Ali estava ela a olhar pela janela e
a fazer ruídos pela boca para me assustar como se eu fosse uma criança. Olho
para ela, sorrio e gesticulo devolvendo a brincadeira. Essa é minha tia, tem
58 anos, mas desde criança permaneceu em estado de congelamento, jamais soube o
que é ser uma mulher adulta.
No exato momento em que ela brinca de
me assustar, leio Relato de um certo
oriente, de Hatoum. E Emilie está a esconder o livro sagrado que pertence ao seu marido,
devolvendo-lhe a brincadeira de esconder seus santos. É dessa maneira que abro
a janela do passado, e também vejo fatos, cacos de imagens, velhos falares a
balançar na rede comigo.
Deixamos de ser criança; todos nós: irmãos
e primos, mas minha tia ficou ali como paralisada pelo tempo, como se este não
pudesse afetá-la, pelo menos mentalmente. Os cabelos estão brancos, o andar
está mais lento, os braços estão finos, mas seus gestos infantis ainda são os mesmos.
Ela ainda toma banho de porta aberta
como se tivesse 5 anos. Não se importa com o tempo e nós temos de pedir que ela
que feche o chuveiro, pegue a toalha e se seque, caso contrário a água escorre
por seu corpo numa viagem estranha que nenhum de nós ainda deu conta de
decifrar.
Essa é uma vida estranha, jamais a
compreenderei, sei que ela está ali e que precisa de outras pessoas que estejam
ali. É uma forma de dependência eterna, porém para nós o tempo passa e olhar o
futuro pode ser assustador. Talvez o melhor seja congelar o tempo como ela,
viver o presente, afinal o passado não pode ser mexido e o futuro ainda não o
conhecemos, não podemos lhe dar as mãos e dizer muito prazer.
Assim vai ser a festa de Natal, em
meio a essa estranheza que como um esfinge nos desafia a compreender os
silêncios, os sussurros de uma mente que para ser memória precisa de nossa
memória ativa e sempre bem disposta a apontar para um futuro mais nosso que
dela, mas preso ao dela inevitavelmente.
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