sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Uma lata de Coca-Cola


O que é uma lata de Coca Cola? Pergunto-me às 12h52min aqui na França? Penso em levá-la comigo, guardar mais que na memória o momento e colocá-la na bagagem de volta daqui a um ano. Mas, o que levaria comigo? O momento e o sentimento que envolvem a lata de Coca Cola teriam ficado para trás, nada mais diriam da sexta-feira chuvosa e fria que ainda é e que no futuro já terá sido esquecida. Não só ela, o sentimento do momento, do despertar que uma simples lata de Coca Cola pode produzir em nós.

Olho para a lata de Coca Cola. Há a estampa de dois jogadores da Seleção Francesa de Futebol. Embora seja novembro, ainda é o ano da Copa do Mundo e os franceses não se cansam de lembrar disso nas bandeiras que ficaram esquecidas nas janelas das casas, nos parapeitos, nas propagandas velhas que ainda não foram substituídas, nas figuras de um Mbappé sorridente que insiste em mostrar ao mundo os "Bleus". E agora, na lata de Coca Cola, ele está a me olhar, enquanto eu como um "Rosette", nada mais do que pão com salame. 

Penso comigo: a camiseta poderia ser amarela, poderia ser a seleção brasileira ali registrada na lata. Não é. A seleção francesa ocupa a estampa. Novamente ficamos para trás. Assim, não levo comigo a lata, guardo-a na minha memória. Há objetos que ficam sem sentido fora do local que foram produzidos, eles devem guardar seu espaço, sua origem e essa lata é francesa, pertence ao sentimento de vitória da Copa do Mundo e na minha estante, ela lembraria apenas a derrota, a minha derrota, que ainda eu vivia em felicidade naquela tarde,  e a saída do Brasil do torneio, diante uma Bélgica muito mais animada. 

O sorriso de Mbappé vai crescendo, enchendo a sala, engolindo-me em sua alegria de menino que ganhou um novo brinquedo. Deixo-me estar ali sentado, mastigando e olhando aquela lata como um troféu sobre a mesa. Vejo como essa lata tem sentido aqui na França, como ela é nacional, como ela veste as cores da seleção Francesa e sinto-me um pouco participante desta alegria, deste sorriso que insiste em me contagiar.

Não, a lata de Coca Cola não poderia correr o risco de parar em uma cooperativa de material reciclável no Brasil. Ela tem de ficar aqui. Ser enterrada no local que nasceu, ser recriada, vestir novas roupas, ser uma Coca Cola cheia de novo, esperando novos lábios a beijá-la. Por isso, não posso levar esta lata comigo, aqui é a casa dela e fica tão bonita vê-la assim como um troféu, que não ouso ultrajar sua nacionalidade. Não imponho a ela o exílio. 

Desisto de levá-la. Procuro a lata de lixo mais próxima e com certo cuidado a deposito no fundo do cesto, como se enterrasse a um ente querido ou a um amigo. Antes, porém, fotografo a lata em suas cores vermelhas tão conhecidas de todos os consumidores. Registro o momento para alguma necessidade que ainda desconfio não saber exatamente qual é.

É só uma lata, eu sei. Mas, o sentimento que me invade agora não é compartilhável, é único, íntimo. É meu momento de estrangeiro, de estudante, de profissional em licença para um Pós-Doutorado na França. Sinto-me um pouco Mbappé. Sem o sorriso dele, é claro. Não ganhei a Copa do Mundo, não recebi um troféu, não fiz a viagem sob os fogos da alegria dos vencedores. No entanto, estou aqui e este sentimento de irmandade com um Mbappé de lata, sorridente e menino é que me dá esperança de que o mundo é possível.

Recupero rapidamente a lata. Empunho-a como um jogador que venceu a Copa do Mundo e nessa contemplação também sou um pouco Mbappé, também sou um pouco vencedor e deixo que seu sorriso ilumine uma vez mais a sala nesta tarde chuvosa que nos avisa do inverno. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O peso do ar

Quando vou respirar um ar mais leve na vida?
Quando perceberei que o chumbo dos dias
é mera perspectiva que adoto diante
das inevitabilidades do cotidiano?

Cabe a mim saber o peso do ar que respiro,
abrir as janelas que estão fechadas
soltar o ar denso e podre dos pensamentos
que se acumulam no canto da mente.

O ar pode corroer, quando nos damos conta
ele acabou com as veias, com o pulmão,
secou as mãos e os lábios perderam o viço.

Peso o ar, sinto sua densidade, sua aspereza
e nele contemplo os dias lixando
minha materialidade, desgastando o verniz
que longamente lustrei ao longo dos anos.

Preciso filtrar o ar e com ele os dias
saber o que vale a pena
o que deixou a alma pequena
e reduziu o horizonte de meus olhos.

Quanto pode pesar o ar? Quanto deve pesar o ar?
O oxigênio tão necessário à vida
cobra seu peso em gramas, quilos, toneladas,
mas como pagamos aos poucos,
não percebemos que ele nos leva a casa e a vida.

Quanto pesa o ar, que derruba as folhas das árvores,
que vinca nossa pele como um bicho geográfico
que traz a poeira, que suja as narinas com a poluição
dos escapamentos dos carros e das indústrias?

Quanto pesa o ar, capaz de derrubar nosso semblante
marcar o rosto e as mãos?

Quanto pesa o ar que deixa o corpo lento
e faz a marcha dos dias se arrastar ao som
do tic tac incessante das horas?

Quanto pesa o ar?

Enquanto não me respondem,
enquanto alguém não me responde,
vou respirando esse ar, sentindo sua densidade
seu peso cobrado ao longo dos anos.

Meto a mão no bolso e não tenho com o que pagar.
Pago com o corpo o ar que respiro
e seu peso vai aliviando o meu peso,
fazendo com o que desça à terra
não seja mais que o leve peso de uma pluma
a desenhar no ar o último voo aprisionado
de quem sempre quis ter os pés no chão.








sábado, 17 de novembro de 2018

Moedas

Para que servem as moedas? Compras? Pagamentos de bilhetes de tramway? Esmolas? Comprar balas ou chicletes na cantina? Tomar aquele expresso de 0,80 cents de euros? Se tiver 1 euro, e com sorte, pode encontrar 300 gramas de chocolate ao leite no supermercado. Comprar pirulitos ou aquela baguetinha básica que os franceses adoram. Se comprar para assar em casa, pode levar duas e ainda te sobram 15 cents. Ah... temos também as moedas de 2 euros, elas compram mais coisas, mas deixem-nas por ora. As moedas servem para muitas coisas, além, é claro, de acabar com os moedeiros de nossas carteiras e entulhar os cantos dos armários com aquelas que são esquecidas às pressas ao se tirar as calças. 

Interessa-me, porém, outra questão. Por onde passam as moedas? Quem as pegou antes de mim? Por onde andaram? Por quais bolsos passaram? Quais as mãos sustiveram aquela moeda entre os dedos? Brincaram com elas, olharam-na ou simplesmente no gesto mecânico pagaram algo? Gosto de imaginar que as moedas viajam. Há alguns anos um amigo me deu 1 euro no Brasil e disse: para dar sorte, para quando fores à Europa. Achei bobagem e guardei  no porta-canetas, sempre à minha vista, aquela moeda sem valor real naquele momento. Eu a perdi, no entanto, cheguei à França.

Por que há pessoas que guardam moedas? Afeiçoam-se tanto a elas? Sempre que vou a museus, vejo coleções de particulares de moedas. Algumas com mais de duzentos anos e penso: nossa, elas viram muita gente nascer e muita gente morrer. Viram políticos ascenderem e com a mesma velocidade caírem; derrubaram alguns políticos também e foram trocadas por outras de maior valor.

As moedas nos cercam todos os dias. São valores menores, não são sonhadas, poucos ainda têm aquele porquinho rosa de cofre para deixar as economias. Nunca tive um porco, mas já tive uma lata. Nas épocas gordas do real, juntei quase 100 reais em alguns meses e paguei todos os pedágios e cafés de uma viagem que eu havia feito. Antes troquei as pobres numa padaria, o dono ficou super feliz com o troco para a semana. Vejam, as moedas nunca são valorizadas, sempre estão de passagem, são dadas como trocos, estão longe do glamour dos cheques especiais ou dos cartões de créditos internacionais.

Ninguém se arrisca por uma moeda. Se ela caí ao atravessar a faixa de pedestres, deixamos-na ali. Porém, presenciei quase mortes, nas faixas de pedestres de São Paulo, de garotos que deixaram seus bonés voarem da cabeça, pessoas derrubando seus celulares ou moças as suas bolsas. Mas, por uma moeda, quem se atira ao desconhecido do além? 

Moedas são seres resistentes como as baratas. Habitam cantos escondidos das casas, brechas de móveis, pés de cama, cantos de armários, bolsos de calças e casacos e ficam ali quietinhas, imunes ao tempo, sempre sendo moedas à espera de que novamente dedos as toquem e as coloquem em circulação. Moedas são seres silenciosos, até valem alguma coisa, até pagam pequenas contas, mas estão longe de serem desejadas. 

As moedas são andarilhas. Passam pelas mãos dos mendigos, de pedintes, que jamais te pedem 5 ou 10 euros para comer. Mas, uma "monnaie", "une pièce pour manger". E, no final das contas, as moedas vão alimentando muita gente ao longo do dia. Aqui na França dá até para aquela cervejinha e uma baguete em um dia mais generoso nos corações humanos. As moedas são andarilhas, dormem debaixo dos bancos e das árvores e um belo dia habitam nossas casas, nossas latas e moedeiros à espera de outras mãos, de outras carícias, de outros dedos. As moedas são promíscuas por natureza, se vendem fácil e se desapegam fácil também. 

Para mim, as moedas são os seres mais solidários do mundo. Elas habitam as mãos dos mendigos, seus chapéus, latas, garrafas, ocupam as caixinhas de ofertas das igrejas, estão nos bolsos dos bêbados para tomar aquele "esquenta peito", para beber aquele "querosene" e nos salvam ao final do dia, quando desesperados batemos as mãos nos bolsos e achamos aquele metal para pagar a volta para casa. Nunca agradecemos as moedas, talvez nem as olhemos, a não ser para sua cifra, mas quem se atenta à sua arte, suas musas e animais em extinção esquecidos em alto relevo em uma de suas faces?

Uma moeda é um valor de mercado. Compramos moedas estrangeiras para viagem, mas recebemos as notas de papel. As moedas estão por aí, à espera de uma mão, de alguns dedos e de mais uma viagem pelos cantos das cidades e dos países do mundo. Elas não precisam de malas, estão nas carteiras, nos bolsos e nas bolsas. Uma moeda sempre viaja e raramente é declarada como um valor trazido na bagagem, uma moeda é um imigrante capaz de habitar os cantos mais desconhecidos da humanidade. 


sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Permissões

Permita-me lhe dizer,
mas sem ressentimentos
que isso venha a causar
ou desilusões que possam
brotar e do nada
crescerem no jardim
que com tanto cuidado
cultivaste longe da verdade.

Permita-me lhe dizer;
que nem todas as pessoas
do mundo são felizes
nem todas acordam sorrindo
pela manhã, mesmo que haja sol,
nem todas as pessoas amam
e nem todas que amam
têm o amor ao seu lado.

Permita-me lhe dizer
que nem todos gostam de política
e alguns que gostam
nem por isso são melhores;
que nem todas as pessoas do mundo
são bonitas, mesmo que os livros
de autoajuda digam o contrário.

Permita-me lhe dizer
que nem todos os sonhos se realizam
que nem todas as mulheres gozam
que nem todos os homens têm ereção
nem por isso deixam de viver.

Permita-me lhe dizer
que nem todas as casas são grandes
e que outras por serem grandes
nem por isso trazem alguma felicidade.

Permita-me lhe dizer
que ter o emprego dos seus sonhos
pode não lhe trazer felicidade,
que comprar satisfaz nos primeiros
cinco minutos e que os próximos
cinco minutos serão de frustrações.

Permita-me lhe dizer
que nem todo sorriso é de alegria
que nem toda selfie é verdadeira
e que a casa do vizinho pode
ser um inferno
e que cortar a grama do seu jardim
pode ser algo entediante.

Permita-me lhe dizer
que nem toda transa é boa
que nem toda punheta é ruim
que tem punheta que é melhor
que transar o mês inteiro.

Mas sobretudo....
permita-me lhe dizer
que não precisa concordar comigo
que na verdade, poucos concordam
e nem assim o mundo
parou de girar um dia.

E por fim, permita-me lhe dizer
que nem todo the end
tem final feliz
que comédia romântica
é legal só para o cinema
que nem todo romance
é agradável de ler
nem por isso o desgostamos
e que com meia dúzia de palavras
um porco pode ser rei.

Mas, sobretudo, e daí sim, por fim,
permita-me lhe dizer
que não abra mão de ser feliz
nem que isso seja idiota para as pessoas.
Permita-se dizer aos outros
que na parede de sua sala
você dependura quantos quadros quiser
e que as fotos de seus porta-retratos
mudarão quantas vezes as pessoas
que nele habitam não mais servirem
para encher seus olhos
e abrir-lhe o sorriso de sua boca.

domingo, 11 de novembro de 2018

Os loucos de minha infância

Toda cidade no interior do Brasil tem seus loucos. Antigamente, andavam livres pelas ruas, correndo atrás de crianças, quebrando vidraças ou simplesmente cumprimentando as pessoas e tomando uma xícara de leite quente nas casas das vizinhas que tinham um coração melhor do que a maioria das pessoas. O fato é que crescíamos acostumados com essa presença. Aqueles adultos que não haviam crescido, que se vestiam de modo esquisito e não tinham vergonha de nada.

Na minha infância houve três loucos. Um deles era mais famoso na cidade, o segundo na vizinhança e a terceira, pois era uma louca, minha tia, habitava o ambiente doméstico quando comecei a perceber o mundo à minha volta. Lembro-me que as pessoas diziam que os loucos morriam cedo, tinham, de repente, um mau súbito e faleciam. Acredito que muitas famílias rezavam por isso todos os dias. Porém, muitos deles enterraram os pais, os irmãos e até os sobrinhos.

Minha tia é um desses casos de loucos longevos. Enterrou os pais, depois uma irmã e anos depois um irmão. Também já esteve no velório de pelo menos um sobrinho e alguns cunhados. Hoje mora com minha mãe e é uma respeitável louca de 63 anos. Que vigiem as línguas, pois ela é capaz de ver mais gente ir para cova antes dela, uma vez que outros dois tios meus estão com um pé mais para o lado de São Pedro do que para ver o jogo entre Corinthians e São Paulo. 

Embora em ordem invertida, já que o presente texto não pretende ser um primor acadêmico, tem o Tiba, um menino que nunca cresceu. Morríamos de medo dele com seu estilingue e mira perfeita. De boné para trás e a língua posta no canto da boca, Tiba acertava pedras nas canelas dos meninos que ousavam zombar dele.

Uma vez ele passou por nós e nos chamou para perto de uma árvore em frente à casa de Dona Brígida. Ali, esticou o estilingue e acertou a cachopa de marimbondos. Foi uma correria só de pernas, que na época ainda se davam o luxo de acertar os calcanhares nos traseiros e todos, loucos e não loucos, agachados atrás de um carro, rimos às gargalhadas. Depois levamos uma bronca igual.

Não sei o que aconteceu com Tiba de verdade. Disseram-me uma vez que ele havia morrido perto de seus cinquenta anos. Manteve dignamente seu papel de menino e visitador das vizinhas, que foram desaparecendo aos poucos. Algumas se foram antes dele, mas como ele pouco compreendia, simplesmente deixaram de fazer parte de suas visitas. 

Ser louco em uma cidade pequena é ser um patrimônio local. Todos respeitam os loucos, com exceção das crianças, que só o farão quando adultos. Tirando este leve desvio de caráter que todos nós tivemos um dia, a vida de um louco é pacífica nas pequenas cidades. Andam livres e protegidos por anjos das mais diversas origens, até pelos de mau caráter e valentões que impunham medo aos homens de sã consciência. 

O terceiro louco da cidade era o Jair. Jair louco, como era conhecido, era um louco livre. De pés descalços e falando sozinho, pitando bitucas de cigarros, Jair andava solto pelas ruas da cidadezinha. Sempre levava consigo um violão sem cordas, com o qual parava nas portas de botecos e cantava uma canção só sua; como paga, recebia um copo de cerveja ou cachaça.

Ao final do dia, a família de Jair louco o buscava pelas ruas e bares até encontrá-lo. Aí, dizem as línguas boas e más, a luta era insana para metê-lo debaixo de um chuveiro e lhe tirar a sujeira do dia. Acredito que com o tempo, a família se cansou e Jair andava quase os trinta dias do mês com a mesma calça esfarrapada, camiseta suja e vermelho como a terra. Ao final do mês, era apanhado novamente e logo todos o viam limpo, barbeado e fumando sua bituca de cigarro.

Meus pais e tios contavam que Jair tinha, na mocidade, um belo aspecto e que chegara a ser cobiçado pelas moças. Mas, ao ver sua amada casando-se com outro na Igreja Matriz da cidade, perdeu a cabeça e nunca mais foi o mesmo. Além disso, era rico. A família, no entanto, teve a sabedoria de deixá-lo livre a andar pela cidade e não o submeteu ao desumano tratamento dos hospícios da época.

Jair gozava de prestígio entre todos. Até entre os garotos, que no máximo pediam a ele, em tom de gozação, que tocasse seu violão. Executada a cantoria, Jair louco seguia seu rumo, andava quilômetros todos os dias, num solilóquio sem fim. Nunca o vi comer qualquer alimento que fosse;  seu paradeiro para mim hoje é desconhecido. 

Esses são os loucos de minha infância. Pessoas simples, honestas, de riso fácil e de ira fácil também. Mas, eram boas pessoas, incapazes de fazer mal a qualquer ser humano. Talvez uma pedrada, um xingamento ou um beliscão. Nada que ferisse a integridade física ou moral dos habitantes da cidade. Eles, os loucos, ainda existem, o problema é que muitos andam pintados por aí de gente honesta e até com poderes demais para mandar e desmandar.



sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Conversa Inevitável


Senti que minha mente entrava em um turbilhão de labirintos, enquanto os ouvidos zumbiam e o estômago parecia ter levado um soco. Havia uma bola nele que insistia em vir até a garganta e voltar. Os dedos tremiam, os pés buscavam um chão que aos poucos ia se tornando cada vez mais líquido. Eu olhava para quem estava à minha frente e disfarçava com um leve sorriso, quase automático de quem estava lendo uma piada ou vendo algum vídeo enviado pelos amigos.

No fundo eu me retorcia, era o inevitável, a conversa adiada por dias, que eu esperava, embora tivesse a esperança de que ela nunca ocorresse. Mas, sim, ela ocorreu e agora estava parado diante de um salão lotado por pessoas a me espiar como se todos pudessem ter lido o conteúdo que eu recebera.

Tanta dor não poderia durar mais tempo, nem esperar mais dias. Até o luto tem um fim. A dor era, no entanto, algo a que se segurar; uma âncora para o barco vazio e naufragado há dias, que um capitão solitário agarrava-se ao último pavilhão seco onde pudesse sentir os pés.

Havia outras conversas, outras tentativas, outros afastamentos. O retorno aliviava por algumas horas a dor e as certezas voltavam a crescer. O mundo tinha cores novamente. Podia-se abrir as janelas e ver o sol irritadiço a queimar-me a pele, a lembrar-me a cor um pouco desbotada pelo tempo fechado entre quatro paredes. Tomar o café da manhã não era mais um sacrifício e os olhares trocados entre dedos que roçavam os outros dedos a sustentar a xícara davam à manhã uma sensação de riso fácil e um perfume de primavera. 

A distância e o tempo corroem os corpos. Viver e reviver as lembranças começam a revirar no estômago e na boca fica um travo de amargor. Os corpos se pedem, desejam-se, buscam pelo calor que um dia os aqueceu. O amor preserva a alma, mas o corpo exige o corpo, a presença, o toque, a saliva, o visgo que torna a junção entre dois seres tão diferentes algo natural. Um corpo nunca está completo sem outro corpo, alguém retirou maldosamente uma parte que só o outro pode completar, ele tem a chave, a parte do quebra-cabeças que faltava e julgávamos perdido.

O corpo certo é como a poesia. Não o texto escrito e banal dos versos e a concretização miúda que resta nas palavras daquele enorme sentimento. Um corpo tem voz, cheiro, calor, texturas únicas, insubstituíveis. E sobre o corpo uivamos livres, indiferentes aos padrões aborrecedores da sociedade. Mas, um corpo é um corpo e ele precisa mais do que palavras para sobreviver.

Por isso, eu sabia que aquela conversa ocorreria. Era inevitável. Até o luto tem um fim. A dor da ausência pode amenizar com o silêncio. Há, porém, dentro de mim um lobo que ainda uiva, estranhamente lamenta algo, exige algo que as mãos desastradamente deixaram quebrar. Ouço os corvos baterem contra a janela e quando olho tenho a impressão que dentro de mim as asas fazem um alvoroço enorme.

Aceito a conversa, a fatalidade dela. Aceito o tempo. Embora eu não o veja, sei que ele tem de ser respeitado. Abrimos as portas quando nos cedem as chaves e momentaneamente estou sem elas. Claro, sei que deixei-as dependuradas por mais tempo do que deveria. E as chaves devem ser usadas para abrir as portas. Agora estou sem as chaves. Pelo menos elas ficaram guardadas e espero recebê-las novamente, habitar os espaços, mobiliar a casa, regar o jardim, ver as flores.

Olho para a xícara de café e para o salão. Não choro, não posso chorar. O corpo está desmoronando por dentro. Também evito levantar, as pernas podem falhar e as pessoas pensarem que envelheci antes do tempo. O sorriso se desfez em algum momento que não posso precisar direito, ao menos para mim posso evitar a mentira. Sei que se abrir o livro será um gesto puramente mecânico, mas para a pessoas basta ver ali um solitário leitor.

O gesto é interrompido. A moça avisa que precisa fechar o café, que todos já se foram. Ela trabalhou o dia todo e precisa descansar. Preciso sentir de volta minhas pernas e decididamente a garçonete nem precisa saber quem sou. Pago a conta, peço desculpas e caminho, caminho até os pés doerem e lembrar-me que é preciso regressar para o apartamento antes que me faltem condições para fazer o inevitável caminho da volta.

Chego calado. Dispo-me lentamente; encaminho-me para o banho, deixo a água escorrer sobre o corpo e mesmo com as mãos molhadas, verifico inúmeras vezes se a conversa realmente existiu. A data e a hora desmentem o sonho e vou para cama sem sono e talvez sem sonhos para os próximos meses. 


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Dois árabes e uma lembrança de Camus



Tu parles anglais? Tu parles français? Tu parle espagnol? Ouvi de repente o grito às minhas costas.

Ainda zonzo pelo zumbido em meus ouvidos, quase em forma de vociferações proferidas pelo mec, que agora me olhava duramente nos olhos, tentei organizar a situação. 

Outro jovem o acompanhava e eu vendo-os com uma sacola de compras do Carrefour, assim como quase todos os franceses, perguntava-me o que eu poderia haver feito. Repassei rapidamente as cenas anteriores e me dei conta de que olhávamos para a mesma torta de maçã na prateleira. Julgando-os, provavelmente franceses, na minha condição de estrangeiro havia cedido a vez a eles, então, reorganizava o cenário novamente à procura de alguma gafe.

Prontamente, o mec mais violento queria saber por que eu o havia olhado. Foi quando ele pareceu-me ser árabe, mas isso podia não ser uma constatação lógica, pois, eu mesmo fora confundido com árabe várias vezes naquela semana. 

O jovem era alto. Para piorar a situação, estava acompanhado por um rapaz que de dentro do seu mutismo, vigiava-me como um animal pronto para abater a caça. Olhei à minha volta e vi que as pessoas procuravam ignorar a cena e esquivavam-se pelos corredores como cobras entre as relvas.

Se não fosse pelo queimado da pele, muito parecida com a minha, poderia lembrar o jovem de mandíbulas de aço e cabelo loiro sujo que me cercara quando eu tinha meus doze anos. Eu estava orgulhoso de mim. Havia ido ao mato, encontrado a árvore ideal, cortado a madeira em forma de forquilha, limpado o tronco fino e deixado-o curar ao sol por alguns dias. Ao cabo deles, com tiras de câmara de ar de bicicletas, pedidas ao meu amigo que trabalhava na bicicletaria e com a tripa de mico em mãos, comprada com as economias das gorjetas de entrega do jornal, havia feito eu mesmo meu estilingue. Confeccionara com uma perna de calça jeans meu embornal e saí à caça. Maldito dia, à beira do rio, o jovem loiro e seu amigo, tomaram-me o estilingue sem qualquer resistência de minha parte. Era como se eu não acreditasse na cena. Simplesmente pegaram e saíram como se cobrassem uma dívida. Voltei para casa e jamais contei aos meus pais o ocorrido.

Vinte e quatro anos depois, em Lyon, na França, a cena quase se repetiria. Agora dentro de um Carrefou City, num final de sábado, era eu abordado de novo por dois jovens. Com a diferença que agora o mais velho era eu. Apalpei rapidamente o bolso de trás da calça, nada, verifiquei os bolsos do casaco e nada. Eles me olhavam intimidadoramente, como se ignorassem minhas intenções, talvez, de uma remota vingança jamais posta em prática. 

O peso do ar se tornava irrespirável, o trio que se formara na arena imaginária se provocava mudamente, como se fossem explodir os vidros a qualquer momento. Ninguém parecia ter a decisão de recuar um centímetro que fosse. Outros olhos miravam pelas frestas das prateleiras e voyeurs da batalha rezavam pelo jovem estrangeiro que a qualquer momento poderia jazer estatelado contra o chão.

Infelizmente, havia deixado meu passaporte no apartamento, afinal, duzentos metros me separavam do mercado, ao qual eu fora buscar uma garrafa de vinho para o fim da noite. Se me metesse em briga, teria dificuldades na delegacia e o fantasma de uma deportação prematura me assombrava. 

Resolvi encarar os dois friamente. Talvez, calmamente seja o melhor a dizer. Mas, estaquei à frente do dois e não, não fazia sol, nem havia uma lâmina de navalha nas mãos deles a brilhar contra o sol. Mesmo assim, lembrei-me de Camus e a longínqua leitura que eu havia feito de o Estrangeiro. Na época não passava dos vinte e poucos anos e li a história entre as idas a vindas do coletivo que me levava à universidade. Havia emprestado o livro da biblioteca e ele, por alguns dias, virou meu companheiro de viagem.

Quis matá-los. Não naquele momento, em que apenas queria livrar-me de um olho roxo ou uma represália da polícia, caso a oferta da outra face não fosse o suficiente e eu tivesse de me por em roupas de coragem e rolar inutilmente pelo solo do mercado; agora, em minha mente, convertido em arena de uma luta injusta. Vociferei no caminho, xinguei mentalmente, dei murros no ar  como um boxeador e ao entrar no apartamento bebi sem violência os primeiros goles de vinho rosé.

Voltei à cena e ao presente. Ainda era encarado pelos dois que não compreendiam o que eu sem vontade alguma murmurava em um francês ainda mais travado que dos primeiros dias da minha chegada a Lyon. Não podiam ver minhas mãos suadas e frias, afinal não estávamos de namorados ali. Acho que minha posição de estátua quase muda os irritava ainda mais.

O maior e mais irritado vociferava para ele mesmo. Entrou num jogo mental que eu também não compreendia, grunhia, passava as mãos pela cabeça a arrancar pequenas mechas de cabelo, enquanto seu amigo continuava impassível, quase estático ao lado dele. 

Do nada, o rapaz virou-me as costas. Se me xingou é impossível saber, porém, atirou todo o conteúdo da sacola contra o chão do mercado e como um ifrit, que surgira em uma nuvem de tempestade de areia, desapareceu do mercado, deixando à moça que trabalhava no local a tarefa de recolocar latas e  outros produtos de volta às prateleiras. 

Todos me olhavam como se eu houvesse feito algo. Julgavam-me, uma nuvem de olhos me recriminava e o público que não pagara mais que suas compras, deixava o local decepcionado. Talvez, pela luta que sanguinariamente desejavam assistir, talvez por me julgarem covarde. Jamais saberei.

Fiquei ainda algum tempo no mercado. Não mais estático. Havia controlado minhas pernas e num gingado entre o samba e a capoeira, zanzava pelo mercado em busca do vinho mais barato que me fosse digno. Ignorei a prateleira onde estava o vinho diversas vezes, no fundo queria ter a certeza de que eles não me esperavam do lado de fora do mercado.

Enfim, saí a passos acelerados e com olhar vigilante rumei para o apartamento que ficava na Rue Garibaldi. Por favor, não sorriam, guardem o julgamento para o silêncio de vossas maldosas línguas. No meio do caminho, para infelicidade maior, cruzei a Place des Martyrs de la Résistance, o que me pareceu uma ironia demasiado grotesca do destino. 


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Do amor e seus detratores

Quando bebi tuas lágrimas
não sabia que tragava com elas
tua alma, teu corpo, teus olhos,
que choravam aquela partida inevitável
contra todos os prognósticos da razão.
Ainda não compreendo bem
aquela noite, mas em teus braços
soube o amor e a vida necessários
para planos e sonhos de um futuro.
Não era possível, não podia ser possível
encontrar assim um amor
no meio do caminho e ter de deixá-lo.
Aferrei-me aos teus braços
como o náufrago que sabe ser o mar
grande demais para se sobreviver à deriva.
Ainda lembro, é inevitável a lembrança
de um tempo que nunca desejei se acabasse.
Quis romper os ponteiros, quebrar os segundos,
despedaçar os mostradores que anunciavam
o fim daquele abraço.
Abria um abismo em mim
e as horas me massacravam
torturavam meus ossos, aumentando dias
e meses de uma ausência que ainda julgo
uma trapaça do destino.
Pagaria meus pecados, faria novenas,
rezaria missas, iria ao candomblé
e falaria com os espíritos se soubesse
da dolorosa partida.
Tudo eu faria
[se cego o amor não me deixasse]
para não ter perdido um momento
da luz azul de teus olhos.
Neles vi o céu, enquanto as pontas
dos dedos escorregavam despercebidas
obrigando-me a partir sem rumo,
sem planos, somente viagem e bagagem.
Riam os críticos amargos em sua solidão,
chorem escondidos os que amam,
mas infelizes
são aqueles a quem nunca do amor
puderam ao menos experimentar
a dor da partida.
Reclamem das rimas,
da falta de sonoridade
da ausência de metáforas,
do tema inadequado;
essas são preocupações de quem não ama,
porque quem ama de nada servem
os bibelôs das aliterações vazias.
Esse é um grito de amor de dor e solidão
é um grito de desespero, um apelo
aos que viram e aos que não viram
aos que amaram e aos que não amaram,
porque quem ama
apela para tudo quanto é santo
faz simpatias, despachos, promessas,
quando a razão desaparece e resta
do amor só a dor de quem espera
por ele mesmo, o Amor,
essa tábua de salvação
para aqueles que acham ser a vida
sem graça demais longe da mão
de quem tem o poder
de nos suspender no caminho da vida,
dando a ilusão de que jamais
estaremos sós novamente
e que para a curva no caminho
nunca mais precisaremos lançar
o olhar em triste despedida.




  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...