Mãe...saudades...Mãe que ficou no portão, parada na sua mágoa de anos, ferida, rejeitada, sentindo a solidão de seu corpo franzino, suas pernas miúdas, seu olhar severo de enfrentar o tempo e seus contratempos. Sei que não vais ler esta carta, mas escrevo-a para mim, para dar-lhe a voz que o tempo não lhe permitiu, para acertar as contas, talvez em outro tempo, em outra época...
Ela ficou ali, com um adeus preso na garganta, como um nó difícil de engolir, parecendo pedra, esperando que o filho voltasse para se despedir, para dizer que não era bem o que gostaria de ter falado na última vez que o viu, para dar um tchau simplesmente, um breve dia que fosse, para olhá-lo nos olhos, perdoar a viagem mais longa que faria, justo agora, às portas dos sessenta anos, esperando ter todos os filhos à sua volta, ficava-lhe aquele adeus interrompido e outra mágoa, esta talvez maior do que aquela outra de há vinte anos, quando o filho saíra de casa e fora trabalhar longe.
Mãe do interior, seca de cumprimentos, econômica nas expressões que dizem respeito ao amor. Por dentro, porém, amava longamente. Imaginava-se abraçando, beijando, acolhendo os filhos, mas, quando chegava o momento, a ocasião, os braços encurtavam, as mãos fechavam punho cerrado, os olhos embaçavam e fechava-se num mutismo de décadas, de mágoas e reflexões que a levavam para longe dali. O movimento tornava-se mecânico, como de um autômato, e recebia as visitas antes tão esperadas e agora, presentes, como invasores que ocupavam-lhe um espaço a ser retomado.
Dormi à tarde e acordei com esta saudade de dias, de horas e minutos, misturada com outra saudade, sem saber ao certo qual doía mais no fundo do peito. Justo eu que me esforcei para abrir os braços, dar os beijos necessários fiquei com os adeuses entalados, interditos, econômicos. Outras pernas também ficaram pelo caminho. A cena, porém, era outra e enquadrada pela janela de um carro, cheia de promessas de um até breve, de um volto logo, que aqueles olhos ficaram ali encastelados à espera do regresso.
É como se de modos diferentes, os gestos se misturassem, um corpo entrasse no outro, um pedra se chocasse contra as outra e nesses estilhaços, os cacos fossem o reflexo de meus olhos, nos olhos de minha mãe, em outros olhos, em um espelho infinito de reflexos e reflexões que me prendiam à cama, enquanto meu olhar contemplava o teto branco.
Ela viajou pouco. Presa por anos a um homem que a humilhava, que lhe partiu os últimos dentes ainda na gravidez do primogênito, esperou pacientemente que ele morresse. O velho, nem tão velho assim como a expressão parece denotar, morreu aos quarenta anos. Abriu as portas do mundo para todos de seu feudo, mas não ao ponto de que alguns reconhecessem na porta aberta, o caminho para trilhar. Pássaro quando nasce preso desconhece das asas o mundo que pode voar. Cedo volta para a gaiola e ignora a porta aberta. É necessário que lhe ponha todos os dias o alpiste e a água para que não morra.
Fiz meus caminhos, deixei mágoas, tristezas, incompreensões. Minha primeira partida foi o leito dispensado à morte de um pai violento e incompreensível.
Agora isso, acordo com o retrato de minha mãe imaginado em minha mente. Minha mãe parada no portão, que eu havia pintado de cinza, com rolinho de espuma, mesmo após anos de falta de prática. O sol torra-lhe a cabeça, o cérebro em brasas, as mãos na cintura, inconformada com a falta do adeus. No desabafo do telefone dissera tudo: acusara-me de dureza, insensibilidade, frieza. Não entendia bem por que ela dissera tudo aquilo. Porém, a voz denunciava que seu ventre secava em dores e mágoas e era preciso, em caso de uma viagem inesperada, em caso de ter de deixar a foto do portão vazia, desabafar com este mundo suas dores.
É tarde? Ou é cedo? Perco-me nos fuso-horários e no tempo em que cada um de nós se encontra. Escrevo e sei que a carta não será enviada. É um exercício de memória, de lembrança, de exorcismo de dores, um esforço para que o passado não se apague, não se perca em meio aos espinhos das plantas que rasgam minhas pernas pelo caminho árido.
Sei que tem esta saudade, esse tempo interrompido, esta culpa calada. Em descompasso nos encontramos; passado e futuro, faces da mesma moeda que não podem se encontrar, unidas e separadas pelas paredes de um tempo e de uma materialidade inevitável de que se constroem os mundos e as relações, passado e futuro, irmãos siameses, colados pelas costas sem poder se olhar nos olhos, sempre partindo, mas carregando sobre as costas a trouxa da saudade.
Mãe....a mãe ficou lá...cuidando da tia, trocando-lhe as fraldas, ouvindo suas loucuras sussurradas ao invisível de outra mágoa desconhecida, tecida entre banhos intermitentes, como se lavasse uma culpa que neste mundo nunca pôde compreender. Os silêncios se confundem, as raivas de misturam e a sobriedade não encontra espaço nesta incompreensão que é a saudade.
Um comentário:
De todos os poemas, contos ou seja lá o que for. Este foi o mais bonito.
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