ninguém.

Habitar uma casa sem livros é muito triste. É como se ela estivesse abandonada, sem gente. Moro com inúmeras pessoas que me aguardam dentro das capas. Sempre as visito. Algumas aguardam mais tempo, a espera pode ser longa, mas nunca reclamam. É como ter uma mãe que mora distante e ficamos felizes só de saber que ela está viva.

Os livros são fiéis, negam-se a passar para outra mão facilmente. Não gostam de ser emprestados, ficar em casas alheias, longe de seus donos. A única coisa que realmente possuímos são os livros, neles podemos por nossos nomes e marcá-los com nossa identidade.

Amar um livro é como amar um filho. Damos a vida por eles. Por isso, a cena que mais me marcou quando assisti ao Nome da rosa, foi a aquela do frei que escapa ao incêndio carregado de livros.

Minha relação com os livros começou cedo. Mas não eram livros meus, eram de minhas primas, da época que elas haviam feito o ensino médio. Como eram poucos, os li algumas vezes, até que descobri, por intermédio de um amigo, a biblioteca pública de minha cidade. Ali passou a ser meu refúgio, lia para me salvar da vida que me aguardava em casa.

Se estava com fome, lia. Se estavam meus pais brigando, lia. Se estava triste, lia. Se tinha vontade de comer um doce, eu lia também até a vontade passar.

Foi assim que comecei a me relacionar com os livros. Não me importo muito em conhecer seus autores. Quero a história, a vida ali criada, é ela quem me salva todos os dias do desespero de habitar este mundo real, cheio de pessoas insanas e indiferentes.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Fim de semana

 Hoje é segunda-feira,

o fim de semana passou

e com ele suas dores e seus pesares.

Com sua tristeza ficou para trás

e será anunciado novamente

somente daqui a cinco dias.

Até lá o suicídio não é uma opção

o trabalho aguarda sorrateiro,

os boletos vencem dia cinco,

na escola há reunião

e os filhos veem eternos os pais.

As horas são contadas,

os minutos são escassos

diante dos inevitáveis fatos da semana.

Almoçaremos com pressa,

apenas para sustentar o corpo,

as notícias de jornais informarão o novo caso de feminicídio,

desgraça de um Brasil atrasado, 

a gasolina terá subido outra vez,

a energia estará os olhos da cara

e apagaremos as luzes

como alguém apaga seu último instante de vida.

Mas não é fim de semana

e a vida atropela

sem dó nem piedade.

Alguém cogita se atirar do sétimo andar,

mas resolve esperar o fim de semana

quando as dores recrudescem 

e o café esfria na xícara

enquanto alguém grita ao longe.

sábado, 2 de outubro de 2021

Somos todos hermanos?

Sábado chuvoso, saí logo cedo para ir à padaria. Comprar uns pães, algum bolo e algum salgado para passar o dia. Há dias que precisava chover e desde ontem chove. Isso deixou a cidade com um aspecto um pouco mais agradável. Parei o carro perto da Banca do Jonny Japa e fui caminhando o restante do percurso a pé, olhando a cidade, os seus passantes e pensando em algum motivo para, depois de mais de um ano, escrever uma crônica.

Com a pandemia e tomando remédios, parte da inspiração se dissipou e por mais que a procure, até mesmo embaixo do sofá, não a encontro. Difícil acertar a mão, encontrar o texto ideal para expressar os sentimentos. Ia eu com esses pensamentos até a padaria. O olhar curioso procurava uma vítima para meu texto, uma situação inusitada que pudesse ser material da crônica.

Na ida nada encontrei e voltei desanimado para o carro. Confesso que os finais de semana não têm sido fáceis para mim. A pasmaceira do dia, a inutilidade das coisas me deixam muito triste e reflexivo e não é porque está chovendo, nos outros fins de semana fazia sol e eu estava em pior estado. 

Peguei o carro e comecei o percurso de volta para casa. À vezes, tenho deixado moedas no carro para emergências ou alguma outra situação, mas no dia de hoje nada trazia. Ao longe notei algo que vejo todos os dias, porém, sem me dar conta. Um rapaz debaixo da chuva com um cartaz nas mãos, passando de janela em janela pelos carros.

O rapaz sorria e fazia gestos com a cabeça como se compreendesse os nãos que recebia a cada parada. Ele é venezuelano e estava no semáforo da Avenida Colombo. Do outro lado da avenida de quatro pistas estava a esposa, também pedindo. Em cada cartaz, escrito num português sem jeito, a história deles de imigrantes em uma cidade do noroeste do Paraná.

Chove, mas mesmo assim, os venezuelanos estão pelas ruas de Maringá. Parados a cada semáforo, pedem socorro para a situação que vivem. Alguns nos chamam de hermanos e enfrentam a frieza de nossos gestos que se recusam a estender a mão. 

Hoje chove e vi um casal de venezuelanos separado pelas pistas da Avenida Colombo. Eles pedem, não têm outra saída. Juntos no mesmo ideal de sobrevivência levantam seus cartazes e com eles suas esperanças são renovadas. Esperança de levar para casa o alimento que o filho espera, o dinheiro para a comida confortar o estômago e a certeza de que um dia serão aceitos na sociedade para onde fugiram. 

Será que somos hermanos? Voltei para casa seco e em segurança, trazendo nas mãos o saco de pães que comprara na padaria, enquanto isso, o casal de venezuelanos tomava uma chuva fria nas pistas da Avenida Colombo, recebendo seu batismo de latino-americanos em terras estranhas e inóspitas à dor alheia. O que será que eles comerão esta noite? Não pude deixar de pensar quando levei o primeiro pedaço de pão à boca. 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Fuja em frente

 Hoje é dia de sorrir

chorar não é mais uma opção

saia de casa, deixe a porta aberta

quem sabe o amor ou o ladrão entre

e retire de seu peito a dor.

Bote um sorriso no rosto,

passe um batom ou tire a barba

jogue com a sorte

faça uma ligação ou mande uma mensagem

para aquele antigo contato

que já habitou seu corpo,

que já gozou em sua boca do prazer.

Seja como a aranha, teça tua teia

de amizade, de amores, de ex-dores,

mas não fique parado,

bote um tênis ou um salto alto

e ande, dance, pule aquele antigo pensamento

e deixe a porta do passado fechada

atrás de si, para que ele não lhe persiga.

Não deixe rastros, só marque passo à frente

e marche, porque parar não é o ideal

corra, acelere o passo

e quem sabe na esquina ou na rua ao lado

surja alguém também a fugir do passado. 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Reminiscências de um verão

Escrevo-te e faz calor

um intenso calor de setembro

que a primavera não teve o dom de deter.

Sinto minha pele suar

e imagino-te assim nua

a suar distante de mim.

Imagino-te despida

que é para melhor mapear-te

e tento prender-te entre os dedos

enquanto escrevo esta carta.

Sei que não me ouves nem me sentes

e grito-te como se pudesses me ouvir

na tua ausência de todas as horas

a roçar-me a pele da lembrança.

Faz calor e desejo um banho gelado

para acalmar-me estes pelos eriçados

esta vontade de ti que me tortura

mesmo não sabendo-te minha.

É mais distante que te sinto melhor,

espiralada em fumos e incensos.

Sobes como vapor quente pelos ares

e o sol queima-te a face.

Faz calor de um intenso úmido

a molhar-me as palmas das mãos.

Sinto a fronte suar e o coração acelerar,

são lembranças de um tempo

que te tive entre meus braços.

Hoje faz calor, é bom insistir, e sinto meu corpo suar

são as ausências que nele se ressentem

se amolece e escorre pelas bordas

e faço-me úmido, ausente, quente.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O pássaro

 O pássaro preso em minha garganta

pia agonizante seus instantes de vida.

Não sei quando nem como engoli esse pássaro

que aprisionei dentro de mim.

Fui gaiola, fui prisão

impedi seu voo

e ele sofreu preso ao meu corpo.

Quando abri minha boca

o pássaro cantou seu último canto de liberdade

e expirou à hora da ave-maria .

Se pudesse cantava,

mas só sei falar

e lamentar a morte do pássaro.

Convite

Ei...vem cá

tira a tua roupa,

mas não assim

como se estivesse no médico,

que quero ver tuas nuances

quero ver como te despes

para o crime de nossos corpos.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Percursos

Tenho as veias dilatadas

e um rio branco-vermelho

corre pelas margens de meus olhos.

Sou errante pelo caminho da vida

dou murros em pontas de facas

abro canivetes, soo a ameaças

e durmo solitário com a cabeça

em uma pedra.

À noite, porém, não tenho a escada de Jacó,

não subo aos céus, nem vejo Deus.

Choro solitário à beira do Rhône

e minha vida corre com as águas.

O passado espanca-me aos berros

enquanto eu, calado, colho pedras

com um sorriso nos lábios.

sábado, 11 de setembro de 2021

Liberdade

Há um pássaro morto sobre a mesa

suas asas estão quebradas

suas pernas estão amputadas

e o voo da manhã aterrissou 

nas mãos do autor de sua morte.

Um canto de ilusão ficou na memória

de quem ouviu seus gorjeios,

mas de quem era a voz

que gritou perigo ao amante do ar?

Tenho o peso do pássaro morto

em minhas rudes mãos.

O pássaro ousou sonhar

novo céu, nova pátria

onde só havia espaço para a escuridão.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Da independência à morte

Que povo é esse

que no dia da Independência

pede grilhões?

Onde estão as vozes da liberdade

o condor de Castro Alves

o abolicionismo de Luiz Gama?

No dia da liberdade

pedimos a prisão de nossas almas

o silenciamento de nossas vozes.

Regredimos à infância 

de um país sem rumo,

entregamo-nos às mãos de um tirano

e oferecemos as costas à chibata.

Aceitamos comer pouco

beber mal e ter pesadelos

com a cabeça ao travesseiro.

Onde o 7 de setembro, onde a liberdade?

O colonizador ri às nossas costas

vendo-nos entregue a tão vil cidadão.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Ultrapassado

 Perdi o tempo

perdi a poesia

a vida passou rápida

e eu, lento, fiquei.

Meus versos são antigos

e eu ultrapassado.

Versejo ao nada

e mordo a língua

só para do sangue sentir

seu quente vermelho

a escorrer pela minha boca

alma a dentro. 

Busca

 Mergulho nas palavras

com as duas mãos.

Os dedos enrijecidos pelo tempo

desentranham dores e sangue

de uma época passada.

Luto com e contra as palavras,

que sozinhas pouco significam

juntas, porém, armam contra mim

um exército de acusações.

Dou às palavras meu sangue,

duelo com minha alma

contra a dura gramática

e pedindo ritmo à sintaxe,

mergulho na solidão dos duros vocábulos.

Tento a poesia que, indiferente,

foge às minhas mãos,

fazendo de meus dedos ampulhetas

dos instantes efêmeros. 

Devaneios

 Este meu corpo, frágil barco

a navegar sempre em busca

de outro corpo para atracar

é apenas um reflexo de mim.

Choro e rio, rosno e mostro os dentes,

mas é só por costume

de esconder o choro convulso

a que me entrego nas solidões.

Sou pequeno, sou indefeso

qual um menino com sua bola

a sonhar campos imaginários

onde corro herói de todos.

A máscara que carrego

sob a face oculta espera

o afago de uma divina mão

a puxar-me do poço onde me encontro.


O menino e a pipa

 Eu era um menino

com sua pipa

correndo irregular

pelas ruas de terra.

E o mundo era uma pipa

solta linha, prende linha

e a tarde acontecia

sem rumores de futuro.

Eu era um menino

e havia uma pipa solta no ar

rebolando no vento,

ensaiando mergulhos no nada.

Mas veio outra pipa,

maldosa em seus ardis,

e cortou minha linha

correu o cerol na rabiola

e eu não era mais um menino

com sua pipa no ar,

era apenas um homem 

com uma lata na mão

esperando as dores futuras.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Despe-te

mas não a mim

e sim a ti

que te acaricias

como uma gata

a espraiar-te pela cama,

esta devastada cama de desejos

que a mim não me cabem teus  beijos.

A mim e não a ti, acaricias-me

com teus dedos

deixa-os percorrer meu aberto peito

que a desprezos e vãs loucuras

despertaste-me na cama

essa tumba tão vazia

onde jazíamos febris

das peles que se tocavam.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Você que me ouve, pode me ligar!?

Sou do tempo das ligações telefônicas. Ligava-se, dizia-se alô e começava a conversa. Hoje as pessoas mandam áudios, alguns tão longos que parecem podcasts. Confesso que não ouço nenhum áudio que passe de trinta segundos. O camarada pode ligar e manda um áudio enorme, no qual não há interação alguma, só ele fala e nada de ter resposta. 

Sou do tempo em que se batia papo por telefone, que se ligava para a namorada do orelhão e ficava contando os minutos da ficha DDD para colocar outra. Ia com o bolso cheio de fichas compradas à farmácia. E, ali, encostado ao orelhão falava por longos minutos. Depois passei para o cartão e ligava sempre perto da meia noite para a ligação durar mais tempo. 

Depois surgiram os celulares, mas ainda eu ligava. A outra opção era o sms. Ficava a trocar mensagens pelo celular e quando a saudade era demais, ligava. Lembro que comprei um celular Nokia e fiz uma conta, porque podia ligar para a mesma operadora por tempo ilimitado. O problema era quando saía da região e entrava em roaming e os créditos não davam para nada.

Sou do tempo que para conversar mais se fazia conexão pelo MSN e ali podíamos falar por um bom tempo. Tinha a cutucada que fazia a tela vibrar. Hoje o sujeito te deixa falando sozinho e vai embora sem direito a reclamações. Dois dias depois te responde como se a conversa não tivesse ficado interrompida. Ficamos sem educação.

A vida de Whatsapp mudou as relações, mandamos emoticons, gifs, vídeos, fotos, mas pouco nos falamos de verdade. Ficamos digitando na falsa impressão de comunicação. Sou do tempo em que se gostava de falar, de perder tempo numa longa conversa, de chegar atrasado em casa porque se encontrou um amigo e ficou-se a falar. 

Acho que quero uma vida mais presente. Onde as pessoas se falam, se tocam, ouvem a voz uma da outra sem a necessidade de um celular a intermediar a conversa. Fazemos tudo por celular: reuniões, vídeo-chamadas, mensagens, áudios, conversas infinitas desde que se tenha paciência para digitar. Queremos comunicação, mas não queremos contato de verdade. A vida ficou meio vazia e de tempos em tempos penso em me desfazer do Whatsapp, porque você que me ouve pode me ligar sem cerimônias. 

Na casa de minha mãe

o leiteiro ainda passa

o carro da funerária

ainda anuncia a morte

o café ainda é coado

no coador de pano.

Na casa de minha mãe

ainda se come macarrão com frango

aos domingos.

Na casa de minha mãe

o filho ainda passa todos os dias 

a dizer oi e tomar o café.

Na casa de minha mãe

ainda o vendedor de cocada

bate ao portão

os testemunhas de Jeová

ainda trazem livretos

e são expulsos da mesma maneira

de quando eu era criança.

Na casa de minha mãe

ainda se beija o rosto antes de dormir

ainda se pede a benção

enquanto o amor existir.


 Meus versos estão ali

calados e solitários

porque não resistiram à dose do dia.

Cabe no espaço da página

uma dose de poesia

dois dedos, talvez três

para embriagar da mente

a altivez da alma.


 Hoje é preciso partir

a ilusão da chegada

não suportou a espera dos dias

e findo o período

o corpo quer sair

entregar-se à estrada

conhecer a vida

nos fazemos no caminho

onde a dor se estende à alma.

 Nas pontas dos dedos

saltam as palavras na tela

surgem mundos, emoções

vidas acabam, amores nascem

casamentos de desfazem

tudo nas pontas dos dedos.

 Hoje o dia amanheceu sujo

precisando de uma limpeza

das vistas, das mãos

que entregues à reflexão

esfregavam-se uma na outra.

É preciso partir

deixar o pó da estrada

baixar sobre os rastros dos pés.

Mas é preciso ficar

aguentar a dor do outro

estender as mãos

abrir os ouvidos

na comunhão da longa vida.

Às vezes é bom pensar

às vezes é bom calar

o nó duro no fundo da garganta.

Às vezes é bom falar

nada de digitar

deixar a voz fluir

a corrente sanguínea agir.

Às vezes, mas só às vezes

é bom não ser nada

e na inércia ficar.

sábado, 19 de junho de 2021

Sim. Eu preciso de um corpo

para concretizar o desejo.

E tu és esta mágica insana

a rebolar sobre mim.

Nada pede o espírito

quando o corpo tudo sufoca.

Tenho-te como a estas pedras

sobre quem o mar arrebenta

em suas fortes ondas.

 Sempre pensei o amor

como um soco no estômago

que remoeria dentro de mim

as entranhas a ponto de se desfazer.

Hoje não sei direito o que é o amor,

será que ele pode ser sutil como uma flor?

Será que o tenho entre as mãos

e o sufoco com a um pássaro que quebrou a asa?

O que é o amor senão esta dor

que ora vem em ondas a me afogar.

Olho a foto e meço com o olhar

a distância entre nossos corpos,

eles são feitos de matéria

um está fixado no tempo

e outro vive a dor da ausência

separados estão por um palmo de nariz

e ali tão presente sentada

estás tão longe que eu não posso tocar-te

com as pontas de meus dedos.

O retrato ri ironicamente de mim

e eu choro a distância de uma foto.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

 Doce é o afago

e leve é a sombra que me trazes

como em um dia de sol.

Matas-me a sede

desta tua pele quente.

Ressecas-me os lábios

como o vento seco do inverno.

Mesmo assim me dizes o que fazer

e eu, louco, obedeço com um sorriso. 

Vou para minha amante

com a corda no pescoço.

Sinto nas costas o peso do cordeiro

que leve branco se imola como vítima.

Será que todos amantes sentem este peso?

Será que todos se imolam no altar do prazer?


As ruas

As ruas com seus gestos

acenam às pessoas

indiferentes a seu asfalto.

Nelas circulam o medo

do encontro inevitável

com a alma gêmea

e com o bandido

que levará carteira, anéis e alma.

A rua sempre está nua

não vemos a rua, vemos as pessoas.

Há ruas famosas, desconhecidas

que lembram alguém em suas placas.

A ruas cortam a alma das cidades

e levam sem rumo ao inesperado destino. 

quarta-feira, 16 de junho de 2021

 Este não é um poema,

é um texto em versos,

não resolverá tua vida

nem trará iluminação

aos teus obscuros pensamentos.

Este não é um poema,

não encherá a barriga

de quem passa fome

nem mudará os governos.

São versos que deslizam pela folha

e em troca de tua leitura

nada te oferecem a não ser palavras.

Mas, este pode ser um poema

e está confundindo teus pensamentos,

ainda assim não te dará pão

nem emprego, nem a vida que queres.

Este é um poema e um poema

vive só das palavras que é feito.

 Procuro no meu rosto marcas

de alguém que parou no meio do caminho.

Um pouco para lá, um pouco para cá

nem a juventude dos vinte anos

nem a velhice dos sessenta,

só os anos que trouxeram marcas

ainda indefinidas de uma estrada a percorrer.

Assim, sigo em frente

como quem rascunha a inacabada obra.

 Ando pelas ruas

disperso o olhar

em busca da inominável poesia,

em busca do inominável Deus

que nos abandonou

à nossa própria sorte.

Vejo pernas, rostos e expressões

da mesma humana dor

diante da incerteza do amanhã. 

 Estou preso a uma janela

aberta no tempo da memória,

reviro páginas, abro livros,

bebo águas antigas

e estão salobres.

Rebusco sensações

e só encontro ausências.

Teu rosto exala sabores de maçã

sobe-me um prazer estranho pela garganta

difícil de definir em seus êxtases.

Desço à rua e olho as flores

há pessoas pelas calçadas

e um rosto me chama a atenção,

talvez por me lembrar tuas faces de maçã,

talvez por lembrar aquele prazer

tão difícil de dizer.  

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Ladeira

Subo a ladeira lentamente,
meus passos são contados 
e fazem da subida cântico e calvário.
Quando descerei a ladeira?
Quando não estarei mais no topo
das eternas preocupações?
Mas a ladeira sobe
e eu subo a ladeira
rumo a mim mesmo,
que a cada passo se afasta a esmo
da explicação nítida de quem sou. 

domingo, 18 de abril de 2021

A arte de apertar as campainhas

Éramos garotos em uma cidade tacanha de tamanho e de espírito. Palmital não é uma boa cidade para se viver, a população é nociva, mesquinha e tem mania de grandezas sobre pequenas coisas. A vida corre lenta e sem mudanças, talvez o apocalipse pudesse por fim nela e a seus habitantes. 
Infelizmente, nasci em Palmital, suas ruas não me trazem saudades, apenas dores e tristezas. Mexer nesse baú é despertar sentimentos diversos, contraditórios, que se adequam bem aos domingos.  Por isso, hoje acordei com necessidade de lembrar.  
Queria escrever algo ao estilo de A cidade e a infância, de Luandino Vieira, mas não posso. Gostaria que a cidade onde nasci me despertasse amor, saudades, leveza, o peso dela, porém, não permite esses excessos da imaginação.  
Como falei, acordei com necessidade de lembrar. Éramos garotos em uma cidade sem pista de skate, com poucas quadras para jogar futebol e alguns campos quase privados, com pequenos mestres a dominar o local. Para piorar, alguns campos eram dos crentes e para jogar bola precisávamos frequentar os cultos e baixar a cabeça para os donos do campinho.  
Sair de Palmital foi o melhor que fiz. Terra de gente tacanha e mesquinha. Repiso aqui apenas para que não tenham dúvidas. Romper a bolha viciosa é um esforço gigantesco de se sobrepor aos filhinhos de papai, donos da cidade.  
Algo de bom tínhamos. A arte de incomodar as pessoas. Como garotos saíamos pelas ruas sem rumo, a pé, sem pressa para que a cidade não acabasse sobre nossos pés.  
Nosso gosto, e pelo que pude verificar esses dias ao falar com minha mãe se mantém, era o de apertar campainhas. Havia algumas técnicas. Solitário era mais fácil, apertávamos a campainha e saíamos andando naturalmente e mesmo sob acusação podíamos negar o feito. A segunda técnica era em grupo, de algazarra, de fome de aventuras, que como disse em Palmital sempre eram pequenas. Aí não tínhamos saída, era apertar e sair correndo; a tropa saía em passos de cavalo e ao dono da casa restava os gritos e os xingamentos.  
Um dia, num grupo de uns quatro garotos, o que incluía meu irmão, apertamos uma campainha. A dona da casa estava chegando de carro e saiu atrás de nós nos perseguindo com o veículo pela rua. Subíamos calçadas, escondíamos atrás de carros e essa mulher nada de se satisfazer. O ódio brotava cada vez com mais força sobre os olhos dela e ela perseguia. Logo havia um prazer mútuo entre correr e correr atrás e aquilo se prolongou por vários minutos, até que convencida de ter dado uma lição nos garotos, voltou para sua casa satisfeita.  
Saímos ofegantes de trás do veículo, ao mesmo tempo o riso brotava de nossos rostos. A aventura da noite estava garantida, nossa fome de apertar campainhas saciada. Havia duas saídas, voltar para casa e descansar ou ir até a praça da cidade ver o movimento. Como ainda era cedo, fomos para a praça ver os rapazes ricos passar de carro e as meninas pobres ou ricas a esperar que um deles parasse e as levasse para dar uma volta. 
No caminho de ida e volta ainda fizemos mais algumas vítimas.


terça-feira, 30 de março de 2021

Que sobre teus pés possas andar de novo

A vida é uma tênue linha presa ao nosso coração. Ele bate, bate, bate incansavelmente, dando-nos a impressão de que somos eternos, de que jamais partiremos e embarcamos nessa viagem sem volta mal abrimos os olhos. A consciência da efemeridade da vida vem apenas com a morte, ela nos avisa que temos um fim.

À tarde recebi um telefonema de minha mãe. Logo imaginei que algo ocorrera, porque ela não me liga poucos dias depois de eu ter ligado. Deixamos criar saudades, ausência, falta e, então, ligamos de novo, dizemos oi como se tivéssemos nos falado pela manhã. Desta vez, porém, minha mãe me ligou e do outro lado a ouvi chorar; imaginei que fosse minha prima Sandra e realmente era. Havia falecido à tarde, com o cair do sol no horizonte. Agora mesmo, enquanto escrevo, faz poucas horas que minha prima morreu. O fio tênue que a ligava à vida se desprendeu e ela se foi.

Pouco saiu da cidade onde nasceu. Sempre esteve ligada à terra e à família; não deixou filhos, mas amava e mimava os sobrinhos com doces de seu bar. Ela mesma exagerava nos doces e não podia. Tinha diabetes há vários anos. Descobriu logo cedo que herdara da mãe a doença. Só não podia imaginar que tão cedo lhe explodiria a bomba no corpo. 

O diabetes foi insensível, cruel, começou levando-lhe um dedo, depois meio pé, depois mais meio pé até que ela que tão bem se equilibrava sobre os pés, andando pela cidade com toda velocidade que as pernas lhe permitiam, se viu em uma cadeira de rodas. Foram anos de expectativa, mas as feridas nunca fecharam, teimavam em abrir fendas em seus quase pés, infernizando-a dia e noite. 

Agora, o que fazer com essa ausência? Com a dor que ficou, com seu vazio? Minha prima se foi, morreu, deixou de respirar numa tarde de fim de março, próxima à Páscoa. A Semana Santa ficou mais triste que de costume e o silêncio deixado por ela, neste momento, preenche todos os vazios. Estou longe, lutando para que as palavras façam sentido, para que o sentimento escorra pela página, mas sinto que as palavras estão insensíveis à minha dor e parecem não realizar a pessoa que foi Sandra.

O que fazer quando qualquer ato será inútil, quando até mesmo minha presença não será percebida por ela? Faço este texto de despedida, mas o sinto tão cruel comigo, com ela, tão fraco, que nem chega à altura do que ela foi. Ao menos, foi amada pela família, que se acostumou com ela ali, na cadeira de rodas, ora bem, ora mal, indo e vindo do hospital, que, desta vez pensamos: ela voltará, olhará o mundo com resignação, com aceitação de quem não pode fugir ao destino. Ela, porém, não voltou, não se sentou de volta em sua cadeira e nem olhou o movimento da rua.

A cadeira está vazia, não terá mais sua dona sobre ela. O bar ficará mais triste, com a ausência daquela figura sentada à sua porta, sempre disposta a ajudar a família, a irmã, minha mãe. Sinto-me ingrato neste momento, pois, provavelmente não irei ao velório, nem dará tempo de eu chegar, pois a pandemia devora a todos, até aqueles que não pereceram por ela. O tempo dos velórios foi reduzido, os adeuses encurtaram, nem podemos nos acostumar com a ausência, com o nada que sobra atrás de nós. 

Como se acostumar à morte? Com o vazio deixado pela pessoa? Com a ausência da voz? Amanhã ela já não estará entre nós, nem seu corpo mudo nos deixará perplexos. Haverá apenas o nada, os bons dias sem sentido, o espaço vazio à mesa, a tarde em que ela não mais chegará para ficar com minha tia, enquanto minha mãe iria à igreja. Haverá apenas a memória, as recordações de alguém que começa a se apagar desde a última vez que seus olhos contemplaram as paredes brancas do hospital. 

Por isso, estico-lhe a vida, estiro um pouco mais o fio de sua existência, gravo na folha em branco a sua presença, para que ela fique um pouco mais conosco, para que ainda não diga adeus em definitivo, para que perdure nas palavras, para que se ancore nelas, como um barco ao cais. 

Estás agora sozinha em teu caixão, fechada numa funerária, aguardando a despedida de amanhã, Quem embalará tua cama para que durmas? Para que não tenhas medo do desconhecido? Quem te darás a mão nesta última noite aqui na Terra?

Este é o meu adeus a ti, Sandra. Minhas palavras de despedida, meu aperto de mão, meu beijo no teu rosto, que agora gelado não poderá sorrir. Sempre estarás colada à minha história, à minha infância, às visitas que eu fazia escondido à tua mãe(quando a família estava brigada), às andanças pelo sítio, pela cidade, nos breves momentos em que te vi, quando visitava minha mãe e ia até o bar para conversar contigo. Da última vez não pude te ver, pois não estavas bem e dormias. Agora dormes para sempre e não podes me ver novamente. Dou-te minhas palavras, faço-te esta lápide de letras que perdurará para sempre.

Dorme bem, dorme em paz, sem dores e que no outro mundo possas andar de novo sobre teus dois pés. 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Crescimento

Não percebi quando os móveis começaram a ganhar quinas. Meu mundo arredondado desaparecera. Vieram as primeiras batidas, os primeiros golpes na cabeça. Antes via o mundo de baixo, agora era um trombar constante em quinas de mesas e armários. Era como se aquele ambiente doméstico antecipasse as dores que viriam mais tarde.

As grandes aventuras ficaram para os livros. Neles eu era livre e jamais me machucava. No mundo real vivia a me bater contra os objetos e pequenos ferimentos passaram a habitar meu rosto.

Uma vez, vendo pequenos pingos que subiam ao ar, fiquei curioso e subi em uma cadeira. Vi um mundo borbulhante. Minha mãe fritava batata doce, ao menos é a imagem que ficou em minha memória, e eu querendo ver os pingos subirem, peguei num copo d'água e atirei dentro da frigideira. Meu rosto virou um campo de guerra, não havia onde por o dedo indicador. Minha mãe curou as bolhas com creme dental Kolynos, nem um marca ficou em meu rosto. As únicas manchas que tenho são da catapora que veio depois. 

Não fui uma criança forte, pelo contrário, faltavam forças para muitas atividades. Vivia adoentado, comia pouco e quase desmaiava. Também, nunca havia muita comida em casa, mas não era isso que me afligia na época, penoso era ter de comer o que me punham à frente do rosto. A noção de escassez ainda não habitava meu imaginário.

Então, minhas aventuras eram dentro de casa, quando muito no quintal. Nossa casa tinha apenas dois cômodos, era alugada e de fundos.

Um dia, lembro-me bem, entrei em contato com a morte. Vi um homem levar um tiro na cabeça. E minha casa ficava nos fundos, numa descida grande. O sangue em breve desceu; antes foi tomado pelos cães que vieram lamber a poça vermelha que se formou em torno da cabeça do morto. Depois ocupou todo o quintal. Com a lavação, mais sangue desceu e lavou as hortelãs que havia no fundo de casa e que serviam para os chás contra lombriga. 

Naquele dia, aprendi que nem tudo o que vemos contamos, porém, a imagem jamais saiu de minha cabeça e como um quadro fixou-se entre as primeiras memórias de minha infância. Eu estava crescendo. Jamais deixaria de lembrar. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

"Ele está de olho é na B[o]utique dela"

Chegar aos 40 anos não é fácil. É a idade em que nossos ídolos da infância começam a desaparecer. Eles morrem sem dizer adeus, somem das telas, dos jornais, das playlists de música, sendo que alguns ainda estão preservados em nossas estantes no velho e bom vinil, que agora voltou à moda. 

Hoje, dia 07 de janeiro, não foi diferente, mais um dos meus pilares da infância desapareceu: Genival Lacerda. Lembro-me de ser bem pequeno quando ele aparecia no Chacrinha. Genival usava sandálias de couro, calça branca e camisa colorida, além de seu inseparável chapéu. 

As músicas de Genival incendiavam a criançada. Quem nunca se divertiu com "Severina Xique Xique"? E quem nunca descalço, sim, naquela época as crianças ainda andavam com os pés no chão, rodou ao som de "Ele está de olho é na boutique dela", dançando mesmo com o irmão mais velho ou mais novo pela sala. 

As músicas com duplo sentido ainda não eram politicamente incorretas e todos se divertiam ao som do forró na velha Telefunken preto e branca, com tela colorida na frente. É meus amigos, nem todos tiveram televisores coloridos em casa logo que a novidade surgiu. Em muitas casas, o velho televisor de botão seletivo reinava. Nem por isso, éramos menos alegres. 

Era  tempo de colocar o toca-fitas e ligar na rádio pedindo ao locutor uma música que era para gravar. Atentos, todos esperavam a voz dizer que podia soltar o play. E, ali, a felicidade reinava, trocávamos fitas, emprestávamos e devolvíamos os cassetes que animavam nossos fins de tarde.  

Nem todos têm a honra de que no dia de sua morte cantem, se alegrem, ouçam suas músicas, ensaiem passos de forró e cantem: "Mati o véio, mati o véio". Assim, penso que deveria ser o dia de minha morte, com muito canto e alegria, nada de choros ou tristezas, mas sim, que, cada um, trouxesse consigo um canção no coração.

Viva Genival Lacerda, a alegria de muitos corações por esse Brasil a fora.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Olho para as coisas e elas estão mudas
os móveis calados guardam memórias
de conversas, de mãos, de ideias.

Há confissões detrás da cama, perdidas atrás do sofá
há solidões guardadas dentro das gavetas
há palavras jamais pronunciadas
que morreram na garganta antes de ser.

Meu Deus, onde está a poesia, o encanto?
Vejo boletos chegando, contas a pagar
afazeres domésticos a me distrair.

Uma criança grita no fundo do corredor
e há tanta vida neste gesto
que não sei como agir diante do mundo
criado pelo sorriso e pelo encanto da infância.

Os homens estão mudos e olham para baixo,
perderam as esperanças e as forças para reagir,
caminham para o nada diante de si.

Como abrir a porta? Como beijar a mulher
e os filhos ao entardecer. 
Não trago nada em minhas mãos
e mesmo assim são felizes em me rever,
justo eu que não suporto olhar-me
que não sustento o olhar do Outro
a me enfrentar no espelho.

É noite e não sei o que fazer com o dia de amanhã
há tanto peso sobre meus ombros
há tantas culpas que desconheço,
mas sigo assim mesmo para cama
sem solução para o conflito que deixei sobre a mesa.

Sou o homem respondendo à voz paterna:
"do seja homem, não chores",
sem saber bem o que isso significa.
A carteira de identidade diz ser eu
o homem da foto, nascido há exatos 41 anos.

O que dizer se ainda procuro o menino
sobre o pé de limão no fundo do quintal?
O que fizeram com o menino que fui?
Ainda procuro-o em meu rosto
perdido em algum canto do universo.

Não sei quando herdei a patente de homem
só percebo que os móveis me entendem,
pois deixaram de ser madeira, tronco, raízes
e foram encarcerados em formas domésticas.
Acho que é isso: o menino que há em mim
reclama do homem que me tornei
domesticado pelas obrigações, pelo trabalho
pela imagem que deram a mim.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Enfim, 2021 começou. Mas o que mudou?

Segunda-feira, primeiro dia útil do ano de 2021. Enfim, o ano começou de verdade. Os boletos começam a vencer no dia 05 e a vida normal segue seu curso inevitável. As notícias tampouco mudaram. O Coronavírus continua ativo, gente morrendo, gente sendo internada, pessoas debochando da doença, outras aglomerando em festas de mais de 2000 pessoas e um presidente que não se aproveita meia dúzia de palavras. É, o ano do brasileiro não começa fácil. Seria uma replay de 2020?

O fato é que entra ano, sai ano, a realidade do pobre e do trabalhador não muda. Ambos fazem listas de desejos, anotam sonhos, prometem jogar na loteria, comprar mais Vales Sortes para ganhar uma graninha extra no fim de semana, ligam para rádios populares a fim de ganhar um vale compra, um gás, um churrasquinho e seguem suas vidas carregadas de frustrações, assistindo a programas da Rede Globo e ainda não acreditando que Silvio Santos esteja vivo e com as mesmas brincadeiras de mais de 30 anos. 

É ano novo e a verdade é que nada mudou. O calendário apresenta novas datas, mas nada que fuja de velha semana que começa no domingo e termina no sábado. A rotina é a mesma. Quem tem trabalho vai trabalhar, quem não tem, enfrenta filas para arrumar emprego, manda currículos, ouve mais não do que sim e segue vivo enquanto Deus permite ou algum maluco não o atropele na Avenida Colombo, por não respeitar o semáforo.

Com certeza o prefeito eleito apresentará um plano de governo que não altera em nada a vida do cidadão. Vai reformar meia dúzia de praças, mandar capinar algum parque, enquanto nos arrabaldes a população tem de andar na rua porque o mato cobre a calçada

O jornal local apresentará mais um caso de feminicídio, a população ficará horrorizada por dois dias e depois esquecerá o fato, até que novo corpo apareça estendido na frente dos filhos. Alguns moradores continuarão jogando o sofá velho no meio da avenida, outros malucos descontando sua raiva no pobre animal que tem em casa.

Além disso, o racismo correrá solto de novo com as pessoas negando que são racistas, mas julgando o próximo pela cor, mudando de calçada quando passa um negro, achando que serão assaltadas quando passar perto de um menino negro ou pardo. Sem dizer que farão posts racistas protegidos pelas telas dos computadores e por meio de perfis falsos na rede mundial de computadores.

Enfim, 2021 começou e nada mudou. Crianças continuarão sendo mortas por balas perdidas, o desemprego não dá sinais de recuo, a cesta básica fica cada dia mais cara, o povo irá às ruas por causa de seu time de futebol, porém, descansará a bunda no sofá de casa quando perder mais um direito. Esse é o brasileiro, alienado e feliz, achando que mora no melhor lugar do mundo, porque aqui não tem terremoto, não passa tornado, não vive em guerra. O brasileiro é pacífico e jamais rosnará até que tentem tirar de sua boca o último pedaço de carne que resta em seu prato. 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Espera

 Antes, era aquela alegria da espera
aqueles medos juvenis
a boca tremendo, as mãos suando
o corpo todo numa entrega insana.

O coração desconhecia as tristezas
e as más notícias rondavam a vizinhança
sem nunca bater à minha porta
sempre aberta à espera.

Hoje, é o mundo em colapso.,
a boca não treme mais, as mãos estão secas
e fazem cumprimentos obrigatórios.

Mas, porque sei da espera
sou feliz e gozo da alegria
que marca o fim de todos os encontros.
Sou meio tudo
meio branco
meio negro
pardo por definição.
Sem eira nem beira
à margem de tudo
que os conceitos denominam .
Sem raça sem cor,
longe dos enquadramentos
sinto uma saudade
inexplicável de mim.
 Fui pelo caminho de tuas pernas
sem saber onde chegaria
se ao sul ou se ao norte.
À noite, dei-me com teu ventre
abrindo-se em flores
e deitei-me às tuas costas.
Percorri o caminho de teus olhos
tão silenciosos quanto os meus
e fiquei mudo ante o nada.
Um eco de vozes distantes
fazia coro às minhas dúvidas
e me dizia como deveria ser bom
ser livre
para namorar uma mulher negra.
Como deve ser bom
em um dia de chuva
cobrir-me com a pele
de tuas ausências.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...