quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Ninguém nos espera

Ninguém nos espera
do outro lado da vida
nem do outro lado do telefone.
Não há espera
só expectativas 
e não cabe a ninguém
atendê-las, nem aqui
nem do outro lado
seja do mundo
seja do universo
seja do outro lado da rua.
Estamos sós
e é só o que importa.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

No meio do caminho

Não me achei em mim
nem em ti
e nessa fuga desesperadora
 de mim
encontrei-te [vazia]
no meio do caminho.

É no meio do caminho
que não sei onde me perdi
só sei que te encontrei
numa rua [nua]

e no meio do caminho
entre o bar e a padaria
entre o café e o pão
assim vi
você no meio do caminho

de nossas insossas 
existências.

Mínimas

Poetizei-me
e depois de escandido
restaram-me só meus versos
partidos.


A coisa está preta
nem por isso vou branquear-me
para caber no teu céu.


Sou muita cor
para caber no teu
papel branco
de preconceitos.






segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Lágrima

O que é a lágrima
senão essas duas lâminas
a cortar-me a face?
Uma lágrima nunca está só,
desce duplamente vincando
a face pelos extremos.
Lágrima, teu mar salgado
não me mata a sede
tuas águas não me iluminam
o rosto.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O eu do outro lado do rio

Do outro lado da margem me encontro
sempre neste alheamento do eu,
que gera a resistência em atravessar
esse rio de possibilidades.
Do outro lado estou a postos
na breve necessidade de lutar.
E estou pronto à luta
mas, com unhas e dentes afiados
nego a travessia, nego a outra margem.
Tenho medo do que me diga
o outro eu a quem alienei.
No entanto, o outro eu 
é todo rio, é todo margem, é todo fluir
e eu observo o outro na margem oposta
como quem receia da profundidade
e tem medo que o rio não dê pé.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Rhône

O rio seguia caudaloso
imenso, impetuoso,
serpenteando sua cauda
docemente silencioso.
Mas era o rio, apenas o rio
sendo ele mesmo
indiferente aos meus olhos,
que fluíam  seguindo
a correnteza daquele azul-esverdeado.
O rio assustado
recolheu-se ao meu olhar
e flui emoldurado em meu cérebro.
Impossível apagá-lo,
impossível esquecê-lo. 

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Corpo

Teu corpo é um mar de esperanças
uma saudade de viagens noturnas
de gozo de auroras,
mas também é mar revolto
de naufrágios inevitáveis.
Teu corpo é essa cidade de corais
onde encalhei meus olhos viajantes.

sábado, 17 de agosto de 2019

Isqueiro

Bato com os dedos a pedra do isqueiro
e vejo brilhar um mar de ilusões.

Deslumbrantes luzes brilham na chama azul
e perguntam quem sou, se sou um violento
aventureiro queimado pela chama da ilusão,

essa ilusão que mansa e sorrateira rouba o brilho
de uns olhos também em chamas 
consumindo a alma de terrores.

Brilha nessa chama um mar de detritos
recolhidos pelo caminho
a queimar-me o peito em nome da saudade.

Ainda não retornei à casa e a chama azul
deste isqueiro me queima a alma
devorando num incêndio
as dores da partida inusitada.

Bato a pedra do isqueiro
e mais uma vez sinto
que a vida se me consome na chama
de um brilho azul que reclama
o oxigênio de minha alma.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Maringá, capital nacional do escorregador de papelão

Há pouco tempo discutia-se na cidade de Maringá qual seria o prato típico. Discussões não muito acaloradas decidiram pelo "dogão prensado". Confesso que não vi muito sentido, mas vá lá, cada um sabe onde lhe aperta o pé.

Para mim, o que representa o maringaense é o papelão para escorregar ao redor da elevação onde está  o estádio de futebol Willi Davis. Famílias inteiras se reúnem aos sábados, domingos, feriados, e também nos fins de tarde para escorregar sobre o papelão.

Alguns trazem o apetrecho de casa. Debaixo do braço chegam as caixas de papelão que logo são rasgadas e transformadas em pranchas para descer a encosta. Mulheres, jovens, crianças, adolescentes, todos disputando espaço para escorregar.

A atividade é um espetáculo. Alguns comem um pouco de grama, o papelão escapa no meio do caminho e saem com a bunda suja de terra e grama, outros trazem papelões  maiores e seguram as pontas com as mãos fazendo uma espécie de carrinho que lhes guia na descida, há quem desça de peito, enfim, a descida é livre.

Pais levam seus filhos bem pequenos e os incentivam a perder o medo da descida. Descem juntos, ficam embaixo agitando os braços e dizendo: "vem" e quando o filho desce todos aplaudem. São felizes com um pedaço de papelão e isso faz o maringaense de modo natural, sem classe social específica ou luxo qualquer. Todos irmanados na mesma brincadeira e ali a felicidade simples reina.

Isso prova para nós que além dos luxos de celulares caros, brinquedos eletrônicos, tablets, Iphones, tudo isso é dispensável. O maringaense sabe ser feliz com pouco e aqui não vai nenhum preconceito na afirmação, apenas a constatação de que a felicidade pode reduzir-se a um pedaço de papelão trazido de casa ou emprestado a alguém que acabou de descer.

Fica, então, o convite para a descida. Escolha a sua caixa de papelão, o lado da encosta favorita, afinal há morro do dois lados do estádio e faça sua descida, é grátis e o sorriso de felicidade no rosto das pessoas é impagável.


Ao meu perdido avô africano

De que argamassa foram feitos teus braços
que não puderam abraçar teus netos?

Por que te perdeste na árvore genealógica
e teu sopro nunca alevantou 
as mechas dos cabelos das crianças?

Ah.... pedaço de pau preto
foste excluído das conversas alegres,
restando-lhe o burburinho das vozes cegas
sussurradas aos ouvidos.

Quando te escapaste dessas armadilhas
e pousou tua biografia escura em meus ouvidos?


Não sei de que matéria foste feito
apenas sei que um dia brilhou tua pele negra
e como aurora de sorriso largo,
que nunca vi, iluminou a pele
que estico sobre meus ossos.

A este avô não biográfico 
é que canto meus versos vazios
do verniz que brilha
no ébano de minhas origens.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Sobre o desespero

Tento sair de meu invólucro,
mas as correntes que me prendem
são pesadas demais.

Sigo encarcerado
em mim

e sou um carcereiro cruel
que a nada perdoa
por mais que me doa.

Daí, vem esse meu olhar
de desespero.

Herança familiar 
marcada a ferro quando nasci.

Reforçada a cada vacina que tomei,
a cada remédio que engoli
para me tornar este corpo,

que carrega consigo
o olhar desesperado
de quem ainda não compreendeu
a que veio neste mundo.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Mão dupla

Entre idas e vindas
nesse vaivém temeroso
há o sonho de não regressar,
estacionar no tempo
pedir licença aos relógios
e interromper seus ponteiros.

No ir e vir há perdas irreparáveis
e medos constantes de receios.

Mas, continuo indo [ou vindo]
inerte corpo que desconhece
da volta o seu sentido.

domingo, 4 de agosto de 2019

Despedida

Ambos estavam ansiosos.

O ônibus como sempre estava atrasado no terminal de Curitiba.  Havia várias pessoas impacientes na plataforma de embarque e, indiferentes ao casal, nem imaginavam, que os dois desfrutavam cada minuto de atraso. Se fosse em outra situação, talvez, tivessem pressa, mas agora não, era diferente.

O moço acercou-se à namorada e a envolveu em um abraço de serpente, ela sentiu sufocar um pouco, mas precisava daquela força para resistir à ideia da partida e aos fantasmas que viriam juntos com a distância. Sentiu que o coração dele acelerava. Era a certeza do amor.

Mal sabiam eles que a distância seria o término em suspenso naquele dia fatigante na rodoviária. O amor não resistiria ao adeus ou ao meio adeus, misturados às promessas de volto logo, eu vou te ver e outras formas de iludir a dor e a tristeza.

Se fumasse, o moço estaria trocando um cigarro pelo outro. Mas, não fuma, aspira lentamente o odor que exala do cabelo da namorada; não quer perder o cheiro que o agradava tanto quando era deixado por ela no travesseiro logo pela manhã. Várias vezes trocou seu travesseiro pelo da namorada, para guardar consigo o cheiro que sairia pela ruas, longe de suas mãos.

Agora era diferente. O clima frio, a garoa, a solidão que se aproximava. A cada instante estiravam ainda mais a corda do tempo. O ônibus poderia não vir, mas ele veio. O motorista começou a dança dos  braços para encaixar a frente na plataforma correta.

O silêncio precisava ser quebrado, romper a barreira da boca e converter-se em signos compreensíveis para os dois.

Enfim, falam desconexamente.

- Eu volto, espere-me, eu voltarei. Não é para tanto.
- Sim, eu sei, mas dói essa coisa de despedida.
- É temporário, eu volto.
- Então, tá. Vou esperar.
- Então, é isso...
- Sim, é isso....

O ônibus se aproxima ainda mais da plataforma encaixando-se perfeitamente.

O estômago retorce-se em mil e um nó na garganta impede novas palavras.

A moça vigia as malas, enquanto ele mostra o bilhete ao condutor.
Abraçam-se de novo, novas promessa, novos beijos... a impaciência do motorista.
Chega de adeuses, não é o fim do mundo, talvez, o fim de nosso mundo (mas, eles ainda não sabiam disso), que mal começava e já apresentava traços de corrosão no canto dos lábios que arqueavam sobre o queixo.

-Tem certeza? Você volta?
- Sim, eu volto....

Tudo ficou suspenso no ar. O vazio, a solidão de novo a preencher a ausência de um corpo. Ele ainda olha pela janela, procura sorrir, acena tristemente, enquanto o outro corpo vigia, até onde os olhos alcançam, o ônibus que parte só com passagem de ida, sem data certa de retorno.

O tempo que cuidará do resto, começa a corroer os laços, as promessas e até os corpos. Mas, eles ainda não sabem disso



sábado, 3 de agosto de 2019

Os pés da morte

Já tive os dois pés. Minha família pode confirmar. Os meninos sabem o tanto que andei por esta cidade. Marcar consulta para uns, cuidar da minha sogra, aguentar minha mãe e, às vezes, mas só de vez em quando, dar-lhe uns safanões. 

Era requerida por todos e a todos eu estendia minha mão. Tinha um prazer mórbido pelos doentes da família e até dos vizinhos que precisassem de mim.

Acho que a morte de minha mãe me trouxe a culpa. Fazer o quê? A vida se melindra em algumas situações.

Meu estado atual não é bem culpa dela. Herdei, porém, um diabetes desgraçado que me assolou desde a tenra juventude. 

Quase fui mãe. A criança, ainda não totalmente formada no ventre declinou da vida. Evitou carregar o mesmo peso que eu e se foi. O filhos que não tive, a vida me devolveu nos meus meninos (primos mais jovens, sobrinhos que herdei de meu amásio e de minhas irmãs). O diabetes não deixou que a maternidade visitasse minha porta. 

Estou viva e isso é um percalço no meu destino. 

Voltando aos meus pés, que os deixei lá atrás. Utilizei-os ao desgaste máximo. Agora estão aqui pela metade. O que prova que duas metades não fazem um pé. Tenho metade de cada um dos pés, mas isso não me faz andar melhor nem pior. O plano falhou.

Desde jovem, sabendo do meu diabetes e sabendo-me morta desde o nascimento (o pai resolvera aplicar um golpe ao sogro e a outros desavisados e vendeu vários bens que ajudariam a pagar o velório da filha natimorta), resolvi acabar com minha vida pela boca. Abusei de todos os açúcares e não feliz ajuntei-me a um dono de bar. Minha cota de cachaça eu comia em doces.

Um belo dia, sem estar morta, descobri que o diabetes estava na estratosfera e precisava me cuidar, o que não sabia é que metade de meu pé direito estava morto, um simples arranhão de gato penetrou a pele e devorou todas as células da extremidade. Uma cirurgia e lá se foi metade de um pé, meses depois e sem melhoras, foi-se a outra metade, agora do pé esquerdo.

Mesmo aqui nessa cadeira de rodas e morta por antecipação, acompanhei aos velórios de um sobrinho, minha sogra e mais dois tios. Meus pés agora andam pouco, mas pude ver cada um dos féretros.

Se meu objetivo era a morte, ela veio, chegou aos poucos e vejo-a devorando-me pelos pés, esses, ou melhor, essas duas metades de pés, que tinham enterrado a tantos, agora me enterram lentamente na vida que se passa diante de minha cadeira de rodas. Não que fique nela o tempo todo. 
Caminho pouco e lentamente, assim vou imitando a morte que desde cedo se negou e me levar. Quem sabe meus pés, mesmo cotocos, ainda enterrem muita gente. E nisso vou fazendo-me sócia da indesejável dos homens. 



  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...