sábado, 28 de dezembro de 2013

Orfa e Rute

Compraram um pedacinho de chão. Os filhos estavam felizes, poderiam cultivar a terra, criar porcos e galinhas e dali tirar seu sustento. Ambos abraçavam suas esposas e olhavam com carinho para o pai e a mãe que os acompanhava. O pai sonhava com netos, os filhos com seus filhos. Tudo era perfeição e alegria.
Porém um dia, o pai tocaiado morre de um tiro de carabina. Certeiro, tiro único na fronte. Mal os filhos choraram a partida do patriarca e antes que engendrassem filhos nas suas esposas, duas novas tocaias, pertinho do santuário de pedra, ceifaram Malom e Quiliom.
Numa mesma casa três mulheres, três viúvas, três sangues quentes, três ventres pedindo homem. Três lamentações: a de Noemi de ser velha demais e pouco apetitosa aos olhos; a de Orfa o amor dedicado à sogra a despeito desta não ter outro filho para que pudesse se casar; Rute odiava a Orfa e precisava se desvencilhar dela para, quem sabe, casar-se com Boaz, um parente distante de Noemi.
Três mulheres, impossível a conciliação entre elas. Uma delas sobrava na relação e precisava ser eliminada. Durante o caminho matinal de buscar água, Rute sussurra a Orfa que a sogra pretende entregá-la a um peão de estância e para isso diz que voltará a Sarandi.  Orfa, assustada, resolve seguir todos os conselhos de Rute.
Na hora da partida, Orfa seguindo à risca os mandamentos de Rute, beija a sogra e resolve voltar a Nova Andradina em busca de um novo marido, quem sabe um fazendeiro, porém chora amargamente ter de deixar aquela que lhe foi como mãe e que agora queria traí-la vilmente.
Rute atira secamente um olhar para a sogra e diz: “Eras esta a tua preferida? Mas veja, quem te sobrou fui eu! Ser-te-ei como uma filha, embora não tenhas mais filhos com quem possa me casar.”.
Noemi, emocionada, recolhe uma última lágrima que desce pelos sulcos de seu rosto;  guarda no íntimo de seu coração apresentar-lhe a Boaz seu primo distante, fazendeiro divorciado três vezes e que ainda precisava de herdeiros. Sorri a Rute e diz: “Vamos minha filha, pegues as trouxas, no primeiro ônibus para Sarandi embarcamos, com a economia temos o que comer até chegar lá.”.

Seguem ambas as mulheres rumo ao Paraná, porém Rute ainda guarda aquele punhal que não precisou usar com a ingênua Orfa. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Fragmentos de uma tarde

O azul do céu se mistura ao avermelhado da tarde. São exatamente 20h23min e, incrivelmente, ainda está claro o dia. Se bem que prefiro este anoitecer demorado, como se a noite trouxesse um sentimento de estranhamento que sempre me incomoda, por isso nunca reclamo do horário de verão.
Na verdade poderia ler, mas acabei um romance agora mesmo e quero manter a sensação de beleza que o final da narrativa despertou em mim. Quero adiar a próxima fantasia, pois nesse momento a leitura passada ainda está muito presente e faz um reboliço em meus sentimentos.
Para não ler resolvi escrever um pouco e postar o texto no blog, numa clara certeza de que ninguém se interessará por um texto meio intimista que escrevo para adiar o próximo romance, como se a narradora de Relato de um certo oriente ainda estivesse a mexer no meu quarto de uma clínica psiquiátrica e tenha me enclausurado alguns dias com ela na sua busca por algo ou alguém do passado.
Sei que é fim de ano e muita gente não está lendo. A leitura para muitos não é um prazer, é uma obrigação, é como fazer sexo estando casado. Aí perde a graça mesmo; como a leitura para mim é tão boa quanto o sexo, ler no fim do ano, após o Natal, é uma ótima forma de relaxar.
Estou no mais fundo do interior do país. Palmital, uma cidadezinha de 35 mil habitantes, com gente desinteressante por toda parte, boyzinhos se achando dono da cidade e gente compartilhando seu som brega com todos que não fizeram a escola de Reginaldo Rossi. Sinto que fiz uma imersão no passado, como se a cidade jamais tivesse passando dos anos 1990. Assim, a leitura é uma forma de fuga da realidade. Quando não estou a conversar com as pessoas da minha família, meu único e exclusivo interesse na terra do palmito, estou a ler.
Ao menos a Manaus da família de libaneses é mais interessante e movimentada que a Palmital do Estado de São Paulo, com ruas pequenas, duas rotatórias de Playmobil e nada para se fazer. Talvez o tempo aqui estacione como em alguns momentos na narrativa de Milton Hatoum, como se o passado estivesse estático, preso aos papéis, cartas antigas, retratos, recortes de jornais e pequenas relíquias.

Assim está sendo meu fim de ano, entre as páginas de o Relato de um certo oriente e a pasmaceira da cidade de Palmital, onde as pessoas falam a gritos, ouvem música sertaneja, tomam cerveja num posto de gasolina e se acham o máximo. Aí muita gente não entende porque quando venho a Palmital fico apenas na casa de minha mãe. O mau costume quando generalizado se torna hábito e ninguém estranha. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A Festa de Natal

Ali estava ela a olhar pela janela e a fazer ruídos pela boca para me assustar como se eu fosse uma criança. Olho para ela, sorrio e gesticulo devolvendo a brincadeira. Essa é minha tia, tem 58 anos, mas desde criança permaneceu em estado de congelamento, jamais soube o que é ser uma mulher adulta.

No exato momento em que ela brinca de me assustar, leio Relato de um certo oriente, de Hatoum. E Emilie está a esconder o livro sagrado que pertence ao seu marido, devolvendo-lhe a brincadeira de esconder seus santos. É dessa maneira que abro a janela do passado, e também vejo fatos, cacos de imagens, velhos falares a balançar na rede comigo.

Deixamos de ser criança; todos nós: irmãos e primos, mas minha tia ficou ali como paralisada pelo tempo, como se este não pudesse afetá-la, pelo menos mentalmente. Os cabelos estão brancos, o andar está mais lento, os braços estão finos, mas seus gestos infantis ainda são os mesmos.

Ela ainda toma banho de porta aberta como se tivesse 5 anos. Não se importa com o tempo e nós temos de pedir que ela que feche o chuveiro, pegue a toalha e se seque, caso contrário a água escorre por seu corpo numa viagem estranha que nenhum de nós ainda deu conta de decifrar.

Essa é uma vida estranha, jamais a compreenderei, sei que ela está ali e que precisa de outras pessoas que estejam ali. É uma forma de dependência eterna, porém para nós o tempo passa e olhar o futuro pode ser assustador. Talvez o melhor seja congelar o tempo como ela, viver o presente, afinal o passado não pode ser mexido e o futuro ainda não o conhecemos, não podemos lhe dar as mãos e dizer muito prazer.

Assim vai ser a festa de Natal, em meio a essa estranheza que como um esfinge nos desafia a compreender os silêncios, os sussurros de uma mente que para ser memória precisa de nossa memória ativa e sempre bem disposta a apontar para um futuro mais nosso que dela, mas preso ao dela inevitavelmente. 

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Abel e Caim

O calor estava insuportável. A terra gemia contra aquela sede antiga de alguma vingança ainda não esquecida. 

Semblante descaído, o lavrador fustigava o solo seco, golpeando com a enxada a terra roxa rocha de cada dia. Se preciso fosse a feriria com as próprias unhas. 

Levanta a cabeça, a mão espalmada sobre os olhos a modo de viseira, permite ao lavrador ver o vulto de um homem que pouco a pouco se agiganta diante dele.

Pronto estaca na frente de Palomino Hernández. Estende-lhe a mão cheia de anéis, as unhas esmaltadas, um relógio de ouro no pulso, do peito pende uma medalhinha do coração de Nosso Senhor; panamá branco na cabeça e terno de linho completam a indumentária deste grande criador de gado. 


É o irmão que vem novamente sacrificar....



Abre um sorriso largo no rosto, o dente de ouro brilha na boca, convida o irmão a tomar uma aguardente na venda. 



Caminham ambos lentamente para o balcão. Bebem o cálice do aguardente da condenação. Prontamente, Palomino golpeia contra a madeira dois tostões; faz questão desta vez de pagar a bebida. 



Afastam-se para o meio da planície. É hora do sacrifício. Palomino temendo novamente o olhar de reprovação do Senhor, deixa bruscamente as poucas espigas de milho sobre o altar de pedra e num átimo se levanta, sem saber se sua mão ou ele se alçou primeiro. 



O sol e o panamá de Antonio se tingem de vermelho;  do céu espigas em chamas bradam contra um Palomino fugitivo, de corpo fechado para as tocais, condenado a trabalhar pelo resto da vida nas terras do coronéis, em troca de uma botija de azeite e um punhado de farinha.

Insônia

Esta noite vi o céu. Estava lindo, mesmo sem estrelas. Havia um rosado em anéis que circundavam o espaço dele, misturando-se às espirais azuladas que passavam por suas vagas. Às vezes olhamos tanto para baixo que esquecemos de olhar para o teto natural que cobre nossas cabeças todos os dias. 

Tomo um chá e recebo a brisa que corre o fim da noite em meus cabelos. Descobri que há mais gente acordada na madrugada do que eu esperava. Na rua passava um rapaz de bicicleta, destas cargueiras, porém ainda vazia. No prédio ao lado alguém perdera o sono como eu. Será que também olha o céu. 

Foi preciso uma noite de insônia para que eu parasse e visse o céu. Deus ainda foi bom comigo, afagou minha pele e meus cabelos com sua brisa suave. Deixei os cabelos soltos para melhor aproveitar o vento. Eles também estavam espiralados como as nuvens do céu.

A folha insiste em virar com o vento, mas não quis usar o computador, quis escrever à mão e olhar um pouco mais o céu. E nesse silêncio do céu senti um pouco de paz, em meio ao furacão que eu mesmo causara durante a semana. Gostaria de ser pacato como um céu em seu vestido de noite. 

Lembro-me de algumas ocasiões em que vi nascer o sol nascer. Uma delas foi quando fiquei na fila do posto de saúde para pegar um consulta médica, e ali com aquela gente simples experimentei a comunhão dos justos em meio à injustiça. Corpos enrolados em cobertores, uma mão caridosa a passar o chá e as desgraças sendo partilhadas com risos como se fora um doce filme de Hitchcock.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Esaú e Jacó

Ao entrar na cidade ouvi vozes antigas, de outras épocas inomináveis a sussurrar atrás das árvores.

Brotavam olhares estranhos a me espiar, a reprovar a volta do filho pródigo, que caminhava para o sacrifício.

Entrei em casa e anunciei minha chegada. Um brilho voraz partiu da escuridão e rachou meu crânio em dois.
Estava lavada ali a honra de um homem morto desde o princípio. Podia, agora, sentar-se à mesa adornada com a toalha branca e degustar seu prato favorito: uma quente sopa de lentilhas.


O velório durara anos. Mas hoje é tempo de festa e dia de atirar ao longe a roupa fúnebre de quando vira partir o irmão com sua primogenitura, colocar uma sandália nos pés um anel na mão. 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Fragmentos de uma partida.

Deixei meu cheiro espalhado pela casa. Ausência de passos que percorreram caminhos inomináveis. Cômodos visitados sem permissão e outros permitidos e até acompanhados. Um baralhar de lembranças que formavam um emaranhado em minha mente, instantes antes de ter de pegar a estrada para mais uma viagem.

Ficaram os beijos dados, os beijos por dar e aqueles proibidos jamais pensados pelas mentes presas pelas amarras de uma eterna inquisição a lhes acusar. Vi a xícara ainda suja de café, as marcas dos lábios que ficavam como presente da última despedida.

Alguns abraços foram dados, outros recebidos, palavras deixadas no meio da garganta, vozes por sair, palavras por dizer, uma convulsão de sentimentos barrados pelo espelho cristalino dos olhos a brilhar.

Talvez alguém deite na cama que fiquei, e ali respire o aroma de perfume ainda incrustado naquele que serviu de tálamo aos nubentes proibidos. Raras memórias deixam de vir acompanhadas por uma insônia dos diabos. É como se ela nos torturasse com o cheiro do perfume presente que insiste em acusar a ausência deliberada por um corpo imaterializado.

Pior que a despedida, é saber que ela deixa pedaços de alguém ali na porta. Demoro a lavar a louça; os pratos e copos cheios até a borda de digitais daqueles dedos macios que teimavam em me acariciar horas antes, marcas de uma boca que não beijava apenas a borda do copo, mas as bordas de meu ser. Infelizmente, sei que essa boca já não mais bebe o café de meus lábios.


Enfim, preciso levantar. Não só de memórias vive um homem, mas de todo presente que anuncia sua futura ausência, enchendo os alforjes das pesadas pedras da memória que se não vêm na bolsa, insistem em se pendurar em nossos ombros, dando o aspecto de um mendigo a esmolar um momento mais. 

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...