Na cidade onde nasci a disposição geográfica da zona urbana estava dividida pela linha do trem. Morávamos para cima ou para baixo da linha do trem. Assim, ficávamos divididos em para cá da linha ou para lá da linha, dependendo de onde estávamos.
Sempre gostei de morar para baixo da linha do trem. A cidade me parecia mais viva, mais pulsante, embora tivesse apenas 30 mil habitantes, as pessoas de baixo era mais a minha cara, mais a minha forma de sentir a vida.
Fiquei triste quando precisamos nos mudar para a casa de meu avô. Passamos a viver na parte de cima da linha do trem. Até os meninos eram diferentes, tinham ares de riqueza e uma arrogância coletiva por estarem morando na parte de cima da linha do trem.
Rápido, porém, fiz as amizades. Mas, eram cheias de entreveros e brigas por selos de caminhão e carros que colecionávamos, brigas por bola, por brinquedos. Não havia paz naqueles corações nem disposição em travar uma real amizade.
Logo me recolhi. Confesso que também não era uma pessoa fácil, mas o pessoal da linha de baixo do trem era bem mais animada. Embora taxados de pobres, a vida para baixo da linha do trem era mais vida.
Começaram as aulas e as caminhadas. A escola ficava bem mais longe de casa e precisávamos sair bem antes do horário de entrada na escola. Meu irmão e eu éramos os companheiros daquela jornada. Ríamos, brigávamos, pensávamos a vida e o futuro. Essa intimidade anos depois seria desfeita. Na vida adulta, tornamo-nos quase desconhecidos. Mesmo assim, o respeito foi mantido e aquele pacto de infância sobre segredos nossos nunca foi quebrado e nem houve necessidade de apelos para o silêncio, nos entendíamos naturalmente.
Descobrimos que precisávamos passar a linha do trem todos os dias. Sujeitos entre duas realidades seguíamos a vida. Não pertencíamos ao grupo de cima da linha do trem e fomos excluídos do grupo de meninos da linha de baixo. Viramos estrangeiros em nossa terra. Não havia as gangues da época do meu pai, mas um silêncio violento passou a nos envolver; era como se não fôssemos mais os mesmos para aqueles meninos.
O certo é que por aquela época surgira uma nova aventura no nosso mundo infantil. Naquele tempo nós passamos a pular o trem. Como assim? Bem no horário de nossa ida à escola o trem, com seus incontáveis vagões, cortava a cidade em duas, rasgando suas entranhas com um longo apito.
Nos primeiros dias nós esperávamos o trem passar, olhando assustados aquelas pessoas saltando os intervalos entre um vagão e outro, passando bicicletas, sacolas, levantando vestidos e saias para atravessar para o outro lado. Esperando o trem, chegávamos todos os dias atrasados à escola. Não adiantava explicar em casa, tínhamos de sair no horário de sempre.
Assim, encontramos um novo prazer. Primeiro, assustados, tremendo, com medo que o trem largasse partida e nós fôssemos arrastados por ele para outras cidades e lugares desconhecidos. Depois, passamos a atravessar sem medo, quase desafiadoramente e até ficávamos tristes quando ao chegar à linha férrea, não víamos o trem por lá. Eram dias mais tristes, às vezes, compensados na volta, com trem a nos esperar. Naquele tempo nós pulávamos o trem, a terra era azul e nos banhávamos à luz do sol.
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