sábado, 30 de dezembro de 2023

Ano novo

Quando tinha 7 anos

o Réveillon era um evento.

Ganhávamos do dono da mercearia

uma garrafa de vinho suave

e um calendário de santo

que mamãe pendurava atrás da porta.

Sentávamos em frente à televisão

e juntos, quase de mãos dadas,

aguardávamos a queima de fogos de Copacabana.

Logo cedo, o frango cheirava no forno,

às vezes um pedaço de pernil também,

o macarrão e a maionese acompanhariam o almoço.

Não, o mundo não era perfeito,

mas tínhamos a vida toda pela frente

e nos permitíamos sonhar.

Hoje, o ano novo, não é tão novo mais,

ganhei a consciência dos calendários,

as relações se complicaram

e o tempo escorre entre meus dedos.

Num súbito ato de rebeldia

ainda posso estender as mãos

nem tudo está no quadro da memória.

Diante de meus olhos meio cansados

uma menina de 7 anos devora cerejas

e sonha uma vida inteira.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Alegria

 Gostaria de dizer como o poeta

"Que meu verso é minha cachaça",

mas tomo vinho e cerveja

e ainda assim o mundo não me turva.

Todo mundo tem sua alegria e sua tristeza,

de rir aos quatro cantos,

de chorar aos prantos.

Embora o verso não me console,

escrevo como se o dia fosse noite

e a noite uma cama de alegrias.

Meu verso é antigo

venho de outras épocas

quando ainda a internet

não vendia tanta gente feliz.

Ser triste ficou fora de moda,

coisa de gente depressiva,

não rende curtidas nem seguidores.

A tal ponto é insana essa onda de alegria

que até eu tenho uma psiquiatra.

Até eu, oh Judas, tomo minha risperidona.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Pôr-do-sol

Atirei-me ao mar

como me jogasse em teus braços.

As ondas cobriram meu corpo

batizando-me nessas águas antigas

que sepultaram tantos homens.

À beira do mar, contemplei o horizonte,

imaginei navios onde havia apenas luz.

Respirei descobertas, tempos remotos

me incendiaram os olhos.

Sonhei um mundo inaugurado pelas águas

e, no entanto, éramos o mar e eu

fechados na imensa solidão da praia.


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Madeleine

Pão francês é a minha tentação. Levantar-me cedo, ir à padaria, apreciar os pães na estufa, é um percurso particular e único. No caminho, as reflexões ganham contornos. Olho os prédios, as árvores, as ruas com seus automóveis, aspiro o ar da manhã e me sinto vivo.

A garrafa de café que ficou sobre a bancada da cozinha, à espera de minha volta, é outro prazer. Preta e com flores brancas, acompanha-me há anos. Gosto desses objetos duráveis, eles tornam a paisagem doméstica em algo familiar. 

Com a sacola de pães, na mão esquerda, enfrento as ruas. O homenzinho verde abre espaço para eu atravessar as faixas brancas que engravatam o asfalto. Cruzo com pessoas que mal se dão conta de minha existência, presas que estão a seus mundos particulares. 

Não mão direita carrego o celular e as mil possibilidades de fotos que ele guarda. Rastreio a realidade em busca da captura ideal. Os ônibus lotados levam as pessoas para o trabalho. Rostos cansados espiam as janelas, homens e mulheres varrem calçadas, sobem portas, limpam balcões e alimentam sonhos.

Lembro-me dos pães na sacola e o prazer que me prometem. O dia não está para poesia. Então, acelero o passo, guardo o celular no bolso da bermuda e sigo para meu apartamento. Uma moça passeia com seu cachorro do outro lado da calçada. Com ela, as possibilidades de uma vida são guiadas pelas patas de seu fiel amigo. 

Entro no apartamento. A sacola de pães ainda em minha mão esquerda protagoniza a espera de um outro prazer. Lembro-me de um velho costume: deixar o saco de pães dentro da sacola para que não estejam duros à tarde. Acomodo o pacote sobre a bancada e em pé tiro o primeiro pão. Mordo-o sobre a cuba da pia, sem manteiga mesmo. Depois, dirijo-me à porta da área de serviços e, encostado ao batente, devoro o restante do pão.

O celular toca e me chama de volta à realidade. A oficina quer saber o que precisa ser feito no carro. Logo eu que não sou mecânico!




Biografia

 Ali vai um homem

preso às humanas vestes

meio mortal, meio imortal.

Ora acredita em vida eterna e em Deus,

ora o diabo é uma invenção para assustar criancinhas.

Não acredita em céu ou inferno.

Com os ossos envolvidos em humana carne

tem a figura apreciada entre alguns iguais.

Carrega histórias,

algumas dignas de nota

outras nem tanto.

É um homem que, com os anos,

passou a andar devagar,

despindo-se lentamente de suas carnes,

deixando os ossos à posteridade

e alma à eternidade.

Que façam bom proveito dela. 


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Sobre o tempo

Afinal, o que é o tempo,

senão essa grosseria da eternidade

as nos corroer as carnes?

Cada minuto abreviando os instantes,

transformando pessoas e momentos em memórias.

Contra nossa efemeridade

o tempo eterno insensível escoando

como um rio em tempos de tempestades.

O tempo é traiçoeiro,

ontem menino passando de colo em colo,

hoje homem a contar as migalhas dos dias e das horas.

"Ah, o tempo é bom" dizem os sábios

treinados pelo último coach de motivação.

O tempo é o tempo, nada mais.

Indiferente e monótono

não altera sua marcha,

nem na alegria e nem na dor.

Devora com igual vontade o nascimento e a morte.

O tempo é essa coisa, essa monstruosidade,

que encarceramos nos relógios e nos calendários.

Ninguém escapa ao tempo,

no nosso peito foi colocada uma bomba

que bate incessantemente

e que há de estourar

poucos segundos antes de expirarmos. 


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Père Lachaise

Ouvi em algum lugar que a cova ou a sepultura, se quiserem ser mais educados, é o fim de todos nós. A morte nos iguala, ricos ou pobres se veem diante do fato que se tornarão pó logo após os vermes terem roído suas carnes. Não à toa, Machado de Assis dedicou seu Memórias Póstumas ao primeiro verme que roeria suas carnes. 

Assunto mórbido assim duas semanas após o dia dos mortos parece algo pesado demais para ser ler. O problema é que sofro de tardâncias, demoro a processar as datas, as viagens, os eventos, vivo de memória e isso demanda tempo. 

O fato é que a morte é um tema universal. O homem se bate em torno da vida com um olho na morte ou na vida eterna. Sofremos de pressas, queremos viver tudo ao máximo no menor tempo possível. Logo esquecemos a indesejada das gentes e pedimos vida ao vento, ao sol, às fotografias, ao encarte que anuncia o próximo cruzeiro de verão.

Assim, buscando mais vida, em março fui para a França. Demorei-me na cidade de Lyon por um mês. Durante aquelas semanas, como todo bom viajante à terra da baguete e do vinho, fui a Paris. E lá se respira vida. Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Champs Élysées, Galeries Lafayette, Montmartre, Louvre, Orsay e, por que não, Père Lachaise.

Sim, deixei toda a luz das lojas, dos cafés, das galerias e fui dar uma espiada aos mortos de Paris. O cemitério fica no alto de uma colina. Cheguei tarde ao local. Entrei e fiquei por umas duas horas andando sem rumo pelas sepulturas, só a admirar aquilo que chamam de final da vida.

E posso dizer: a morte não iguala todo mundo. A cada sepultura uma estátua, uma homenagem, uma obra de arte. Uma coisa é ser enterrado numa carneira de cimento com uma cruz de metal e uma inscrição de perpétua, com um mísero retrato do que fomos em vida, outra é estar no Père Lachaise, sendo visto por inúmeros turistas que ainda dão alguma coisa por nossos ossos carcomidos pelo tempo. A morte tem suas vaidades e o cemitério é uma enorme celebração da vida.

Parece paradoxal, mas não é. Ali se celebra a vida, a importância daquilo que fomos enquanto ainda tínhamos a capacidade de abrir a boca. Até nos túmulos mais simples, uma homenagem, uma estátua da filha que morreu acompanhada de seu cachorro, um homem quase a flutuar no ar, anjos, esculturas, dando um adorno à morte. De Balzac ao mísero suicida. Podemos contemplar o fim da vida e o início da arte tumular, fúnebre. 

Père Lachaise é um cemitério que convida os vivos a se sentarem com os mortos. E, por isso, sentei-me, respirei o ar fúnebre daquelas sepulturas, observei as pessoas ávidas por acharem um famoso. Eu não, não cheguei a nenhum túmulo famoso, contemplei tão somente a morte em suas últimas instâncias agarrada à vida como o náufrago a um pedaço de madeira no meio do mar. Subi escadas, desci, contornei sepulturas, olhei datas, tentei decifrar o que prendeu tanto tempo alguns à vida, enquanto outros desceram à tumba em tão breve idade.

Logo esqueci o medo que estava em ficar fechado no cemitério e ter de ali dormir entre gente tão desconhecida e me pus como um bom turista a fazer selfies, fotografar túmulos desconhecidos, registrar o lugar para aquilo que a mente apagasse depois. 

Consegui sair pouco antes do fechamento. Tomei um metrô e segui em direção à Place de Italie, no oitavo arrondissement. Estava cansado e feliz. Estive com os mudos da terra, com aqueles que não podem mais se pronunciar. Meses depois, no Brasil, fico sabendo que o cemitério foi inaugurado para dar uma sepultura digna a todos os franceses, inclusive os pobres. Gostei ainda mais do local, ninguém nesta terra deve morrer sem ter direito a uma pedra que cubra seu caixão. 

Foi assim que celebrei na morte a vida e à noite fui para a Torre Eiffel comer um crepe com Nutella e olhar as luzes a anunciar uma Paris viva, indiferente ao seus mortos. Isto é já outra história...

sábado, 4 de novembro de 2023

O "inessencial" da vida

Acredito que a palavra "inessencial" não exista nos dicionários. No entanto, ela define minha vida. Sempre tive uma aptidão para o inessencial. Minha mente se perde em pensamentos difusos e o essencial passa à margem e vou dando giros pela estrada até acertar o alvo. Pelo menos, na direção, não dispenso o Google Maps ou aquela parada no posto para pedir informações. Ao menos tenho isso, nunca tive medo de admitir que não sei e isso é uma grande vantagem. 

Meus pensamentos seguem uma linha torta, assim como meus sentimentos, que são caudalosos e intensos, mais intensos que o da média da população e isso me causa problemas constantemente, haja vista eu ter de conviver com pessoas que estão em uma marcha muito mais lenta do que a minha. 

Acredito que até quando durmo meus pensamentos são difusos. Aí, sonho com mundos distantes, países diferentes, visito toda noite lugares que jamais vi e que nem sei se existem, reencontro pessoas, confesso que nem todas eu gostaria de ver e outras que até me agradam. Sonhar demais é um problemas também, não raras vezes acordo cansado para o dia que me espera.

Ter aptidão para o inessencial é uma luta diária. Não temos paz nem no momento de passar a manteiga no pão. Nossa mente já está viajando a quilômetros de distância. Temos a tendência a valorizar pessoas que não importam, situações mínimas que não mereceriam nosso desgaste e que nos levam a delírios de vingança e ou de desaforos inimagináveis que desferimos contra nosso opressor.

Geralmente, não sigo as "mentes pensantes" de nosso país. Isso me desgastava demais e a consciência do inessencial me trouxe algumas liberdades. Hoje evito responder a comentários de Twitter, Threads ou qualquer rede similar. Na verdade, não sigo ninguém que emita uma opinião, vejo fotos de viagens, pessoas, jogadores de futebol, guerras e suas injustiças e evito a última pessoa que se diz livre, mas que carrega consigo um ódio mascarado nas mensagens de autoafirmação. 

Ter uma mente para o inessencial é escolher se vou ler o Processo, do Kafka ou algum texto teórico sobre minha linha de pesquisa ou se vou ler o novo contemporâneo elogiado pelo influencer do Tik Tok, que todos meus alunos leram a indicação como a última revelação do milênio. Na prática, desisto de todos eles e tento olhar para o que vale a pena na vida. Como moro em um apartamento, anseio por sair à tarde e ver o pôr-do-sol. 

A mente para o inessencial é isto. Há um baita céu azul lá fora, um sol amarelo de infância e estou eu aqui a escrever sobre a minha mente. Já fiz o meu café, tomei a primeira xícara e vim para o computador. Tudo bem que o texto não me toma mais de 10 minutos com seus erros e falta de revisão, mas há um sol lá fora, um céu azul e uma temperatura de outono em pleno fim de primavera. 

Escrever, porém, me tirou um pouco a ansiedade com que acordei esta manhã. O dedão do pé esquerdo estava até apontado para cima devido à tensão. Pois é, ter uma mente para o inessencial nos traz desvantagens. Não dispenso um Ansitec  em alguns momentos e outros medicamentos que meus 44 anos me trouxeram. Alguns tenho planos de me livrar. Só não sei o que faço com minha mente para o inessencial. Em todo caso, o essencial para a vida me chama, o apartamento não vai se limpar sozinho, as leituras não brotarão em minha mente e depois vou baixar algum livro do Mia Couto para ler, quem sabe desperto como a criança que em vez de chorar, deu um pio de pássaro. Somos todos imigrantes neste mundo. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Diálogo amoroso

Fala-me aos meus lábios

com teus lábios.

Dá-me da água morna de tua boca

para irrigar esse jardim de flores incandescentes.

Do meu peito brota um sol amarelo

que aquece nossos corpos.

Crio raízes em você

e animo-me de tua seiva.

Sou flor que cresce

no teu sexo umedecido. 


domingo, 8 de outubro de 2023

Fragmentos

Se com a dor que por ora

te assombras

ainda fazes poesia,

estás vivas

e o ar que respiras

ainda não te pesa tanto

que não possa versejar.


Quando te conheci

te vendias pela lógica e pela razão

mas neste bazar que é a vida

a emoção é um penduricalho

que atamos ao pescoço

antes de pular ao mar.


No mercado das ironias que é a vida

desfilei minha dor,

abraçando ausências.

Culpa do poeta.


O poeta tropeça na rima

e rói as unhas.

Cansado das pedras no meio do caminho

e das páginas que arrancou ao caderno da vida,

pensa: o poema a lápis ainda pode ser apagado.


Sou bissexual

tenho fraco por versos e por mulheres

quando não são eles, são elas.

O inferno ainda são os outros.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

É preciso treinar o olhar

Com a correria do dia-a-dia nos tornamos insensíveis, meras máquinas que reproduzem ações mecânicas. Ao menos estou em Maringá e isso dispensa, na maioria das vezes, a necessidade dos bons dias e boas noites. Cansei de cruzar com pessoas que me ignoram em vários lugares. Esses dias, porém, esse comportamento tem sido bem-vindo. Posso desocupar-me das obrigações da polidez e seguir enfurnado dentro de mim.
Escrever se torna uma tarefa árdua. Não sou como muitos que acham dentro de si o material literário que os alimenta. Gosto do que vejo, do que experimento, daquilo que respiro, dos sons que vêm da rua. Eles me despertam a necessidade de escrever. O duro é que estou insensível estes dias. As atribulações do trabalho têm me causado uma cegueira inspirativa.
Hoje mesmo saí pelas ruas de Maringá e fiquei atento apenas ao trânsito, de onde tiro que dirigir seja outra forma de perder a inspiração. Atento a semáforos, radares, faixas de pedestres e outros carros que nos cortam como se fôssemos invisíveis, não me prendi à cidade. E a cidade é vida. Tiro disto a conclusão de que o cronista deve andar a pé, flanar pela cidade absorvendo em seus poros o espírito que paira sobre as ruas.
Da última vez que saí e parei em um bar também foi para trabalhar. Havia corpos que ficaram invisíveis, bocas que se mexiam sem som. Para piorar uma infecção num dos ouvidos, mesmo já curada, ainda me deixava meio surdo, o que me provocou outro tipo de alheamento do mundo que me circundava e havia material de interesse.
Uma mãe, alta e magra como uma modelo, com seu filho preso a um canguru e dependurado ao seio vendia pipocas. Pipocas doces, gourmets como está na moda, cobertas de chocolate e leite ninho. A mãe alegrava a noite com seu sorriso de vendedora. Comprei-lhe uma pipoca e de soslaio ainda vi sua performance entre as mesas dos casais e amigos que compartilhavam uma cerveja e eu estava trabalhando. 
Ela sim estava vivendo e eu estava trabalhando. Ela reconheceu um cão que passeava pelo bar e o colocou na conta de ser propriedade do local. Estranha essa relação do ser humano com os animais, são donos, proprietários dos bichos, enquanto eles vivem alheios a essa necessidade de posse que nos toma conta. Portanto, segundo ser feliz na noite e no mesmo lugar. Um cão e uma mãe que vendia pipocas. Quem mais terei ignorado em sua felicidade? 
Olhando agora, com a medida do tempo que nos afasta dos momentos vividos, imagino essa mãe com seu filho e o cão como num daqueles finais de Charles Chaplin, quando ele com um menino e um cão seguiam pela estrada empoeirada. A vida deve ser isso: a simplicidade de um cão que nos lambe as mãos e uma mãe com o filho ao seio vendendo pipocas. Só falta o "The end" como nos filmes em preto e branco, que nem de palavras precisavam para expressar a felicidade. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Inquietações

 Alma inquieta

explosão de ideias.

No jardim dos sonhos

toda flor é amarela

e um arco-íris entra pela boca.

Sonho um pássaro azul

ele canta na janela

de minhas memórias.

Sou eu a flor

sou eu e o pássaro.

Nesse céu azul inventado

onde Deus é menino

e joga bugalhos comigo.

domingo, 16 de julho de 2023

Tomas e Tereza

 A  Milan Kundera

Entumecido diante de teu belo sexo

imagino outros falos adormecidos

a espetarem tuas carnes.

Repito o ato mecânico

com que me ofereces teu corpo

[eterno aprendiz de outros corpos]

a receber agora o peso de meu peito.

Recupero tuas excitações

concentradas em mim

e gemes profundo de uma voz rouca abafada

a cravar-me tua existência.

És a menina abandonada no cesto

Sou Tomas e tu és Tereza

a se desesperar com o corpo de outras mulheres

que habitam meu sexo.

Não és única

nem sou teu único amado preso em uma torre.

Sobre nossos corpos

pesam sombras de outras épocas.

Sou leve sobre o peso denso de tua respiração.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Passado

Um passado não se desfaz fácil assim,

e mesmo em seus ardores silenciado

nas paredes da memória

instala grades e cacos de vidro

que nos aguilhoa a alma nos silêncios do presente.

A primeira sensação de Deus

o amor, nem sempre na cama,

que nos inaugurou o sexo

esse monstro de prazer e angústias. 

Lembro pouco

raramente vasculho o passado

prefiro deixar os mortos calados

essa classe de gente indigesta

que ainda vive em algum lugar.

O passado é esse mar de ossos insepultos

e infelizmente serão eles a jogar a última pá de cal

sobre o fim de meus dias. 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Estreias

Em ti divino Deus

descansei minhas fadigas

vi, porém, teus grandes olhos

me vigiarem as noites nuas.

Meus gozos, meus prazeres

tudo compartilhaste com teus anjos.

Meu corpo nu desvendado

por morenas mãos estreantes

rompeu o véu da inocência.

Colhi maçãs, experimentei das uvas 

o vermelho vinho

e gozei desenfreado os corpos que se abriram

ao meu falo inexperiente.

Deitei na terra úmida

e senti minha finitude

germinar nas mãos de Deus.

Lembranças

 São 6h30 da manhã. Acordo antes de o despertador tocar. Ouço o canto de pássaros que deveriam estar em minha janela. Desconfio que estão presos em uma gaiola no prédio ao lado. Lamento a sordidez humana que não sabe apreciar o dom da liberdade. Os pássaros foram os últimos seres a morrer no dilúvio. Resistentes voaram por dias, dormiram nas mais altas copas das árvores do planeta e quando as águas chegaram, refugiaram-se nas montanhas. Ainda cantavam, mesmo molhados e com frio. Quando as águas subiram demais e as montanhas sucumbiram ao dilúvio, os pássaros novamente voaram anunciando o fim do mundo. Por dias foi possível ver os pássaros nos céus do planeta. Próximos de Deus, logo chegariam aos portais dos céus, que derramavam suas águas sobre a terra, naquele momento mais líquida do que sólida. Logo, Deus se lembrou de Babel e da arrogância humana, veio-lhe à memória os anjos que do céu caíram por ousarem o mais alto trono da divindade e novamente com medo, o grande espírito que já pairou sobre a face das águas, quando a terra ainda era vazia e sem forma, de um só golpe ceifou milhões de pássaros. Caíam do céu, como as águas do dilúvio, pássaros de todas as cores e tamanhos. Por sete dias, as águas ficaram coloridas de penas, uma tela de horror tingiu a face das águas e novamente só o espírito de Deus voava sobre o mundo desfeito. Em poucos dias, o cheiro pútrido dos pássaros alcançou os céus e abrandou a ira de Deus. Noé de sua embarcação queimava estrume para incensar o ar que se tornou insuportável. Na arca os pássaros soltavam seu lamento pelos irmãos mortos nas águas. Noé se alegrou com o canto e sacrificou alguns animais a Deus, não fosse o Senhor irar-se pela falta de gratidão humana. A fumaça subiu aos céus e o Senhor, depois de dias que águas já não mais desciam dos céus, lembrou-se do homem preso em sua embarcação. Era hora de começar a secar as águas e dar um pouso à sua semelhança na terra. Noé soltou uma pomba, mas esta foi negada por Deus ainda desconfiado das intenções dos pássaros, ela voltou para a embarcação sem notícias de vida no orbe. Dias depois, Noé soltou outra pomba e esta, perdoada por Deus, voltou trazendo das mãos do Senhor um pequeno ramo verde. Era símbolo da reconciliação de Deus com os pássaros. Noé tomando o ramo verde como símbolo da aliança de Deus com os homens, quebrou o pescoço da pomba, derramou seu sangue no chão da arca e ofereceu ao Senhor seus louvores. As aves, presas nos gaiolões da arca, entraram em alvoroço e cantavam desesperadas, claro que por falta da humana voz para protestar. Noé regozijou e tomou aquilo como mais um sinal da benção de Deus. Navegou feliz por dias e pensou: quando descer à terra, farei gaiolas para que as aves cantem dia e noite para Deus como sinal de agradecimento por nos ter restituído a vida cotidiana. Mandou mais uma pomba, que Deus não viu a diferença por ser branca também e novamente lhe devolveu com mais ramos verdes. Era o fim do dilúvio e o homem poderia habitar a terra e fazer tendas e fazer festas e coabitar novamente longe dos olhos dos animais. No primeiro dia em terra, Noé construiu inúmeras gaiolas para abrigar os pássaros saídos da arca, acreditou assim garantir a reprodução primeiro, soltaria apenas os filhotes que as aves dessem, as demais ficariam presas para enfeitar seu jardim. Para ter privacidade com suas filhas, Noé cobria as gaiolas toda a noite e coabitava em festa. Meses depois com a vinha dando frutos, Noé fez o vinho e se embriagou. Cam desta vez cobriu as gaiolas e coabitou em paz. De lá para cá os homens têm feito gaiolas e prendido os pássaros. Inúmeros concursos de canto foram feitos pelas associações de criações de aves, que exibiram seus pássaros a outros humanos que não compreenderam o lamento das aves e lhes deram prêmios pela voz canora. Meu avô tinha gaiolas. Lembro-me de um pássaro em especial. Um periquito azul, que meu avô tirava da gaiola e o acariciava em suas mãos. Passei uma temporada na casa de meu avô. Logo ganhei tarefas e uma delas era trocar o alpiste e a água das gaiolas todos os dias pelas manhãs, cuidar para que os pássaros não fugissem e limpar as grades da prisão. Assim como meu avô, me afeiçoei ao periquito azul e com as mãos o tirava da gaiola, até que um dia, confundindo o azul do céu com o azul do periquito imprimi-o contra a abóboda celeste e o vi misturado à tela divina. Nunca mais vi o periquito azul, me foram proibidas as demais gaiolas, mas toda tarde eu olhava para o azul do céu e imaginava quando foi que o homem teve a ideia de fazer gaiolas para prender os pássaros. Nunca mais ouvi a voz de Deus. Alerta: esta história não é sobre meu avô, é sobre pássaros, não suporto gente que tem gaiolas. Provavelmente, não suporte meu vizinho do prédio ao lado que às 6h30 da manhã tira o pano das gaiolas para os pássaros cantarem. 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Pássaros

É manhã

e ouço pássaros

desconfio que cantam da gaiola.

Sem dia nem noite

interrompidos por grades

pássaros lamentam a pequenez humana

que brinca de ser Deus.

Condenados por sua beleza

pela leveza de seu canto julgados

pássaros agonizam em gaiolas

aos olhos do cruel ser humano.

Que manhã triste!

Que dia horrendo!

Ter seu canto sequestrado

pela maldita mão humana. 


terça-feira, 27 de junho de 2023

Margens

 À margem de mim

suspeito muitas coisas

velhas certezas se acabaram,

floresceram novas esperanças

e a água na boca

é o reflexo das horas insones.

Queria saber como é deitar-me às tuas costas

e na contraluz da janela ao amanhecer

ver teu despertar.

Beijo-te as pálpebras

e vejo leve a borboleta nascer. 

Tem mil olhos

e eu só tenho você.


Amanheceres

Amanheço

deixo atrás de mim sonhos

fantasmas de outras vidas

que encarno todas as noites.

A cama ainda quente

guarda segredos

que os sonhos acalentaram.

Minha mão treme.

O café quente

a janela entreaberta

há olhos que me espreitam

e uma mulher me diz "bom dia". 

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Contemplação do Rhône

O Rio de verde esmeralda 

silencio em meu peito.

O olhar único

é a experiência divina

de quem se encontra uma única vez

no breve tempo do adeus.

O rio, o meu rio Rhône, é só meu,

ninguém me tira este instante

em que suas águas

correram diante de meus olhos

qual os minutos correm incessantemente 

na foz do tempo.

O rio, este rio que contemplo

é meu e canto e danço

respirando o vapor de suas águas. 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Bate-Seba e Davi

Nua oferecia-se ao sol

deitada em sua espreguiçadeira.

O gato ronronava mistérios,

os pombos arrulhavam tristemente. 

Jovem rei, já de mulheres servido,

passeava pelo pátio do castelo,

quando seu olhar, mais quente que o sol,

abrasou a pele de Bate-Seba.

Aquecida pelo olhar antecipava volúpias

que os brancos lençóis revirados no futuro

cantariam a traição de Davi.

Sou tua, és minha,

o sino do coração bateu no peito de ambos amantes.

Às costas de Urias, Davi e Bate-Seba

praticaram diante dos olhos do Senhor

o famoso adultério.

Davi era Rei, Urias era servo,

Bate-Seba escolheu o Rei

e deu a seu futuro filho,

não o primeiro,

o trono de de Israel. 

Urias, no campo de batalha, morreu.

Davi, livre, mandou buscar Bate-Seba

que já lhe era mãe de seu filho.

Casal feliz, sem saber dos desígnios do Senhor,

deitava em brancos lençóis a derrota de Urias.

 Porém, Deus ciumento de seu escolhido,

pediu a conta do adultério

e mesmo com vestido de pano de saco

e cabeça coberta de cinzas

Deus retirou de Davi a promessa do filho amado.

Porém, Davi era Rei e Urias era servo.

Pouco tempo depois, revirando novamente lençóis,

aos olhos das esposas preteridas,

Bate-Seba anuncia nova gravidez,

não lhe escapasse o marido conquistado por falta de filhos. 

Davi era Rei e Urias era servo,

jamais seria tão longa a ira de Javé. 

Novo filho, novo reinado,

o casal feliz, contas pagas ao Senhor,

ofereceu a Israel o jovem Salomão,

Rei sábio e de muitas mulheres

encobriu o pecado do famoso pai,

apagou a história da mãe,

afinal Davi era Rei e Urias era servo. 




quarta-feira, 14 de junho de 2023

Manhã de sábado

A casa ainda dorme no silêncio. Os cômodos estão vazios e alguém ressona no quarto ao lado. As cortinas estão fechadas, guardando o quadro azul para mais tarde. Por ora, me movo a passos leves pela cozinha com medo de acordar a menina. Com ela virão os risos, as brincadeiras, os desenhos. Adio este momento tão certo, essa rotina que se inaugurou há sete anos. Gosto do silêncio também, de olhar para as paredes mudas e para o sofá vazio. Crio a expectativa, sei que ela vai acordar em poucos instantes, mas vivo este momento de solidão. Logo as caixas serão abertas, os potes de massinha espalhados pelo chão, a televisão repetirá o desenho de todos os dias e as cortinas da sala serão escancaradas para a luz do sol brilhar. Gosto destes momentos de cinza e silêncio, me reconstruo à espera dela que abrirá as feridas do tempo, que mostrará minha previsibilidade em dar-lhe o porto que precisa para atracar. Ela ampliou meu vocabulário e inseriu nele a palavra pai, esta palavra tão dolorida, esta nova fase da vida, que vem sem manual de instrução. Ainda me acostumo a esta nova realidade que perdurará, sei, até meus últimos dias. Se fumasse, acenderia um cigarro. 

Palavras

Vou escrever porque a palavra existe

e com ela coloco os pingos nos "is".

Porque falo, sei-me homem

digo te amo, mas também te odeio.

Posso ser ingênuo

pilantra e falador.

Tudo a palavra me dá

e mesmo quando estou calado

penso com palavras.

Com as palavras toco teu sexo

e digo que é amor.

Habito um mundo de palavras

de etiquetas, bulas e provérbios.

E por que quando escrevo 

me faltam palavras?

Se elas estão todas lá

adormecidas, aguardando

que alguém as tire da caixa

e como o espírito de Deus paire sobre as águas?

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Dor

Abro os olhos

e ouço o primeiro golpe do coração

a abrir as portas da vida.

Pulso e tudo é vida e dor

que irradia o sol em minhas retinas.

Sei-me vivo

sei que ainda não cheguei ao pó.

O tic-tac nervoso das hastes 

dessa pedra pendurada na parede

ainda não pôde

me dar o golpe final. 

Balanço

Não te esqueças

que vivi.

O que resta aqui

é o resultado

de uma lenta decomposição

incapaz de traduzir o gozo,

mesmo que efêmero,

que gozei na vida.

Esta, infelizmente,

é a última cama em que me deito,

que por despeito

está fria e vazia. 

Aos 40

Há uma tragédia que se anuncia

no andar de um homem

aos quarenta anos.

Algumas feridas

[amorosas quem sabe]

uma unha encravada

os triglicérides um pouco altos,

meia dúzia de amores não confessados.

Por que ainda bate no peito

o coração desesperado?

Por que ainda manda mensagens de amor?

Se o que cabe é a carta do suicida?

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Corpos

Corpos se insinuam pelas ruas

com seus segredos e encantos.

Com quem se deitou 

a menina na esquina

ou o rapaz na faixa de pedestres?

Cada corpo carrega outros corpos

pedaços de braços e pernas

que os entrelaçaram no escuro.

Sou eu e sou outros corpos

a se adivinharem em mim.

Em que corpo perdi minha alma?

Em qual esquina deixei de ser eu?


segunda-feira, 8 de maio de 2023

O perfume das rosas

 Aconteceu. Felipe começou a sentir um cheiro de rosas. Não havia passado por nenhum jardim, nem havia flores por perto. O nariz respirava o odor das rosas. A princípio isso era agradável e evitava os desgostos dos cheiros alheios e dos dejetos pelas ruas. Talvez fosse momentâneo, uma memória, um evento do passado que viera à mente.

As coisas se complicaram quando sua amante ao telefone lhe disse que o cheiro do perfume dele ficara na sua cama. Impossível, ele não usara nenhum perfume naquele dia e ela insistia que o perfume estava lá como uma lembrança de seu corpo. 

Então, começou a prestar atenção e sentiu o agradável perfume das rosas a lhe acompanhar. Comprou perfumes caros, cremes, sabonetes. Venciam-se os odores e lá estava o cheiro de rosas, cada dia mais forte. Ficou preocupado. Será que as pessoas sentiam o mesmo cheiro que ele?

No dia de seu aniversário despertou feliz, como nunca em todos os anos de sua vida. Porém, ao tirar a roupa e se olhar no espelho, viu um pequeno botão de rosa brotar de seu peito. Como esconderia aquilo? Entrou debaixo do chuveiro e se lavou com força, encheu o banheiro de pétalas vermelhas e quando olhou para o peito, o insistente botão de rosa ganhava mais forma e mais cor.

Vestiu uma camisa larga, grossa, apesar do calor, e desceu para o salão de festas onde aconteceria seu aniversário. Os convidados foram chegando, abraços, sorrisos e o macio das pétalas e lhe acariciar o peito. Sentiu necessidade que a festa acabasse, pensou em xingar a todos, mandar todos embora, mas controlou-se naquela fúria que era descabida para um homem que portava uma rosa no peito.

Aliviado por ninguém ter desconfiado de nada, voltou para seu apartamento e na solidão das paredes pôde respirar tranquilo. Uma convidada elogiara seu perfume, sem menção ao odor de rosas que dele exalava, se quis perguntar, calou, e isso o fez adormecer levemente no sofá.

Acordou de madrugada com um incômodo na garganta. Por certo se resfriara com o ar condicionado e agora sentia como se espinhos ferissem sua glote. Foi ao espelho, abriu bem a boca e viu saírem de sua garganta pequenos galhos espinhosos.

Como iria ao trabalho pela manhã? Como falar com as pessoas? Esperou amanhecer e ligou para a empresa. Falou algo quase incompreensível, que foi o suficiente para saberem que Felipe não estava bem. Dispensaram-no do dia de trabalho e colocaram na conta dos excessos da festa aquela linguagem quase inarticulada.

Só poderia ser um pesadelo. Resolveu deitar-se e descansar um pouco. Dormiu por horas e acordou com uma ânsia macia que explodia por sua boca. No caminho para o banheiro, vomitou rosas. Pétalas e mais pétalas, botões de rosa e mais botões rosa caíam pelo chão do apartamento. 

Sentiu que seus dedos doíam e quando olhou, brotavam espinhos das unhas. A dor começou a se fazer insuportável com as horas, até que todos os galhos da roseira cresceram e lhe tomaram conta das mãos. 

Deitar-se foi impossível. Havia espinhos pelas costas e pelas nádegas. O buraco no peito aumentara e havia um buquê de rosas vermelho vivo a florir seu tórax. Foi ficando cansado, o corpo a pedir cama e os espinhos a lhe castigarem os braços, as pernas e agora até pelos ouvidos saltavam ramos com rosas.

Tentou respirar, sentiu que do nariz escorriam pequenos filetes de sangue. Puxou o ar com mais força e sentiu que seus pulmões se rasgavam e lhe negavam o sopro da vida. Tentou gritar e quando imaginou ter dado um berro, explodiram por entre seus dentes inúmeros galhos com rosas. Sufocou, entrou num transe entre o sono e a vigília e de dentro de seus olhos duas enormes rosas floriram para a primavera.

Esquecido de todos, Felipe floriu todo o apartamento. Ninguém mais o viu no trabalho, sentiram sua falta nas festas e sua família julgou-se abandonada pelo filho que nunca mais ligara. 

As contas se acumulavam à porta de Felipe, os jornais amareleciam, os cartões de crédito ficavam em envelopes que se amontoavam na caixa de correios do edifício. Quando as contas do condomínio extrapolaram o aceitável, o síndico resolveu tomar providências. Bateu à porta por vários dias. Ninguém atendeu. Chamou-lhe a atenção o forte cheiro de rosas que saía pela porta.

Resolveram, então, arrombá-la; quando a colocaram abaixo, encontraram uma enorme roseira plantada no meio da sala. Havia rosas e galhos por todos os cantos, como se a roseira houvesse ocupado cada centímetro do apartamento. Nada de Felipe. 

Alguns dias depois voltaram com machados e serras, cortaram os galhos mais grossos e o caule da roseira. Limparam o apartamento e o colocaram à venda. Só não se livraram do eterno cheiro de rosas que tomou conta de todo o edifício. 



terça-feira, 2 de maio de 2023

Tróia

Este ofício de lidar com o tempo 

de contar as horas 

de reduzir os minutos que a conta-gotas leva nossa vida, 

é dura tarefa de quem ainda, 

fora das redes sociais, 

contempla a vida. 

Há o tempo, o iniludível tempo, 

com hora marcada 

com data vencida igual a boleto de início de mês

 a cobrar nosso prazo de validade. 

Já tive dez anos, vinte, trinta, 

hoje tenho quarenta e tantos anos

 e sou obrigado a repassar as memórias

 rever um tempo imobilizado pela história que até aqui construí. 

Mas não gosto do tempo passado

 esse tempo velho de baús mofados 

que não põe nem tira um ponto sequer de minha vida.

 Olho para frente, 

confronto o tempo

 sou Heitor à espera de Aquiles

 a arrastar meu corpo aos redores do muro de Tróia.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

O tempo e a carne

Quando te olho

fico pensando na pele que cobre teu corpo

na substância clara de teus olhos

na carne que envolve teus ossos.

Vejo outras mulheres

e também estão envolvidas em carnes,

gordura, sangue e veias.

Por que a tua carne

se toda a mera substância humana

é composta por esta massa vermelha

que um dia será pó?

Tento analisar teus ossos

a substância dura do fêmur

em que te equilibras e danças

forçando a rede de ossos

a se chocarem uns contra os outros.

Estás coberta de cartilagens, pele,

cabelo e unhas pintadas

e assim como outras mulheres

te pintas para cobrir a última linha

a marcar teu rosto,

que começa a denunciar a passagem

do tempo, do teu tempo, que é meu tempo

a devorar e revelar o que escondem tuas carnes.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...