terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A Festa de Natal

Ali estava ela a olhar pela janela e a fazer ruídos pela boca para me assustar como se eu fosse uma criança. Olho para ela, sorrio e gesticulo devolvendo a brincadeira. Essa é minha tia, tem 58 anos, mas desde criança permaneceu em estado de congelamento, jamais soube o que é ser uma mulher adulta.

No exato momento em que ela brinca de me assustar, leio Relato de um certo oriente, de Hatoum. E Emilie está a esconder o livro sagrado que pertence ao seu marido, devolvendo-lhe a brincadeira de esconder seus santos. É dessa maneira que abro a janela do passado, e também vejo fatos, cacos de imagens, velhos falares a balançar na rede comigo.

Deixamos de ser criança; todos nós: irmãos e primos, mas minha tia ficou ali como paralisada pelo tempo, como se este não pudesse afetá-la, pelo menos mentalmente. Os cabelos estão brancos, o andar está mais lento, os braços estão finos, mas seus gestos infantis ainda são os mesmos.

Ela ainda toma banho de porta aberta como se tivesse 5 anos. Não se importa com o tempo e nós temos de pedir que ela que feche o chuveiro, pegue a toalha e se seque, caso contrário a água escorre por seu corpo numa viagem estranha que nenhum de nós ainda deu conta de decifrar.

Essa é uma vida estranha, jamais a compreenderei, sei que ela está ali e que precisa de outras pessoas que estejam ali. É uma forma de dependência eterna, porém para nós o tempo passa e olhar o futuro pode ser assustador. Talvez o melhor seja congelar o tempo como ela, viver o presente, afinal o passado não pode ser mexido e o futuro ainda não o conhecemos, não podemos lhe dar as mãos e dizer muito prazer.

Assim vai ser a festa de Natal, em meio a essa estranheza que como um esfinge nos desafia a compreender os silêncios, os sussurros de uma mente que para ser memória precisa de nossa memória ativa e sempre bem disposta a apontar para um futuro mais nosso que dela, mas preso ao dela inevitavelmente. 

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