sábado, 3 de agosto de 2019

Os pés da morte

Já tive os dois pés. Minha família pode confirmar. Os meninos sabem o tanto que andei por esta cidade. Marcar consulta para uns, cuidar da minha sogra, aguentar minha mãe e, às vezes, mas só de vez em quando, dar-lhe uns safanões. 

Era requerida por todos e a todos eu estendia minha mão. Tinha um prazer mórbido pelos doentes da família e até dos vizinhos que precisassem de mim.

Acho que a morte de minha mãe me trouxe a culpa. Fazer o quê? A vida se melindra em algumas situações.

Meu estado atual não é bem culpa dela. Herdei, porém, um diabetes desgraçado que me assolou desde a tenra juventude. 

Quase fui mãe. A criança, ainda não totalmente formada no ventre declinou da vida. Evitou carregar o mesmo peso que eu e se foi. O filhos que não tive, a vida me devolveu nos meus meninos (primos mais jovens, sobrinhos que herdei de meu amásio e de minhas irmãs). O diabetes não deixou que a maternidade visitasse minha porta. 

Estou viva e isso é um percalço no meu destino. 

Voltando aos meus pés, que os deixei lá atrás. Utilizei-os ao desgaste máximo. Agora estão aqui pela metade. O que prova que duas metades não fazem um pé. Tenho metade de cada um dos pés, mas isso não me faz andar melhor nem pior. O plano falhou.

Desde jovem, sabendo do meu diabetes e sabendo-me morta desde o nascimento (o pai resolvera aplicar um golpe ao sogro e a outros desavisados e vendeu vários bens que ajudariam a pagar o velório da filha natimorta), resolvi acabar com minha vida pela boca. Abusei de todos os açúcares e não feliz ajuntei-me a um dono de bar. Minha cota de cachaça eu comia em doces.

Um belo dia, sem estar morta, descobri que o diabetes estava na estratosfera e precisava me cuidar, o que não sabia é que metade de meu pé direito estava morto, um simples arranhão de gato penetrou a pele e devorou todas as células da extremidade. Uma cirurgia e lá se foi metade de um pé, meses depois e sem melhoras, foi-se a outra metade, agora do pé esquerdo.

Mesmo aqui nessa cadeira de rodas e morta por antecipação, acompanhei aos velórios de um sobrinho, minha sogra e mais dois tios. Meus pés agora andam pouco, mas pude ver cada um dos féretros.

Se meu objetivo era a morte, ela veio, chegou aos poucos e vejo-a devorando-me pelos pés, esses, ou melhor, essas duas metades de pés, que tinham enterrado a tantos, agora me enterram lentamente na vida que se passa diante de minha cadeira de rodas. Não que fique nela o tempo todo. 
Caminho pouco e lentamente, assim vou imitando a morte que desde cedo se negou e me levar. Quem sabe meus pés, mesmo cotocos, ainda enterrem muita gente. E nisso vou fazendo-me sócia da indesejável dos homens. 



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