sexta-feira, 30 de outubro de 2020

III - da sorte dos poetas

Há diante de nós
somente a morte certa
e o espanto duradouro
da vida.

Somos terra, somos pedra
soltas no chão
à espera do amor
que nunca vem.

Perdoai-nos, Senhor,
porque não sabemos amar
porque nos damos como quem ama,
mas é apenas desespero,
medo de acabar
de não encontrar no outro a fé
que faz cessar a busca.

Perdoai-nos, Senhor, a nós poetas,
que não sabemos esperar
nem a morte, nem a vida.

Nessa ânsia de gozo sucumbimos
à doce mão que nos afaga
na finitude dos gestos
incapazes de nos prender.


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

II

Há sempre quem faça de nós
porto.
E lhe damos as mãos
nessa ânsia de amar.
Nos despimos de tudo
e damos tudo.
Não importa o que digam
as vozes, somos silêncio.
E nessa toada
seguimos a vida.
Não esperamos nada
e esperamos tudo.
Abrimos as mãos
para receber o cálido carinho,
fechamos os olhos,
abrimos a boca
e comemos a mentira
como se mel fosse.
Mas acima de tudo, amamos
e detrás de portas semicerradas
somos amados
por tempo marcado,
em quartos de hotéis
imunes ao tempo
que corre lá fora.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

I

Queria declamar um poema
fazer-te minha ouvinte
e onde não podem chegar as mãos
chegaria minha voz.

Esta voz que imigra 
que quebra os silêncios
viajaria por teu corpo
de pétala entreaberta.

E os sons subdivididos
em sílabas átonas e tônicas
quebrariam em tua boca
como quebram as ondas do mar.

Queria declamar-te um poema
grande, enorme, assustador
que não cabe em minha boca
e por isso te estenderia as mãos
cheias de versos e sons
como um ramalhete de flores.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

De pedras e corações

Queria uma pedra para lascar meu coração

bater até sangrar

até ver brotar dele a poesia presa

cravada na pedra que teima em pulsar.

Mas, há tempos em que o coração é coração

e a pedra nele só o feriria

e do seu sangue não brotaria poesia.

Tem épocas que meu coração é só humano

e não cabe nele as artes da fantasia.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Inventário

 Herdei de meu pai

a dívida do caixão,

uns rolos velhos de pintura,

duas espátulas, uma desempenadeira 

e alguns pincéis de recorte.

Havia também duas escadas.

Juntam-se a isso alguns traumas

e certas dores infinitas.

Hoje, dos pertences, nada sobrou

a não ser sonhos esparsos

de sua figura pouco humana.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Ausências

Não é que eu não queira

mas é que os dias, as semanas

têm sido tão velozes.

Não é que tenha me esquecido

jamais me esqueço,

estás aqui comigo

pelas manhãs e pelas tardes de sol.

Sei que sentes minha falta

também o sinto

e me culpo por essa ausência

por essas dores que te causo

e choro diante da parede em branco,

mas um choro miúdo

como de criança no canto da casa.

Ainda sou o mesmo

voltarei para te dar as mãos

para estar em comunhão

e, então, essa ausência

não mais existirá e seremos nós

diante da parede em branco

a sorrir para a tela da vida.



terça-feira, 4 de agosto de 2020

e-mail.com

Deletei as mensagens
apaguei minha caixa de entrada
abri-me para uma nova vida
cheia de esperanças e desrazões.
Joguei na lixeira todos meus eus
meus questionamentos 
as mensagens jamais respondidas.
Sonhei um novo eu
um novo endereço
uma nova vida.
Apaguei meus contatos
bloqueei o passado inexorável
impossível mudá-lo,
mas posso apagá-lo, deletá-lo
milhões e milhões de vezes
trocar o endereço
ter um novo e-mail
uma nova caixa de entrada
novos spams e suas propagandas
com seus anúncios de encontros às cegas
seus produtos de última geração.
Sonhei um e-mail meu, pessoal,
que só eu possa ter acesso
e mandar para mim todas a mensagens
que nunca recebi.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Memórias

A casa de meu avô era grande
tão cheia de cantos
com seu telhado à vista,
suas janelas de madeira,
que pensei um dia habitar nela.

Hoje quando vejo a casa de meu avô
acho-a pequena, mesquinha,
tem alguns cômodos caiados à cor
um telhado cheio de picomãs
e janelas caindo aos pedaços,
jamais habitaria nela.

Mas, ah... a casa de meu avô
aquela de minha infância
caiada de amarelo e azul
nunca morrerá na minha memória.
E algumas vezes a visitarei
com os olhos emprestados ao passado
ainda morejados de saudade.


domingo, 21 de junho de 2020

Zohra e o pássaros

Zohra foi dada a uma família rica no Paquistão, assim como um objeto ou um animal de estimação. No fundo, os pais diziam que queriam vê-la estudada. Promessas feitas, acordos selados, a menina seguiu com a outra família. Miúda, de gestos pequenos, viu seu mundo desmoronar. Sem pai nem mãe, levada a uma casa estrangeira, viu-se obrigada a limpar o chão, lavar roupas, alimentar os pássaros que a família vendia na loja de animais e, por fim, cuidar do bebê, que lhe pesava enorme nos braços.  

Ao mínimo deslize, a menina via-se cheia de manchas roxas pelo corpo. Espancada por prazer, mais do que por correção, Zohra chupava seus lábios machucados, alisava as feridas do corpo magoado, tinha dificuldades em pentear os cabelos, pois a cabeça estava cheia de feridas. Será que o estudo tinha de ser tão caro assim?

Zohra, a princípio, apegou-se aos pássaros, leves de segurar, de canto doloroso, afinado às angústias de uma vida limitada pelas grades da gaiola. Invejava-os às vezes. Comiam na hora certa, tomavam água, ninguém lhes ralhava o canto, nem reclamavam do puleiro que lhes davam. Logo, ela desgostou de dois pássaros. Eram dois papagaios que repetiam tudo.

"Zohra, pega água". "Zohra, limpa a casa", "Zohra, menina porca", "Zohra é burra", "Zohra, o bebê está chorando", "Zohra, vê se não come muito"; "Zohra, menina dos infernos", "Zohra, olha as gaiolas".

A menina começou a sentir dentro de si algo que se assemelhava ao ódio. Pela primeira vez na vida ela tinha um sentimento imenso de esmagar aqueles dois papagaios, de fazer com que eles sumissem. Zohra nunca sentira isso por ser algum, nem humano, nem animal. Ela era dócil, gestos contados, como se economizasse movimentos, sempre temendo alguma pancada. 

Mas, em uma manhã, os patrões mandaram Zohra limpar as gaiolas, deixá-las brilhando para exporem na loja com os pássaros. A menina havia terminado quase todo o serviço, quando foi lembrada pelos pássaros zombeteiros que faltava a gaiola dos papagaios. Com desgosto, ela foi até a gaiola dos bichos. Pensou em matá-los, esmagá-los, silenciar para sempre aquelas vozes de taquara a gritarem: "Zohra burra"...

Não fez nada disso. Com todo cuidado foi removendo as fezes, limpando as gradinhas, até que por um descuido leve do destino, os pássaros bateram asas, voaram para fora da gaiola, ainda gritando: "Zohra burra" e desapareceram no ar. 

O terror se apoderou de Zohra. A surra seria inevitável. Já conhecia as dores das varas, dos chutes, dos murros que lhe partiam os dentes. Não quis esperar até o fim da tarde para contar aos patrões o acontecido. A dor da espera seria pior que a surra. Não imaginava ela que também bateria as asas naquele dia.

Ainda tremendo, Zohra contou aos patrões que os papagaios haviam fugido. O mundo ficou cheio de estrelas, o tapa na boca fora tão forte que a luz do dia quase desapareceu. Em seguida, sentiu os chutes na barriga, as varadas nas costas, mais murros na boca e uma espécie de mel inundou-lhe as gengivas e sentiu certo prazer. Nova chuva de murros no rosto e chutes na barriga.

Zhora sentia voar, o corpo estava leve, como uma pluma, não parecia estar mais naquele lugar horrível. Ao fundo ainda algumas vozes, muito distantes e alguns sons de pancadas que seu corpo já não sentia mais.

De repente viu-se cercada de homens e mulheres de branco, pensou estar no céu, mas a dor dos ossos quebrados desmentia as sensações. Logo mudaram seu corpo para uma maca. Depois de meses sentia o leve aconchego de uma cama e gostou da sensação. Zohra parou de resistir e entregou-se a essa sensação macia, não viu quando a entubaram, não viu quando lhe deram choques, nem quando lhe massagearam o peito. Zohra estava livre, leve como um pássaro, desprendida para sempre do peso de chumbo da vida. 






quarta-feira, 10 de junho de 2020

Poesia e prosa

Hoje não estou para a poesia
mas também não estou para prosa.

Um sentimento estranho me invade a alma
e despoja o corpo de toda a poesia.

Os versos perdem o sentindo de quem são.

Leio, releio, treleio os versos insensíveis
e eles nem sequer me dão as mãos.

Saio vazio, triste a contar os passos.

O que é feito de ti, poesia?
Para onde foi sua harmonia?

Em que casa repousas,
em que braços te afanas?

Poesia, o que há contigo
que não me dás nem o adeus do olhar?

domingo, 24 de maio de 2020

Cogitações

Não que eu seja ingênuo,
mas abrir os olhos dói demais.
Sinto falta da época
que olhava e não via,
escutava e não ouvia 
Por que fui abrir os olhos
por que fui dar ouvidos
se eu era fraco
e Deus me havia abandonado?

Angústias

Espalmo minha mão
e sob ela cabe o tempo.
Passado, presente e futuro
dançam suas memórias,
seus ressentimentos
e suas expectativas.
Alguns amigos restam de todos aqueles
que se tornaram inimigos
e a face me viraram ao passar pela rua.
Caminho, sei que o tempo me espia
e pelos cantos dos olhos fujo ao seu espanto.
Não quero acreditar, preciso não acreditar
que ao longo do tempo
as pessoas mudaram tanto
e eu ingenuamente estacionei,
para o bem ou para o mal. 
Vejo meu rosto de cera no espelho
e velhas expectativas derretem
sob o calor das horas.
Sou o tempo, sou o momento
sou o homem que se assustou 
com o mundo à sua volta
e não mais voltou a si.
Deliro e o tempo se desfaz
nas horas que me restam.

domingo, 10 de maio de 2020

A origem das mães

Como nascem as mães? Em geral, perguntamos como nascem os filhos. Mas, como nascem as mães? Sabemos que não é quando chegaram ao mundo, que aconteceu muitos anos depois. Umas nasceram antes, outras depois, conforme lhe foram vindo os filhos.

Quando surgiram efetivamente as mães?  Eva foi mãe obrigada. Nasceu, teoricamente, de uma costela e depois, expulsa do Éden, foi obrigada a dar à luz, com dores, diga-se de passagem. 

Algumas mães forçaram as expectativas e foram mães quase na época de serem avós ou bisavós. É o caso das mães de Isaque e João Batista. Então, sem novidades com as mulheres de 45 ou 50 anos que hoje fazem inseminação artificial. A diferença é que na época Deus resolvia as questões. 

Temos as mães que surgiram de uma violência. Estupros em casa ou na rua e pronto. Grávidas, viram-se obrigadas a encarar a situação ou se livrar delas. Muitas aceitaram ser mães. 

Outras meninas, ainda sendo meninas, viraram mães e serão mães por quase toda a vida. Pouco terão conhecido da vida antes da maternidade. 

Algumas, mesmo sem nunca terem dado à luz, serão mães pela vida toda. Nas expectativas, nos sonhos, na esperança de um dia serem mães e segurarem uma criança no colo.

Mas, qual a origem das mães? Quem teve essa divina ideia de que deveríamos nascer de uma mulher e amar essa mulher a vida toda? 

Amor de mãe é o único amor que não morre. Os parceiros e as parceiras passam, os casamentos se desfazem, mais filhos nascem e as mães não passam. Elas continuam ali, eternas, mesmo depois de não estarem mais por aqui. 

Não sei quando nascem as mães. Sei apenas que elas não morrem, elas permanecem, mesmo quando fisicamente se desfazem nas ordens do mundo. Na memória, porém, nas lembranças, nas recordações, as mães serão eternas enquanto durarmos. 

Mãe não acaba, se desfaz em estrelas para que iluminem nossos olhos. 




sexta-feira, 8 de maio de 2020

Não, dói. Mas e sim, dói também?

Esses dias conversando com uma amiga nos surgiu o tema do não. "Não", dói; é inevitável, mesmo que nos preparemos e falemos ao mundo que se a resposta for "não" estaremos preparados e vida que segue. Basta, porém, chegar o "não" e nos vemos chorando, tristes e toda aquela positividade vai pelo ralo. 

Somos seres humanos e gostamos de aceitação. Até aqueles mais atirados que dizem tocar o "foda-se" têm seus momentos de insegurança diante do "não". E não importa o tamanho da pessoa ou da idade. Cada um reage ao "não" de uma maneira. Alguns desistem dos planos, outros ganham mais forças e querem provar ao mundo sua razão e o "não" vai movendo o mundo.

O "não" também vende muitos livros. A livrarias estão cheias de livros de auto-ajuda, de como ganhar dinheiro, de como fazer sucesso, de como tocar o "foda-se", de como conquistar a pessoa amada, de como Deus te compreende e te aceita como é, ou seja, cheio de "nãos" na vida. Afinal, Jesus gosta dos rejeitados. E nada como um bom "não" para estarmos nas filas da igrejas, recebendo uma benção, uma missa, tomando um passe, recebendo um axé, tirando a sorte no Tarô. O "não" move o mundo e suas finanças. 

Mas e o "sim", ele dói? Será que o "sim" tão esperado tem o poder de nos transformar ou acontece como passou a Saramago, que após receber o Nobel de Literatura olhou para sua Pilar e disse: "Y qué"? E "daí"....esperei tanto por isso e do que vale esse prêmio agora. Veja, não é um "e daí", como o do presidente do Brasil, não é "e daí" de um qualquer, é de um dos maiores escritores da Língua Portuguesa. Ele recebeu um "sim" e com ele a pergunta existencial: o que faço com ele agora?

Em As visitas do Dr. Valdez teve um sim que doeu muito. O personagem pediu a filha de sua amada em casamento, para chamá-la aos brios e ver se ela dizia não e aceitava seu amor de homem. Para surpresa dele, ela aceitou o pedido e lhe deu a filha feia para casar. Sem saída, casou. O "sim", neste caso doeu e enterrou a paixão por aquela que veio a ser sua sogra.

É...o "sim" pode doer tanto quanto o "não". Tudo depende das circunstâncias. Quantos de nós tínhamos planos considerados grandiosos e de "sim" em "sim" fomos chegando a ele. Alguns anos depois, vem a idade, as desilusões e nos perguntamos se realmente aquele caminho era o mais acertado.

O "sim" pode nos levar ao comodismo, a engordar nossas barrigas, a ancorar o barco em alguma encosta, enquanto há um oceano lá fora nos esperando. E aí, quando cansamos do "sim" já não temos mais coragem de sair a mar aberto e estacionamos. O "sim" pode doer como um peso que amarramos ao pé. Nem reclamar nos dão o direito. "Você teve tudo nada vida", "Quantos gostariam de estar em teu lugar", "Você é um ingrato". Pois é, o "sim"  na hora errada pode nos levar à ingratidão e a dores desnecessárias. 

Mas, será que o "sim" dói mesmo? Penso eu que não. Gostaria de ter "sim" todos os dias, evitar psicólogos, psiquiatras, choros, traumas. Nada como um "sim" para me alavancar. O "não" me cansa, me tira do sério e me obriga a lutar mais pela mesma coisa. Lutar é bom, mas receber "sim" é ótimo.

Antes de terminar, deixo mais uma consideração para não dar a questão por fechada: às vezes o "sim" dói, tenho de admitir. Esta semana perguntei ao oftalmologista: Terei de usar lentes multifocais? E ele: "sim". Esse sim doeu e bastante, inclusive no bolso. 

domingo, 3 de maio de 2020

Todos os seios de minha vida

Paulo Betancourt. Homem honesto, pai de família, três filhas, talvez uma amante mais séria ou outra no percurso, mas nada que o pudesse desviar dos santos caminhos que o Papa indicava a seus fiéis. Não tinha culpas, nem remorsos. Cuidara da família com esmero, as filhas estavam gordas e a mulher havia passado pelas mãos de alguns dos melhores cirurgiões plásticos do país. Ele mesmo implantara uns 500 ml de silicone em sua esposa. Algo que não fez sem certo interesse. 

Os seios agora fartos de sua esposa traziam prazerosas lembranças. Em cada uma das gravidezes os seios aumentavam, o leite jorrava abundante, as crianças mamavam até adormecer. Naqueles tempos tinha mais atração pela esposa. Os seios cresciam diante de seus olhos como duas luas cheias, brancas, leitosas, prestes a explodirem. Guardava para si essas manifestações com certo receio que a mulher percebesse.

Paulo em seus momentos conjugais tinha dois fartos seios em suas mãos e boca. Homem feliz, não havia por que se separar ( a mulher sempre engravidava). Algumas vezes se dava ao luxo de novos seios, todos eles cheios de leite. Interessava-se por mulheres que amamentavam. Como médico era fácil ter acesso a essas mulheres. Muitas delas estavam em depressão pós-parto, inseguras, achando que os maridos jamais se interessariam de novo por seus corpos. Ele as ganhava para si. Cheio de elogios, palavras doces e em duas ou três consultas, elas estavam em sua cama ou na maca do consultório mesmo. 

Eram meses de felicidade, em alguns casos, mais de ano. Aconselhava, de acordo com a OMS, que amamentassem por pelo menos dois anos. Tudo, porém, se acabava com o leite. O término da amamentação encerrava peremptoriamente seus casos. Sem palavras doces, nem argumentos, as despachava como se fossem cães de rua.

Nunca nenhum marido o procurou. As mulheres ainda com os filhos de colo não tinham coragem de contar aos esposos que se deitaram durante toda a amamentação com o médico da família. Além disso, Paulo jamais saiu com mulheres pobres, eram todas de classe média ou ricas, onde os escândalos vão para debaixo do tapete ou viram eternos segredos.

Paulo ficava cada vez pior. Tinha delírios, sonhos, às vezes, acordava alto da noite em prantos por algum seio perdido. Desde essa época, começou a ir à Espanha todos os anos. Vira uma notícia em um jornal velho sobre um tal de "mamaço", onde mais de quinhentas mulheres amamentavam ao mesmo tempo em uma praia. Não pensou duas vezes. Encontrou como desculpa um evento de médicos para aqueles dias em Mallorca. Foi sozinho, não levou a esposa, nem as filhas, que protestaram duramente. 

Hospedou-se em um hotel chique. Na noite anterior ao evento, Paulo bebeu, cantou, fumou charutos, quase se deitou com uma mulher de seios pequenos, mas em cima da hora desistiu. Queria estar limpo, puro para o dia seguinte.

Levantou mais cedo que todos os hóspedes, não tomou o "desayuno" e saiu apressado. Chegando à praia, o médico sentou-se em uma rocha, protegido por algumas folhas de palmeiras. Suava frio, tinha desejos indiscretos que à força de um falso pudor, desfrutava apenas para si. 

Paulo não queria chamar a atenção, olhava para os lados, verificou se o posto lhe garantia a segurança que carecia. Tudo estava certo, era esperar pelas mães que em breve deveriam encher a praia com seus rebentos entre os braços. E, realmente aconteceu, a praia começou a se encher com mulheres de todas as cores e idades. Os seios à mostra, todos carregados de leite, fartos, pesados, mas de uma elegância natural de que são portadoras as mulheres nesta etapa da vida. 

Logo, o médico percebeu que seus cuidados foram exagerados. Havia repórteres do mundo todo, curiosos, maridos, companheiros, companheiras, crianças e o prefeito da cidade, que fez um discurso antes. Os homens com algodão doce e pipoca faziam a alegria das crianças, o vendedor de refrigerante e água se instalou próximo à faixa de areia. Paulo estava seguro, podia ser mais um, um falso apoiador, um defensor da amamentação. Teve um brilho de nobreza rápido em seus olhos. 

Pronto. Estava tudo organizado. As mulheres (quinhentas, imaginem só) se sentaram à beira-mar e ali mesmo, com os dois seios à mostra cada uma, deram de mamar a seus filhos. Um espetáculo, uma enorme força da natureza brotava delas e lhe enrijecia suas partes pudendas. Paulo, o pequeno Paulo, sentia-se no céu, um ministro do Senhor, um homem sortudo por testemunhar tal exibição. Se pudesse seduziria todas. Eram tantos os seios que as imagens lhe chegavam embaraçadas. O médico acordou no hotel, cercado por pessoas e alguns socorristas, que atribuíram ao calor o mau-estar que o senhor sentira. Na verdade, fora emoção, uma tão carregada emoção que o levou a uma espécie de mal-súbito, um desmaio. Teria de voltar e estava certo que voltaria ali todos os anos de sua vida. 

O médico fez a viagem de volta ao Brasil embalado pelas imagens. Dormiu quase o voo todo, sonhando com os seios que vira. Ao desembarcar, estava eufórico, nem sequer o fuso-horário lhe tirava o ânimo. Chegou em casa, abraçou as filhas, beijou a mulher, trouxe presente para todas. Subiu rapidamente as escadas, tomou banho e avisou que iria de metrô para seu consultório. A mulher estranhou a excentricidade, mas resolveu não dizer nada. O marido estava com os olhos injetados que lhe deu certo medo.

Ele estava certo. No metrô havia mulheres com crianças de colo. Ficou observando e entrou no vagão onde algumas delas acharam espaço. Com os óculos escuros, podia observar sem ser visto. Não demorou muito até que uma delas tirou um dos seios para fora e começou a amamentar. A sensação que tivera na Espanha voltara violentamente ao seu corpo e todo ele tremia, quando do nada levantou um homem e foi furioso em direção de onde estava sentada a mulher.  "Puta"! Gritou o homem. "Como ousa amamentar aqui!" "Há homens, mulheres, crianças, sua descarada!". A mulher tremia sem saber o que fazer. Paulo levantou de um pulo, avançou para o homem e o estapeou com toda a força, quando ele caiu, o médico subiu sobre seu corpo e começou a esmurrá-lo, deixando-o quase desacordado, diante dos gritos das mulheres que o incentivavam, "isso, mata esse desgraçado"!!! Outros homens tiraram Paulo de cima do corpo inerte. Ele desceu na praça da Luz.

Paulo estava satisfeito. Ainda não localizara bem onde descera, mas estava feliz, eufórico, por ele teria matado aquele infeliz que, momentaneamente, lhe roubou a luz do dia. Tirou um cigarro do bolso e fumou, fumou, fumou até o sol arder-lhe nos ombros e ele despertar com o relógio da igreja anunciando a hora da Ave-Maria. Não chegou a ir ao consultório, precisava voltar para casa, jantar com a família, contar melhor sobre o "congresso". Inerte, voltou para para dentro do metrô e fez a viagem de regresso.

Em casa, tomou banho e desceu para o jantar. Não esperava pelos sogros, mas eles estavam ali e isso o livraria da caceteação de responder às perguntas da mulher. Estranhamente os abraçou, serviu um vinho para o sogro, um suco para a sogra e o jantar correu maravilhosamente bem. Todos se despediram, a mulher o olhou com os olhos agradecidos e ao mesmo tempo aflitos. Ela escondia algo, era certo, só não tivera coragem de contar durante a hora da ceia. 

Paulo subiu para o quarto e a mulher prometeu que assim que pusesse um pouco de ordem na casa, para o dia seguinte, subiria. Era certo que ela escondia algo e adiava o momento da revelação.

Não havia mais o que fazer e ela subiu como se escalasse uma montanha. Deu de cara com o marido ainda acordado. Sem escapatória, sentou-se ao seu lado e começou a falar mansamente: "Paulo, me escute, por favor". "Fale baixo, as meninas estão acordadas". "O que foi?" Por que todo esse mistério?" Você saiu com outro, por acaso?" "Antes fosse, Paulo!" "É pior!" "Lembra-se de meus exames de rotina?" Lembro.!" Pois é...aconteceu algo". "Estou com câncer no seio esquerdo, vamos ter de tirá-lo!" Paulo quase desmaiou, olhava para sua mulher como hipnotizado. Pensava: "Não, aquilo não podia ser verdade". Era fatal demais. No entanto, engoliu seco e falando baixo disse: "Eu te opero, nenhum outro homem porá as mãos em você".

Uma semana depois a esposa de Paulo entrava no centro cirúrgico. Lá estava ele, enlutado, viúvo em vida a esperar pela mulher. Tudo estava organizado; então, começou a fazer a cisão, o corte que mudaria suas vidas para sempre. Lembrava-se das vezes que colocara a boca naqueles seios, em que fora amamentado nas três gravidezes, seu mundo despencava. O seio da mulher, tirada a prótese de silicone, boiava sobre a palma de sua mão. Não foi feita a cirurgia reconstrutora. Por algum motivo que ele não compreendia, ela lhe exigiu isso para que a operasse. 

A operação, do ponto de vista cirúrgico, foi um sucesso. Em poucos dias ela estava em casa. Reinava um silêncio absoluto, o casal se media, mas não se falava. Era como se o seio que faltava tivesse colocado uma barreira entre eles. Paulo passou a dormir no quarto ao lado com a desculpa de que ela precisava descansar melhor. No fundo, horrorizava-lhe aquela imagem da mulher nua, com um único seio. O corte perfeito, a sutura certa, a cisão seria definitiva entre os dois.

Um ano passou-se e Paulo se tornou cada dia mais alheio à mulher. É como se não a visse, não a enxergasse, era como se ela fosse um vulto para ele, um ser inominável. Desta vez, viajou para a Espanha sem dizer nada, sem desculpas, sem congressos, estava livre, a mulher nada mais podia lhe impor. Chegou com um mês de antecedência a Mallorca. Se ele fez algo errado nunca nominou-se.

Naquele ano, de cuja memória não se há notícia certa, Paulo participou do mamaço. Sentou-se à areia, tirou os seios perfeitos que agora exibia e deu de mamar a um menino. Ele nada sugava, mas a sensação de estar ali, de ser reverenciada como uma igual, a levou ao êxtase. No calçadão, a esperava um espanhol típico, de seus cinquenta anos.

Ao final daquela tarde, Paulo morreu. Agora, Paula começava uma nova vida, sem mulher, sem filhas, só seu filho Juan de 2 anos e seu amor espanhol. Nas noites quentes de Mallorca agora é ela quem amamenta seu amor e exibe à lua seus seios brancos e leitosos que um dia lhe foram roubados. 


quarta-feira, 22 de abril de 2020

A flor

Obscena flor branca,
destituída de cheiros,
tuas hastes verdes
não sustentam do suor a vida.

Abrem-se as pétalas
que renunciam o chão;
eternas violam o tempo
dos relógios e das primaveras.

Flor brutal, animal calmo
que repousa dentro do vaso.
Desafia-me a olhá-la
sem cio, sem gozo
frio mausoléu antecipado.

Tenho o prazer da carne
a putrefação remidora
o adeus dos gozos terminados
a memória que te foi negada,
branca orquídea de plástico,
a tua indiferença te condena.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Las divinas palabras

Sin la palabra
no habría seducción
ni los errores de la creación.
El hombre sería un proyecto
No tendría Dios la voz
ni la sierpe atroz
chochearía a los oídos de Eva.
Sin la palabra no habría
el falso "yo te quiero"
ni el verdadero "yo te odio"
Muchos jamás conocerían la cama
donde son dispensables las palabras
desde que antes bien puesta
con suaves sonidos del signo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

O pássaro

Mudo, calado
aprisionei atônito
o pássaro
que em mim habitava.

Com a dor da alegria
matei a fome de vida
do pássaro.

Não alimentei suas esperanças
que entre as grades cantava
pela manhã.

Para quem não sonha
o canto do pássaro
fere a alma.

Guardei-o entre as costelas
e na escuridão total
o pássaro ouvia intermitente
um coração que lentamente batia.



quinta-feira, 2 de abril de 2020

A morte no ar

Fechamos os olhos
para todos os genocídios.
Ruanda, Moçambique.
Congo, Angola.
Lavamos as mãos,
nos fizemos inocentes
comemos em pratos fartos
a dor de nossos esquecidos.
Desviamos os olhos dos corpos
mortos bestificados.
Bebemos a água pela metade
dos copos que tocamos,
enquanto muitos morriam
com a boca seca sedenta.
Dormimos inculpáveis
em travesseiros de penas
sem atentar para as cabeças
que sobre pedras adoeciam.
Hoje morremos pelo ar
os abraços foram impedidos
os corpos partem sozinhos.
Morremos sem ar
e nem todo oxigênio estocado
nos sacia a sede de vida.
Culpamos a tão distante
China de nossas infâncias.
Muitos são devorados
pelo medo e pelo pânico
de morrer isolados,
sufocados em uma sala
cercados por estranhos.
Os corpos voltaram a cair
e cada um cuida de sua rica
ou pobre vida.
O ar de outros genocídios
cobram o preço
de vidas ignoradas.
Caem Espanha, Itália,
França, Alemanha
Reino Unido e Estados Unidos.
Todos morrem pelo ar,
ainda vivendo o sonho da inocência
ignorados por um Deus que lhes castiga.



terça-feira, 31 de março de 2020

Amanhã é domingo

Hoje é domingo
amanhã será domingo
porque no domingo
nada fazemos
e por ora nada há a fazer
a não ser esperar.
Esperar pela crise
pela enfermidade
e de mãos juntas em alto
rezar para que não nos pegue,
afinal é domingo
e no domingo até a doença
tem de ficar de folga.
No domingo não se morre
é dia de comer macarrão
e saborear frango assado.
No domingo não se vai a velório
porque no domingo se vê TV
se ri das bobagens e no fim do dia
se fica depressivo
porque amanhã pode ser segunda.
Mas por ora, amanhã é domingo
e no domingo, nada fazemos.

sábado, 28 de março de 2020

Um anjo colhia maçãs

Um anjo de dedos longilíneos colhia maçãs
mas, antes, era como se as acariciasse
e seus olhos cresciam diante dos frutos
saborosos, vermelhos, pecaminosos.
Um anjo de suave voz cantava
com a maçã em suas mãos
e todo o mundo cabia naquela esfera vermelha,
que dançava entre os dedos finos angelicais.
Um anjo retilíneo crescia em minhas pupilas
e eu não via mais a maçã,
não escutava mais sua voz
não via mais o mundo.
Um anjo cubista, cheio de quinas
saltou da tela, caiu de seu céu
e comia maçãs na sala de minha casa,
sem se importar se da humanidade compartilhada
do infinito para o finito das coisas, marcaria
o fim do encontro tão desejado.

terça-feira, 24 de março de 2020

Um ar de nada

As maçãs dormiam quietas sobre as peras....
como não me lembrar desses sabores
desse ar de gente pela casa
dos abraços apertados, dos beijos quentes.

Estou só, estamos sós...
só não sabíamos que a memória
era capaz de girar a chave
e encher a casa de fantasmas.

Olho para as maçãs sobre as peras,
elas continuam quietas silentes
e meu abalo é apenas uma energia
a pairar entre os copos na cozinha.

sábado, 21 de março de 2020

É tempo

É tempo de mãos dadas
de ombros largos
de olhares solidários
de ser o Outro
de ver o Outro em nós.
É tempo de amor
mesmo que haja a dor.
É tempo de confortar
e de se aconchegar
em quem está ao teu lado.
É tempo de expandir:
o coração
a mente
as mãos,
que de palmas largas,
aprendem a acolher.
É tempo de se recolher
mas não de se encolher.
É tempo de poesia
porque a poesia
não pode esquecer
o irmão desconhecido
que no hospital dorme
e sozinho agoniza.
Que minha poesia
não seja egoísta
porque é tempo de mãos estendidas
e olhares carinhosos.
É tempo de morte
e de luta pela vida.
É tempo de se desfazer
dos falsos apertos de mãos
e de ter gestos maiores que os abraços.
É tempo de lutar contra o tempo
e não estar de mãos vazias.
Que eu não caminhe só e cabisbaixo
mas que em vigília carregue o andor
do terço de nossas feridas.
É tempo da poesia ser  uma oração
e a oração uma poesia que nos livre
momentaneamente
do trágico fim que nos espera.

sábado, 14 de março de 2020

Sem rumo

Estamos indo em frente,
mas o que aprendemos
neste brejo de ansiedades?

Estamos indo para algum lugar
e os passos guiam-se pelos compromissos.

Os pés não sabem, a mente não sabe
só seguem este ininterrupto
regurgitar do tempo.

O certo é que passamos
e nos desfiamos nas lixas dos ponteiros
que não se cansam de desgastar
os dias, dividindo-os em segundos,
minutos e horas.

Estamos indo sem hora certa
sem dia marcado
para a inevitável partida,
quando os relógios serão estraçalhados
e o tempo submergirá a este monstro
chamado eternidade.
O humano
o inumano
o ser humano
na sua pequena humanidade
inativa.
O humano
sofre de inanição
inevitável
inabalável.
Nas pequenas certezas
incertas
indubitáveis
inexoráveis
belezas
do ato mesquinho
pequenino
que é ser humano.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Primavera

Não sei quando minha vida criou espinhos,
mas sei o momento em que te encontrei
e brotaram flores em meus ouvidos.

Meus pés teceram raízes
no meio do caminho.

Teu olhar de manhã nova
teus olhos de brisa fagueira
se fixaram em minhas retinas.

Se fosse inverno
podaria meus galhos de ti,
mas era primavera
e fui ficando
florescendo sem atentar
no inevitável murchar das flores.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Escola

Podia dizer que houve sol naquela manhã. Mas, chovia e fazia uma temperatura amena. Não vou dizer que me lembro daquele dia. Fiquei com as informações que me contaram. Embora tivesse certeza de que o céu estava azul e o sol brilhando para iluminar meu primeiro dia de aula, as histórias contadas por meus pais desmentem o que o coração guardava.

Incomoda-me ainda saber que não me lembro de meu primeiro dia de aula. Isso de ficar com as memórias alheias é um vasculhar que nunca termina.

Consta que chorei, não muito. Mostrei valentia frente àquilo que também desejava. Era o medo lutando contra a vontade. Venceu a vontade. Fiquei na escola e enfrentei aqueles que seriam, mais adiante, meus amigos. 

Meus pais também deviam estar ansiosos. Pelo modo como me adaptei à escola, acho que souberam disfarçar bem, pois me passaram a segurança necessária para enfrentar os novos desafios de minha ainda curta vida. 

Era uma saudade, um apertar o peito. Naquelas horas que me divertia em sala de aula, sempre estava presente a saudade, a expectativa, o medo de que não me buscassem, mas tudo se desfazia logo, feito nuvem leve no céu. 

Aprendi a gostar da professora e logo a sentia mais próxima e um porto seguro quando o medo fazia minhas mãos suarem. Não demorou a sentir por ela também algo próximo do que posso chamar de saudade. Ela era o ponto de equilíbrio naquelas horas ausentes de meus pais. 

Não me lembro bem, mas sei que logo comecei a me sentir em casa mesmo estando na escola. Reconhecia corredores, portas, rostos e os amiguinhos, que antes eram pequenos corpos à minha frente, ganharam nomes e feições mais nítidas. Passei a nomeá-los com desenvoltura e a contar histórias sobre eles. Faziam parte de meu cotidiano.

Nascia em mim o sentimento de estar no mundo. Ao mesmo tempo surgia a decepção de que no meu mundo houvesse outras pessoas que ocupariam um lugar no meu coração além de meu pai e de minha mãe. Era pouco ainda, mas crescia e a porta da escola que entrei, abriu para mim as portas de um mundo sem volta. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O amor pode esperar

Ah....amor,
não me culpes por querer só teu corpo,
tudo começa nessas curvas
nesses trejeitos convidativos.

O Amor vem depois,
por ora quero tua boca,
teus lábios bem feitos
teus olhos molemente mornos.

Ah...amor,
deixe o Amor para depois
por ora somos corpos
e eles dançam tão bem.

Para que filosofias onde há matéria,
se temos os corpos
e se o Amor pode ficar para depois.....

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Antidepressivo

"Tome meio comprimido,
mas só nos primeiros dois dias.
Depois tome um inteiro,
porém, pode ser que aumente
e precise de dois comprimidos.
Perceberá um alívio
e logo se acostumará à dor
porque ela não some,
mas abranda e fica constante.
Também acontece de não sentir nada
e se acostumará ao vazio,
ao dia cinza claro meio míope,
às manhãs de chuva,
às tardes nubladas
e ao sol como um mero ponto luminoso.
Não sentirá sono,
mas prepare-se para dormir bastante.
Não sentirá mais ódio,
mas pouco espere do amor
ele raramente surgirá como um pequeno exagero.
Deixará de ver a vida torta
sumirão as distorções
e tudo voltará ao normal".
Mas, doutor......
e a poesia? onde fica
a poesia nisso tudo?

domingo, 19 de janeiro de 2020

Pingo

"Foi o momento mais difícil de minha vida". Isso foi dito pelo meu irmão ao cavar, entre lágrimas, a última morada de Pingo. Ele ficou na família por anos. Agora voltava à terra no mesmo lugar em que fora encontrado quando filhote. 

A Tekinha, que era outra cachorra que meu irmão tivera, havia morrido há poucos dias, sofrera muito com as dores e, por fim, voltou à terra. No lugar em que fora enterrada, surgiu um novo cãozinho, ganindo, com frio. Alguém o abandonara perto das bananeiras, numa noite de tempestade, na chácara de uma amiga de meu irmão.

A vinda de Pingo foi vista por ele como a reencarnação da cachorra que partiu. Não que ele fosse espírita, mas a coincidência o abalou bastante. Logo, ele surgiu na casa de minha mãe com aquele minúsculo animal e com a promessa de que o cãozinho ficaria por apenas alguns dias. Não ficou, passou dez anos na família.

Quase todos os dias, meu irmão visitava nossa mãe, e também o Pingo, que quando chegou a hora de ir para a casa definitiva se negou a partir. Algumas horas na casa de meu irmão e pronto, o cachorro queria ficar na casa de minha mãe. Foi o que aconteceu, ficou para sempre, naquele para sempre determinado pelo destino, que decide quando romper o fio da vida.

Pingo virou membro da família. Também cresceu. O nome ficou inadequado, pequeno demais para o tamanho do cachorro. Mas, nome é nome e Pingo ficou ali, ocupando os espaços, dormindo pelos cantos, acompanhando minha mãe na hora de fechar a casa e dormir. 

Pingo foi um cachorro preguiçoso, doméstico demais para latir contra os gatos. Adotava todo gato que pulava o muro da casa de minha mãe e com eles fazia a maior farra. Deitava sobre os gatos, corria atrás deles para puxar-lhes pelo rabo e não teve jeito. Alguns gatos passaram a frequentar a casa e a dividir a ração com ele.

Meu irmão sempre tem uma hora determinada do dia para aparecer na casa de nossa mãe. Em pouco tempo Pingo aprendeu a ouvir os sons da bicicleta antes dela chegar ao portão e, então, se plantava ali para recepcionar meu irmão. Reconhecia-o pelo cheiro ou pelos ruídos das pisadas, que nós não percebíamos, mas que para ele indicavam a chegada de seu segundo dono. 

Não foi diferente ontem. Após sofrer por alguns dias, Pingo esperou ansioso a chegada de meu irmão. Durante a manhã ganira um pouco, chorara, recebera o afago de minha mãe. Porém, mais nada restava a fazer a não ser acompanhá-lo nas últimas horas de sua vida. 

Nessa tarde de sábado ele não pôde ficar no portão aguardando seu segundo dono, não ouviu o barulho da bicicleta nem acompanhou os sons dos pés de meu irmão. Pingo, deitado como estava, ficou à espera dele. Recebeu-o de olhar triste, partido o coração por saber que não comeria mais em sua mão. 

Pingo morreu ouvindo a voz de meu irmão. Como se não quisesse morrer em silêncio,  Pingo ouviu a voz humana até seu último momento na Terra. E assim, entre afagos e sussurros, Pingo partiu, voltou ao local de origem, está plantado junto às bananeiras onde foi deixado em meio a uma noite de tempestade. 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O mundo é uma estranha chave
que não ouso girar.

Muros

Meus muros estão cheios
de cacos de vidro
de cercas elétricas
de fios de arame farpado
de grampos pontiagudos.

Não ouso tocá-los
tampouco ultrapassá-los.
Saltar os muros não é uma opção
é uma fuga covarde.

Os muros são minhas fronteiras
mas também estão presos a mim
condenados a vigiar-me eternamente
plantados em torno da vida
que não terão jamais.


  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...