sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O gesto humano da crônica

Escrever uma crônica em uma cidade grande é fácil. A vida pulsa, o trânsito é caótico, mil possibilidades de crimes e acontecimentos passam pelos olhos do cronista. Nas cidades pequenas a vida já é diferente, exige do cronista um olhar mais atento aos fatos, às pequenas coisas que acontecem ao seu redor. Um evento em uma feira, uma conversa de ônibus, uma fila de posto de saúde, a página de crimes da cidade. E olha que nem moro em uma cidade tão pequena assim.

Mas, acredito que sobretudo, a falta de assunto também vem do fato de eu estar saindo pouco. A pandemia trouxe uma nova realidade e eu que saía raramente à cata de vida para colocar nas crônicas, passei a sair menos ainda. Confesso que isso tem me atrapalhado a olhar o mundo. E escrever uma crônica exige do cronista um olhar sobre o mundo.

O cronista munido de seus olhos, papel e caneta nos bolsos parte em busca da inspiração ideal. Anda pelas ruas, visita mercados, passa pelo shopping, anda em feira de adoção de animais, artesanato, visita todos os lugares e olha qualquer coisa que possa parar em um texto. O trabalho do cronista não mudou muito desde João do Rio, que também saía à cata de histórias para sua Alma encantadora das ruas.

A vida do cronista é a rua, por isso os bares são tão importantes. É onde se para a observar o mundo. Ver pessoas, ouvir histórias, lamentos, choros que desaguam em um copo de bebida. Mas, hoje o mundo está cheio de cafés e gente chata. Não é a mesma coisa que ir a um bar ou uma padaria, encostar o umbigo no balcão e pedir uma média e um pão com manteiga na chapa. Não. Definitivamente não. Gourmetizaram até as padarias, que passaram a ser vistas como boutiques do pão. 

Por isso, ainda gosto daquela padaria de bairro, onde se chega, cumprimenta o balconista que já te conhece e sabe teu pedido. Nos bairros a vida ainda pulsa. Pode se ir ao mercadinho comprar carne ou um sabonete a anotar na fichinha sem que se consulte o CPF ou te exijam o maldito cartão de crédito. A vida ainda se baseia numa relação de confiança e dependência. 

O centro da cidade desumanizou as relações. São computadores e consultas a cadastros, números de celulares para enviar mensagem por Whatsapp, fidelizações inúmeras que nos transformam em cadastros. Por isso, ainda gosto de ir à feira, passo no banco, tiro o dinheiro e vou à feira do produtor no pátio do Willi Davis comprar em espécie, sentir o cheiro do pastel frito e do espetinho que é feito na hora. Ali é possível comprar com o produtor, sem caixas de mercado a passar códigos de barras em um leitor. Apalpamos a verdura, escolhemos o tomate e a abobrinha e a fidelização é feita ali na confiança da próxima compra que ocorrerá dois dias depois. 

Acho que estou um pouco cansado dessa vida mediatizada. Tudo são computadores e telas, reuniões por meet, os encontros reais desapareceram e com eles a crônica corre grandes riscos de sumir também. A crônica se faz no contato humano, nos fatos inusitados, no ponto de ônibus, com o vizinho chato que varre a calçada com água, com o bêbado do bairro, com a tia inconveniente que passa para dar um oi. 

Sem vida pelas ruas a crônica morre. Ela se nutre das situações inesperadas. Ela está no detalhe com que se levanta o copo para levá-lo à boca. O instante mágico em que a crônica acontece na cabeça do cronista se nutre dos gestos humanos. E é isto que estou tentando fazer hoje, buscar o gesto humano ideal, o assunto chave para a crônica que tento escrever e, por isso, flanei, falei de tudo e de nada, me perdi em assuntos, caí em incoerências e deixei a crônica fluir em busca de suas vítimas. 


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