domingo, 30 de setembro de 2018

De barbeiros e barbearias

Quando era adolescente, meu irmão e eu começamos a frequentar os barbeiros. Eram onde deviam ir os meninos, os "hominhos" dos quais os pais(quero dizer os homens) se orgulhavam em ter. Abriam a boca e diziam: meu filho é homem. E filho homem de respeito não ia à cabeleireira da mamãe, ia aos barbeiros.

Lembro-me de um alguns deles: José Sebrian Gomes, que depois virou meu patrão na entrega de jornal; havia Josuel, que amolava a navalha numa tira de couro e fumava o tempo todo, enquanto cortava o cabelo e conversava sobre a vida, independente da idade do cliente. Meu irmão, por exemplo, cresceu cortando cabelo no Josuel e cortou com ele até que o barbeiro morreu. 

Em geral, havia o quadro do time do coração do barbeiro, um cinzeiro para ele e os clientes apagarem as bitucas, uma cadeira daquelas bem antigas, algumas revistas velhas da mulher e um rádio AM para os mais velhos debaterem as notícias do dia. Nada de horário marcado, agenda, ou telefonemas, cortava o cabelo quem chegasse primeiro, havia fila, alguns permaneciam nela, outros ia ao bar "tomar uma" e voltavam depois, Sei que de quinta-feira em diante, a barbearia era lotada, pois o fim de semana estava chegando e era necessário estar bonito, cabelo cortado, barba aparada, pelos do nariz cortados.

O método era o tradicional, após cortar o cabelo com a tesoura, auxiliado por um pente fino, o barbeiro se advogava no máximo o direito a usar uma tesoura dentada para repicar o cabelo dos meninos, homem cortava no tradicional. Para finalizar uma mão bem cheia de álcool para matar os germes e cicatrizar os pequenos cortes deixados pelas navalhas.

Lembro-me até hoje das primeiras vezes que fui ao salão de cabeleireiro "unissex", morrendo de medo que meu barbeiro de confiança visse ou algum amigo meu viesse a tirar sarro. Entrava desconfiado e para tirar a dúvida da placa que dizia "unissex", perguntava se cortava cabelo de homem. Eu na minha hombridade dos 16 anos, morria de medo de ser visto como um fresco. O certo é que gostei do corte, do banho dado no cabelo após o término e o "creminho" que o cabeleireiro passava. Enfim, como um membro do partido comunista que trai seus amigos, abandonei para sempre as barbearias.

O tempo passou, surgiram salões para todos os lados, cursos profissionalizantes formando novos cabeleireiros e os barbeiros quase sumiram. Só não desaparecem de todo por causa de seus antigos clientes e sua fidelidade aos seus dignos barbeiros. Pensei que era o fim de mais uma profissão no mundo. Eu já não fazia botas no sapateiro, nem mandava por salto ou meia sola no meu sapato velho, ia à loja e pegava um novo, mesmo que barato.

Para meu espanto, usando aqui a linguagem popular do "raiz" e do "nutella", surgiram os novos rapazes, metro sexuais, que passam perfumes, usam cremes e gel para cabelo e se orgulham de sua vaidade. Para eles surgiram as barbearias gourmets. Será que comem algo lá? E não é que comem. Há cervejas, bebidas variadas e algum lanchinho, agora com hora marcada, cabeleireiro agendado, ar condicionado, sofá confortável e cadeira de salão chique dos bairros caros das cidades e um cabeleireiro que faz topetinhos até nos marmanjos de 40 anos.

Sentem-se homens, machos alfas, na moda, mas se se negam a ir ao salão de cabeleireiro. Para eles surgiram as babearias com canal pago para ver os jogos da Champions League, ver UFC e o espaço é decorado como se fosse um clube de futebol. Dizem que retomaram a tradição dos avós, mas se negam a enfrentar uma navalha e aquele velho e bom barbeiro, que com o tempo ficava com as costas curvadas, fumava e usava um lenço de pano tirado do bolso traseiro para enxugar o suor.

Restam poucas barbearias "raízes" pelas cidades. Mas, ainda é possível encontrá-las, ouvir a rádio AM, discutir o futebol local e ver a segunda divisão dos campeonatos, Jogar até mesmo um truco enquanto espera a sua vez de cortar o cabelo. Ali o corte não passa de 15 reais e o cabelo sai cortado do mesmo modo que nas barbearias gourmets, que cobram 60 reais, que imitam o passado e apresentam ao mundo o novo homem da sociedade. 

Há ainda alguns barbeiros. Eles olham o passado, alisam o velho pôster de campeão brasileiro de seu time do coração, afiam as navalhas e sentem-se como museus da nova sociedade, na qual se multiplicam as barbearias gourmets para uma burguesia cada vez mais ávida em consumir sem respeito ao passado e sem saber que regridem pouco a pouco ao mesmo passado que condenam, preconceituosos, disfarçados em suas calças jeans e suas barbas bem aparadas de uma heterossexualidade limitada. 

sábado, 29 de setembro de 2018

Paraná-Paris


Em 2012 quando mudei para a cidade de Maringá, no estado do Paraná aconteceram muitos episódios curiosos. Todos demonstravam o desconhecimento que as pessoas têm em relação ao território paranaense. A primeira coisa que ouvi foi: “lá é muito frio, você vai congelar”; “já comprou blusas?” “Você vai ficar sem ver o jogo do seu time preferido, eles não gostam de paulistas” e por aí vai.

Além disso, descobri que para o mundo lá fora, no qual eu ainda estava, mas em fase de transição: Maringá não existia, assim como Londrina, Ponta Grossa, Cornélio Procópio, Santa Mariana, Matinhos, Paranavaí, Cascavel, Foz do Iguaçu, Colombo, Toledo e muitas outras cidades. Eu estava de mudança para o Paraná, este estado desconhecido por muitos, ignorados por outros e lembrado, muitas vezes, pelo fato de os Curitibanos serem fechados demais.

Mas, a rigor, não moro em Maringá, moro no Paraná. Minha mãe mesmo quando perguntada onde está o filho mais novo, responde: “ah... agora ele mora no Paraná”. Para piorar a situação, estou eu de passeio por terras paulistas e ao assistir o jornal Nacional, o Hoje, a Band, a Record, todos os repórteres se referem ao Paraná: prefeito é preso no Paraná, advogada é morta pelo marido no Paraná, acidente na 376 mata 20 no Paraná. “Ué, Paraná não tem cidades?

Já instalado em Maringá, nada melhor do que ver os jornais locais e conhecer a cultura do estado. Logo descubro um jornalista local, pronto para ascender a repórter de rede nacional pela Globo. Mas, ainda no seu sabor local, chamava-se Wilson Cereja, veja que belo o sobrenome: Cereja. Cereja, porém, é fruta demais para o jornal de âmbito nacional e em pouco tempo, temos o jornalista, imponente, com seu microfone em mãos com mais uma matéria, produzida pelo agora, então, Wilson Kirsche.

Ainda bem que tem o “Plug” todos os sábados e com uma simpática repórter paranaense (risos...) apresentando as cidades do Estado para nós. Amei conhecer lanches, rios, cachoeiras, as bebidas, as capelas, as praças, os imigrantes que construíram esse estado chamado Paraná.

Vejo que me alongo demais e ainda não expliquei por que Paraná-Paris. Logo ao chegar à França, mais propriamente à cidade de Lyon, algumas pessoas voltaram a falar comigo e outras se afastaram também. Algo não mudou: quando digo que estou na França, vem logo a pergunta: você está em Paris. Ao responder Lyon, o interesse diminui e o diálogo encurta ou recebo um conselho de amigo: não deixe de conhecer Paris, quase dado ao pé do ouvido.

Percebi, então, que não se vem à França, vem-se a Paris, o que foge disso não interessa às pessoas. Claro, em algum momento irei a Paris e aí minha viagem ganhará novos contornos e, finalmente, terei feito a conexão Paraná-Paris tão esperada e sonhada pelas pessoas. Viva o Paraná, viva a França. O “Plug” que me aguarde.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Ah aquele avanço....


Aqui na França, pelo menos em Lyon, Auvergne-Rhône-Alpes, tem um desodorante chamado Cien em todos os mercados. Não custa mais que um euro e é cheirosinho. Supre as necessidades diárias de alguém que sue, pegue um tramway, um metrô ou um bus. Baratinho e bom, nem precisa de promoção. O Rexona, Dove ou Axe em promoção no Carrefour custam em torno de 3 euros. Ah...e antes que digam: é espanhol, já adianto minha pesquisa feita no Google maps, é feito em Stolberg e não é na Espanha.
Não quero, porém, me perder em preços e em mapas que nada provam. Após o banho, benditas as águas que nos levam às reflexões, resolvi ler o rótulo e vi “parfum vitalisant”, dura 24 horas. Confesso que nunca entendi bem isso. O Axe, Rexona, Dove ou Nívea Man, dizem que duram por 48 horas. Chego a ter medo só de imaginar que alguém possa ficar 48 horas sem banho, só na base do “tchitchi” do aerossol. Mas, vá lá, há pessoas e pessoas pelo mundo.
Neste momento, deu aquele estalo, as portas do passado se abriram na memória e me lembrei da época em que eu assistia aos Trapalhões na Globo aos domingos. Aquele original ainda, com Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Nos intervalos havia propagandas de diversos produtos. Uma delas era de Xuxa nova e pernuda, que vivia passando o creme hidratante da Monange, que acredito eu, ela corria tirar aquilo do corpo após a gravação. Ainda não entendo como minha mãe e minhas tias usavam aquilo. Um dia cheirei o creme e quase tive um desmaio, creme para afastar qualquer love à noite.
Havia também as propagandas que me interessavam. Já que a Xuxa era a rainha dos baixinhos e vê-la naquela posição sensual, às 19h00, dava a sensação de estar espiando minha mãe e não tenho vocação para relações incestuosas.
Lembro-me das propagandas dos desodorantes masculinos. Pensava comigo: Ah...quando eu começar a trabalhar vou ao mercado comprar um desses. Tomar um banho, ficar cheiroso e sair para ver as meninas que giravam feito carrossel em volta da pequena praça de Palmital.
Uma das propagandas me chamava a atenção e anos mais tarde virou motivo de piadas dos rapazes de minha geração nas mesas de bar: “Avanço, você passa e elas avançam”. Lembro bem do slogan e tinha um Vitor Fasano que passava o perfume e sem camisa, na posição clássica do macho alfa da época, se apoiava com o braço no batente da porta, tendo uma bela fêmea que vinha ser acolhida debaixo de seu braço. Anos depois, já maior, passei aquilo nas axilas e Gzuis dos pobres moços, aquilo só poderia atrair as moscas. Também com aquele tubo marrom e preto e com as letras garrafais escrito “Avanço” não podia ser lá aquelas coisas. Mais uma ilusão da infância pelo ralo ou pelas axilas, porque como coçava aquilo.
Tive outras decepções na vida. Havia outra propaganda mais imponente. Très de Marchand, tubo verde, com duas espadas cruzadas, ao modo de um filme de espadachim. Pensei, este deve ser bom e nos meus primeiros salários de entregador de jornal, nas pequenas madrugadas palmitalense, e de servente pedreiro ao longo do dia, ao final de semana, com o cheque em mãos fui ao supermercado com minha mãe. Mais um homem em casa, o salário da semana ia para comprar o alimento que nos ajudaria a sobreviver. Estávamos melhor nesta época, juntávamos o salário de meu irmão e o meu e vinha uma compra razoável, sobrando para eu comprar, então, meu sonhado perfume da propaganda do intervalo dos Trapalhões.
Eu sabia até onde era a prateleira em que ficava o imponente “Très de Marchand”. Sem titubear apanhei-o avidamente antes que outra necessidade surgisse eu o atirei no pequeno carrinho de compras. Na época não tinha essas coisas de aerosol, os tubos de perfume eram de plástico e tinha um canudinho interno que levam à tampinha com um pequeno furo que servia para, literalmente, esguichar o perfume nas axilas e, é claro, pelo peito, pescoço e onde mais julgasse necessário para ficar cheiroso, não tinha esse negócio de 15 cm longe das axilas e, em caso de irritação, suspenda o uso.
Era sábado, à noitinha tomei meu banho penteei meus cabelos e antes de enfiar a camiseta por dentro da calça e apertar o cinto para parecer um homenzinho, esguichei o poderoso Très de Marchand”. Que decepção! Era pior que o Avanço, cheiro forte, daqueles de dar dor de cabeça.  Como sairia de casa com aquele cheiro? Quase chorei; emburrei e fui ver a Globo, na nossa TV ainda em preto e branco. Para piorar, o luxo de um novo desodorante só seria permitido no mês seguinte. Não me lembro bem, mas acho que parei de ver os Trapalhões, pelo menos na hora das propagandas.
Como no mundo não há mal que dure para sempre, alguns anos mais tarde fui salvo pelo Axe, Axe Native, ainda me lembro o nome. Parecia perfume e eu podia usar sempre. Já ganhava mais e se o tubo acabava em quinze dias eu comprava outro. Às vezes na compra eu já trazia dois. Porém, não há bem que dure a vida toda também, a empresa tirou a fragrância de linha. Percorri supermercados, farmácias de amigos, comprei o que havia de resto no estoque e usava menos para durar mais, sabendo que em breve o cheiro do Axe Native seria apenas uma lembrança.
Tudo bem, anos depois eu usava Yves Saint Laurent, Bylgari, Dior, Paco Rabanne, mas guardo na memória ainda os primeiros desodorantes e suas decepções, que só não são maiores porque há pouco surgiu uma propaganda que me faz rir sempre e pensar quais os garotos cairão na mesma armadilha que eu um dia caí. Old Spice, o único “carregado com partículas de cabra macho”. Opa, peraí, que história é essa. Vou passar um Old Spice e ter partículas de macho percorrendo meu corpo o dia todo? Não, muito obrigado. Acho que a própria empresa percebeu a mancada e substituiu o amado Malvino Salvador das moçoilas pelo pai do Cris, do “Todo mundo Odeia o Cris”, o ator até tem nome, mas depois de ser o pai do Cris, ele sempre ficará em nossa memória. Pelo menos, a propaganda é bem-humorada e acredito, em breve, falirá a empresa ou ela retirará o produto do mercado.
Ah e antes que alguma empresa resolva processar o pobre consumidor aqui, já adianto: não tenho dinheiro no banco, não tenho carro e nem moto. Então, se quiserem, podem penhorar minhas axilas, elas foram bastante maltratadas ao longo da vida.




quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Meu antigo Lorenzetti


Sempre fui um sujeito que gostou de se levantar antes dos horários dos compromissos para tomar meu banho. Nada melhor que aquele banho cedo, demorado, a água escorrendo pelo corpo, desculpem-me os ecologistas de plantão, horrorizados neste momento, mas um bom banho, um banho de patrão, e olha que nem precisa dos sais na banheira, é uma maravilha. Às vezes, quando a água escorre pelo meu corpo e sinto aquele calor, lamento o dia em que tiver de morrer e não puder mais ter essa sensação do corpo limpo. Nessas horas, lembro-me de Deus e até faço uma pequena prece, meio envergonhado de ter esquecido do patrão mor por tantos dias.
Mas nem tudo são sais, melhor rosas, como dizem na linguagem popular. Todo mundo te enche a cabeça que banho de chuveiro comum não presta, que eu deveria jogar fora aquele Lorenzetti e que não ouse comprar um Corona, que eu coloque um aquecedor no apartamento para ter água quente nas torneiras e, é claro, no chuveiro, para tomar aquele banho de hotel, no qual desperdiçamos água e tomamos um banho de horas, já que estamos pagando....
Ninguém te avisa, porém, que o relógio deve despertar antes. Ao entrar no box, meio apressado, querendo aquele banhinho digno, pelo menos de 10 minutos, para sentir as ideias fluírem e descerem pelo ralo em seguida, para fazer uma reflexão sobre a vida, amar os amigos, as antigas namoradas e odiar os inimigos, ensaiar tudo o que vamos jogar na cara deles, vira quase uma odisseia.
Primeiro a água escorre por quase cinco minutos, enquanto você espera que ela esquente e poderiam ter sido cinco minutos de fantasias, aquela dosinha diária de cachaça que o mestre Candido nos ensinou a fazer. A luta se torna mais ferrenha, aos primeiros vapores que sobem pelos ares anunciando a água quente, entramos rapidamente debaixo da ducha e nessa hora tenho dó dos porquinhos sendo pelados, porque a sensação é esta: a água está quente demais e somos obrigados aos saltos a fugir para o canto do box, acuados pelo furor da modernidade.
Nova luta. Toalha enrolada no braço para evitar as queimaduras, bye bye tolha seca para depois do banho e iniciamos os ensaios dos giros das torneiras. Abre-se o lado frio e a água esfria demais, não dá para refletir assim. Viramos um pouco mais e a imagem dos porcos assassinados voltam à minha mente ou se preferirem à minha pele. Vira para cá, vira para lá, o tempo do banho escoando pelo ralo das horas, acertamos algo no meio termo e nada pior que o meio termo, é igual café morno, chá frio, meia paixão, é igual a incerteza se a pessoa do encontro da noite passada vai te mandar um whatsapp ou não. Enfim, a água entra num processo diplomático do nem tão quente e nem tão frio te dando tempo para um banho de operário, com hora marcada na parada de ônibus e cartão de ponto a descontar seu atraso.
O banho se torna nossa primeira decepção do dia. A vontade de ligar para a mulher do amigo e mandá-la às favas, por ficar enchendo as paciências e louvando as benesses do banho com aquecedor vem-me à mente. Respiro fundo, visto minhas calças, vou à cozinha, esquento a água para o café e tenho saudades: “bem que o Lorenzetti poderia mandar um whatsapp, dar notícias, coitado, fora atirado ao lixo com um inútil”.
Meus amigos, meus inimigos, alguém viu o Lorenzetti por aí, se o virem avisem que sou um homem que aceita tudo e que até lhe troco a resistência se for preciso. Por favor, peçam para o Lorezentti voltar, prometo nunca mais reclamar que ele não esquenta quase nada no inverno, que paguei barato demais por ele e que o barato sai caro.




quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Salamalekum

Há vários tipos de exames. Algumas mulheres tocam as mamas, alguns homens vão ao médico fazer o toque da próstata, alguns são autoexames e outros nem tanto, mas precisamos de alguém que nos ajude a fazer a avaliação que, em geral, é dolorida.
Nem sempre se olhar no espelho adianta. Não porque tenhamos comprado o espelho barato demais e ele nos distorça por inteiro ou, no meu caso, o astigmatismo ajude a piorar a situação. Precisamos do olhar do Outro, por mais que doa.
No meu caso, algo curioso vem acontecendo. Desde que deixei o Brasil e passei pelo Marrocos, perdi um pouco daquilo que eu achava ser minha brasilidade. Não que eu gostasse dela e fizesse disso uma bandeira, mas era algo que eu tinha para reclamar todos os dias. Agora nem isso. Ninguém me pergunta: você é brasileiro? Ninguém vê em mim o latino-americano, resultado da cultura subalterna, de um país que foi colonizado e vive o atraso mental do cone sul tão estereotipado nos programas da norte-americana HBO.
A pergunta é outra. Melhor, não é uma pergunta, é uma saudação em quase todos os lugares por onde passo e há um representante da comunidade árabe ou muçulmana, logo me diz: "Salamalekum", ao que prontamente respondo o mesmo e recebo um leve acenar de cabeça quase reverente. Sou árabe e não sabia. Meu orgulho do lado indígena, meu avô negro e pedreiro, minha avó italiana e fogosa, do lado paterno, e minha avó cafuza, do lado materno, viraram um borrão no quadro da árvore genealógica, cultivada a duras penas dentro de mim.
E não há o que mude a forma de me verem. Um taxista marroquino todo empolgado começou a conversar comigo em árabe, fez-me a saudação e depois, se teve alguma decepção, soube disfarçar e falamos numa salada que nem nós entendemos direito: usamos português, francês, espanhol, inglês e cada um gastando um pouco do que sabia, discorreu sobre literatura, música, política e cultura entremeados pelos comentários do ainda boquiaberto taxista  que jurava ser eu um árabe.
Assim é a vida, não como ela é, mas como nos veem e como nos julgam ao longo dela. Se no Brasil, já fui pretinho, escurinho, moreninho, meio narigudo, narigudo, magro demais, cara de cigano, aqui, na França, neste momento, que foi meu destino final, virei árabe, muçulmano, sou outro, meu eu novamente ficou pendurado em um retrato que olha para uma bandeira nacional vista só na memória, e habita a parede da sala de minha mãe .
Salamalekum! Já é tarde e vou dormir.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Sob o sol de Lyon


Lyon corre ligeira sob meus pés,
bolhas e calos levantam-se em protesto
e os meus pés mudos cubistas
 queimam ao sol do meio dia,
sabendo que o fim da jornada ainda tarda.
Lyon corre indiferente sob meus pés
e aos meus olhos ninguém pode ver.
Angústia, tristeza e felicidade são detalhes
que não interessam ao alienígena que passa
ao lado, com suas preocupações francesas
da baguette e do petit déjeuner.
A vida como uma serpente negra sinuosa
segue quente sob meus pés.
A cabeça é um sol escaldante e ainda acesa
queima milhares de arquivos indesejados.
Lyon dorme quente sob meus pés
sinto seu corpo nu escaldante
e vivo a sensação do eterno bonjour,
que se encerrará às nove da noite,
quando ainda há um sol sobre minha cabeça
e nem todas as estrelas da noite poderão apagar
de meus pés cansados o corpo nu e quente de Lyon.






quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Corvo irmão

Desajeitado corvo
teus passos de pato
e tuas asas negras de luto
guardam segredos
de quem aprendeu a voar
porque andar era difícil.

O pouso ainda é desajeitado,
aos saltos, tendo de abrir as asas
para reduzir o impacto
sobre as finas pernas de graveto.

Corvo grotesco, és belo e medonho
na tua falta de charme,
és obsceno
como um velho despudorado
a quem o tempo deu a liberdade
de deixar sobre o criado-mudo
as máscaras da dissimulada cortesia.

Enquanto as criancinhas alimentam os pombos,
os corvos recolhem ao rés-do-chão
as quinquilharias de um universo
esmagado pela indiferença
dos humanos pés calçados.

Corvo obsceno e despudorado,
irmano-me contigo em solidariedade
de quem sabe que o chão
é o princípio e o fim de todas as coisas.

domingo, 2 de setembro de 2018

Uma manhã difícil e um coração


Um coração não é fácil de se achar. Quem tem um coração disponível? Disposto a enfrentar as dores e os problemas das relações amorosas? Um coração é como um tesouro, frase de Almanaque Fontoura, eu sei. Porém, uma vez encontrado, temos de trabalhar todos os dias para não quebrá-lo e isso não é fácil. Um coração disponível, então, mais difícil ainda.
Será possível encontrar um coração novo, sem uso, com todas as etiquetas para o caso de uma troca ou devolução? Um coração embalado para venda? Será possível comprar um coração na loja de usados? Talvez em um brechó de corações? Nas lojas de antiguidades? No site da Amazon? Existe um coração que pode ser encontrado em alguma praça pública, escondido entre as flores ou entre as folhagens de um jardim? Não sei. E tudo o que sempre desejei foi saber, saber de tudo, ser um sabe tudo, um sabichão. 
Um coração quebrado não é fácil de se consertar, é quase obsceno um coração quando está despedaçado (Os Aztecas amavam a guerra florida). Porém, no mercado das relações amorosas conhecidas ou desconhecidas, legais ou clandestinas (Clarice bem o sabia), nacionais ou estrangeiras, falsificadas na 25 de março ou em Ciudad del Este, os corações vivem sendo quebrados, colados, remendados, mas, continuam sendo corações à procura de um amor ou de quem os ame, e também em busca de alguém para amar.
Em tempos modernos falar de amor parece "breguice"; no entanto, por que procuramos tanto? Por que há tantas redes sociais e sites de encontros lotados de pessoas, na longa fila do sonhado amor. Programas de televisão se multiplicam e fazem encontros às cegas, brincam de cupidos, fazem propostas e o público aplaude. Do outro lado da TV há uma grande quantidade de telespectadores rindo, entupindo-se de pipoca e coca-cola, comendo lasanhas, chocolates, enquanto discretamente olham seus celulares para ver se alguém ligou, enviou mensagem, deixou algum "like" ou deu "match".
Um coração não é fácil de se achar, temos de procurar com calma, com cuidado, pode estar perdido em uma praça, escondido entre as folhagens, quebrado, remendado, mas à espera de alguém que o veja, que o compreenda, que possa ajudar a juntar os cacos, dar forma e sentido novamente àquilo que fora quebrado.
Tudo isso me passou pela cabeça em uma manhã fria em Lyon, não muito fria para um francês e bastante fria para um brasileiro. As coisas não andavam bem, estavam desordenadas e desequilibradas; eu olhava para o rio Rhône e tentava entender o fluxo da vida, quando resolvi sentar em um banco e vi o mesmo morador de rua do dia anterior sentado no banco ao lado. Como se olhasse para o nada, ria e ria sem incomodar-se com as pessoas.
Sentado, e também com o nada diante de mim, vi entre as folhagens um coração em alto relevo, vermelho, colado, montado, um mosaico de cacos que parecia pulsar, saltando da pedra; havia os espaços entre os cacos, rios que cortavam o coração, pequenos cortes de concreto, mas era um coração como tantos outros: ferido, triste, solitário por diversos motivos que fugiram aos planos; mas estava lá, ainda sendo um coração, vermelho como o das caixas de bombons compradas a preço de ouro nas lojas de souvenirs.
Havia ali um coração, um coração de pedra, esculpido por algum artista triste, solitário, que resolvera deixar na pedra seus sentimentos. Seu coração endurecido habitava um jardim de solitários, transeuntes, andarilhos, pessoas apressadas para chegar ao trabalho, pessoas precisando pensar na vida, como era o meu caso. Todos, portadores de um coração, talvez inconfessadamente em pedaços, assim como aquele coração, quebrado, com os cacos colados, desafiando os habitantes da praça a olhá-lo, a enfrentá-lo como um espelho, como um reflexo puro de uma manhã triste em Lyon.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...