quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A flor do coração

 

        Recolheu-a na concha de suas mãos. Pequena, frágil, de um rosa antigo emocionante. Era a primeira flor que colhia para sua mãe. Estava ali solta, no pátio, à hora do intervalo. O jardim da irmã. Assim as crianças chamavam aquela parte da escola. Era uma flor pequena, mas que cabia perfeitamente aconchegada nas palmas das pequenas mãos. Cheirou a flor, sentiu algo que os adultos chamam de emoção.

            Valentina mostrou a flor para sua amiga Maria Luiza. É para minha mãe, disse. Vou levar comigo para sala. Você me ajuda a guardá-la? Meu pai vem me buscar à tardinha, quando a professora deixar de falar com o fim do dia.

            Prestou pouca atenção à boca da professora, que se mexia insensivelmente à sua flor. Não entendia porque a professora não compartilhava do mesmo sentimento seu. Uma flor, só minha, só para minha mãe e a professora descuidava de tão grande momento.

            Seguiu olhando sua flor. Se tivesse a noção de horas acharia o dia imenso. Mas, apenas contemplava sua flor, a flor que seria a primeira que daria para sua mãe. Aquilo era tão imenso, que não cabia bem em seu coraçãozinho. Teve a certeza de que estava certa colhendo a flor porque ninguém a censurou. Ficou ao seu lado, na mesa. Sua amiga, de longe, guardava a flor com o olhar, feliz por Valentina estar com a flor que daria à mamãe quando ela chegasse em casa.

            "Valentina do infantil quatro", soou a voz no corredor. Era a hora de ir para casa. Certamente seu pai estaria no portão à sua espera. E quando desceu a rampa, correndo com sua amiga Maria Luiza lá estava seu pai, aguardando por ela. O mundo era estável e seguro até aquele momento.

            Olha papai, trouxe uma flor para mamãe. Vou dar para ela quando chegar em casa. Tenho uma surpresa para você filha. A mamãe está no carro nos esperando. Valentina soltou a mão de seu pai e acelerou seus pequenos passos. Antes, ainda, pôde se despedir da amiga, que correu até ela dizendo tchau.

            Papai, quero dar a flor para mamãe. Olha que bonita a flor, peguei no jardim da irmã. A jabuticaba acabou, não tem mais. Tem essa flor que achei linda. Olha filha, mamãe está no carro, vai poder dar a flor agora mesmo.

            Entrou no carro apressada, sentou-se na cadeirinha e disse: olha mamãe, trouxe essa flor para você. Que linda filha, mamãe vai guardar, obrigada. Gostou, mamãe? Gostei, é linda.

            Valentina estava feliz, um mundo novo se abria diante de seus olhos e a cidade parecia imensa, ampla. Os carros deviam todos estar cheios de crianças que os pais foram buscar na escola, mas nenhum teria a flor rosa que ela dera para sua mãe. Não sabia nomes de flores, apenas achara a flor linda e, então, levou-a para combinar com sua mãe. Nesta tarde nem lembrou de pedir sorvete, queria chegar logo em casa com a flor que dera para sua mãe.

            O caminho foi rápido, os sinais estavam verdes e o carro não precisou fazer pausas na rua. Queria chegar logo e ver sua mãe com a flor em casa. Chegaram em poucos minutos. Valentina entrou, tirou os sapatos satisfeita de ter dado uma flor para sua mãe. Foi brincar, comer, ver televisão até a hora que deveriam chamá-la para o banho.

            À hora do banho se lembrou da flor. Estava nua, quase para entrar no box, quando quis ver a flor de novo. Correu nua pela casa, livre de todos os olhares que essa idade permite. Chegou à lavanderia onde a mãe deixara a flor. Sentiu a garganta doer e chorou muito quando viu a flor murchando. Não era para acontecer isso, a flor era para durar para sempre. Era a flor que dera para sua mãe e não poderia haver outra flor igual.

            Pôs a boca no mundo, chorou sentida, a flor estava murcha poucas horas depois de ter sido colhida no jardim. A mãe tentou consolar, mas ela não queria ouvir. Mamãe, foi a flor que eu te dei, ela não pode murchar, ela não pode morrer assim.

            E ali, nua como estava começou a desfolhar a flor. Estava com raiva, dor, tristeza e eram muitos sentimentos para um só coraçãozinho. Não cabia em si e nua desfolhava cada vez com mais força e mais choro a flor rosa que dera para sua mãe. Apertava forte, conhecera a morte, sem saber o que era a perda. Mas, no fundo, sabia que a flor não existia mais e perdia, perdia o presente que dera à sua mãe. O choro era mais intenso, a mãe percebeu que a filha realmente ficara sentida com a perda da flor.

            Por que não a guardou num pote com água? Por que não cuidou da frágil flor que a filha lhe dera. Valentina não percebia os pensamentos da mãe que a abraçava cada vez com mais força. Chorava a flor e a dor da filha. Será que ela também era culpada de a flor ter murchado tão rápido, ali, esquecida sobre a máquina de lavar roupas. E a flor começou a colar em seu coração. A primeira flor que a filha lhe dera era agora esmagada pelas mãozinhas da menina. Choravam juntas, uma a perda da flor, outra o sofrimento da filha e a flor que se desfazia na memória.

            Tudo fora tão rápido, tão inesperado. Como imaginar que a filha sofreria tanto por uma pequena flor. Agora se sentia culpada e dizia para a filha que ela poderia lhe dar outras flores amanhã ou quando quisesse.

            Mãe e filha se uniam na ausência da flor. Da flor memória, da flor essência dos laços que uniam as duas. Sentia-se cúmplice da filha, ela também esmagara a flor ao não dar a devida atenção ao presente da filha. Era a primeira flor e a primeira flor não se esquece, assim como não se esquece o primeiro amor, o primeiro beijo, o primeiro choro por ter perdido o namorado.

            O pai espiava tudo de longe. Fora tirado de cena. A vida era as duas mulheres que ali estavam se abraçando. Uma pequena demais para perceber sua feminilidade, a outra velha demais para entender que a primeira perda pudesse causar tanta dor.

            Ambas nasciam naquele momento, chorando a flor rosa, a flor ausência que embalou a tarde da menina em seus sonhos de dar a primeira flor à sua mãe. Não era tarde, elas estavam unidas como pétalas formando uma pequena flor que sofria. Mãe e filha se reconheciam naquela solidariedade muda que unem as mulheres para sempre.

            Valentina chorou nua abraçada à sua mãe. Chorava sua primeira perda. Não entendia por que a flor durara tão pouco. Mas, renascia nos braços de sua mãe que lhe dava à luz pela segunda vez.  

            Assim, abraçada à sua mãe, foi para o banho, para que as águas da ducha se misturassem às águas de seus olhos e levassem embora todo o sofrimento. Valentina era uma menina com sua mãe, e a flor rosa que desaparecera, ficou para sempre em seu coração.

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  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...