quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Roda gigante

Havia um parque na cidade. Não tínhamos dinheiro, mas mesmo assim pedimos aos nossos pais para ir ao parque ver as luzes, os brinquedos, espichar os olhos para os meninos ricos que giravam no chapéu mexicano, exibindo suas alegrias aos quatro ventos, trombando nos carrinhos e soltando gritos à força do impacto. Ligeiros minutos que podiam ser estendidos ao se apresentar um novo bilhete.

Não reclamávamos da situação. Sabíamos ser pobres e só de estar naquele ambiente de luzes, sentindo o cheiro de pipoca, vendo as vermelhas maçãs do amor e quebra-queixos saindo pelas mãos dos visitantes nos confortava de um modo estranho.

Era o parque, as luzes, os sons. Tudo entrava por nossos poros. Éramos livres naquele momento, isto é o que mais importava. Estávamos longe dos olhos vigilantes e punitivos do pai e nos fazíamos um pouco homens naquele ambiente. 

Não, não olhávamos as meninas, só tínhamos olhos para os brinquedos, para o desejo de entrar desapercebido em uma das cadeiras e desfrutar os curtos minutos de uma volta antes de sermos surpreendidos pelo vigilante do parque. 

A noite estava agradável, a brisa nos enchia a pele de pequenas carícias que aliviavam a mão do calor. O grande desafio era a roda gigante. Eu tinha medo de altura e, assim, me sentia tranquilo de nessa hora não ter dinheiro, o que me livrava de admitir minha covardia. 

Parados, meu irmão e eu, observávamos o giro longo da roda gigante. Os casais no ar, a girar, a se beijarem enquanto a roda parava por um instante seu giro, para que seus ocupantes vissem a terra do alto. 

Do nada surgiu Rodrigo. Um amigo nosso de escola. Menino camarada, contrário a brigas e barulhos. Também ele olhava a roda gigante. Ao nos ver, imediatamente, se aproximou, puxou conversa e nos chamou para dar uma volta no brinquedo.

Esse momento foi doloroso. Mas, para evitar a desculpa do medo disse abertamente que não tínhamos dinheiro e só estávamos olhando o movimento. Rodeou um pouco, olhou para o brinquedo e disse que a mãe lhe dera dinheiro para andar na roda gigante e assim perder o medo de altura.

Propôs-se a pagar minha volta. Tremi nessa hora. Como dizer que não iria porque tinha medo de altura, como fazer para dizer que não poderia ajudá-lo naquilo que eu também temia. E o convite era para mim, teria de deixar meu irmão a olhar-nos da plataforma.

Então, certo de que ele diria não e eu poderia escapar da vergonha do medo, disse: "Estou com meu irmão, se ele não for, não posso ir";  havia um pouco de verdade no que eu dizia. Culpar-me-ia a vida toda caso deixasse meu irmão de fora dessa experiência. 

Meu alívio durou o instante de minha fala. "Tudo bem!" respondeu Rodrigo. "Minha mãe me deu bastante dinheiro para andar quantas vezes eu quiser". Foi e comprou três bilhetes. Nunca em minha vida quis que a volta de um brinquedo demorasse tanto. Mas, a roda parou, os casais e meninos desceram e era a hora de nossa vez. 

Meu irmão se aconchegou rápido no banco, sozinho, altivo, sem medo. Rodrigo e eu fomos para o outro banco. Tremíamos, os passos eram lentos e caminhávamos como condenados à morte. Sentamos, nesse momento não havia mais segredos, o medo nos irmanava e cúmplices atamos os cintos de segurança. 

O giro deu seu início. Tentávamos conversar normalmente, porém, nossos queixos tremiam e a fala saía engasgada. Giramos até o alto, até o baixo e suando frio enfrentamos a experiência-medo de altura. Sem ter como descer antes do tempo, abreviávamos os minutos sorrindo e até felizes de nossa coragem, nos fazíamos ali um pouco mais homens.

Enfim, a roda parou, descemos tremendo ainda enquanto meu irmão descia todo feliz por ter andado no brinquedo. E novamente fomos três, livres, felizes, olhando a vida que se distribuía pelo parque de diversões. Nunca mais vi Rodrigo, mas ele está apegado à minha memória como um irmão que se foi, deixando atrás de si o sorriso menino de quem foi bom por um dia. 



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Esquizofrenia

Convivo com enormes fantasmas
são todos eles quase reais,
em suas opiniões inabaláveis,
rasteiros em suas atitudes.
Travo com eles enormes batalhas
das quais nem sempre saio ganhando.
Meus amigos de longa data
surgem em suas piores versões
e imagino brigas cruéis com eles.
Enfrento a guerra nas sombras
todos eles são mudos
e só eu falo um solilóquio gigante
conduzido por minha mania
de criar inimigos onde só há paredes.

domingo, 17 de novembro de 2019

Não precisava ter acontecido.....

Aconteceu....mais uma vez a vida se esvaiu, coada por um buraco vermelho no corpo.

Era dia de ir para a escola. A mochila nas costas estava pesada de sonhos infantis, cheia de sóis amarelos, bailarinas rodopiantes e futuros imaginados. Estava cheia de si, por seus poros exalava a vida cheirosa que vêm das fantasias mais nítidas. Um mundo todo a existir e seu corpo pequenino imerso naquele calor da manhã.

A menina ia de mãos dadas com a mãe. A concha da palma da mão de mamãe trazia uma segurança morna e gostosa de sentir. Ela vivia e isso era tudo. Seu sol, mesmo nos dias difíceis, aliviava as dores, as incertezas e a menina era toda astro brilhoso, em torno do qual, girava a mãe e o pai. Mãe sol, pai lua, seu mundo ainda não necessitava de outros planetas. Era só aquela sensação gostosa de espera, que sempre terminava no final do dia, com o pai ou mãe a pegá-la pelas mãos e levá-la de volta para casa.

Mas, ainda era cedo. A menina reinava em seu mundo encantado e nada lhe prendia a imaginação.

Os estampidos não demoraram a romper as nuvens brancas em forma de um enorme rebanho de ovelhas. A menina olhava para o céu, como se ele a convidasse para evadir-se do mundo. Sentia uma enorme alegria e as nuvens roçavam seu rosto.

Logo um riozinho de sangue desceu por suas pernas. Era vermelho e quente como o sol. Não sentiu medo, afagou a mãe, sorriu e não entendeu porque ela chorava. Olhou nos olhos de mamãe e disse: "não precisa chorar, mãe, vou com as nuvens". 

Sem soltar a mão da mãe, a menina navegou em seu sangue. Sentiu quando subia pelas nuvens e seu corpo esgotava-se por um pequeno furo. Não havia dor, apenas os olhos úmidos de mamãe e um mundo inteiro que desabava sobre aqueles que ficavam.

Não houve mais tempo para a menina, mas não precisava ter acontecido. Nunca precisa acontecer, os pais só querem a certeza de que filhos voltem para casa, enquanto eles esperam o tempo certo das fantasias se transformarem em sonhos.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Deite comigo esta noite

Deite comigo esta noite!
Deixe o homem que conhece de fora,
esqueça seus títulos, seus pronomes de tratamento,
feche a porta atrás de suas costas
e espere encontrar nu o homem que deseja.

Ame-o com seus defeitos e suas falhas,
faça dele o que seu corpo desejar.
Deixe de espreitar a imagem pré-concebida
das paixões e devore o corpo à sua frente.

Deixe que nada mais reste além do prazer
das mãos que percorrem o corpo,
das bocas que brigam mudas num balé
ritmado de corpos em seus chiados,
suas derrapagens e seus atritos.

Não ame o homem que sonhou
ame o homem real, de carne, de ossos e de suor.

Deslize sobre seu peito desatenta
dos caminhos que sua boca possa percorrer.

Mas, antes de tudo, ame seu prazer, sua dor,
a dose de realidade que estende sob seu corpo,
cavalgue sobre o peito acelerado
e ao ritmo das batidas do coração
sinta-o ofegante parar por um instante.

Por fim, beba a dose de realidade
dos corpos que nus desabam sob o cansaço,
abraçados no mutismo da solidão
que são dois corpos após o coito.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Liturgia dos corpos

Tiro tua roupa
como quem professa
a doce liturgia 
dos entardeceres.
O mistério revela-se
e teu sexo reluz desafiador,
vivo, quente, úmido.
Sei que dessas águas
mornas não posso escapar.
Então, devoto fervoroso,
bebo das águas desse poço
numa sede de nunca acabar-se.

domingo, 10 de novembro de 2019

Sombras de Lyon

Lyon é um reflexo na poça d'água
mas chove-me por completo
em meus ossos.
Doem-me as juntas, as atrites
e as dores acumuladas
em um único corpo
reclamam ares de outros tempos.
Queria como o poeta
dizer que Lyon é apenas um retrato
pendurado na sala de visitas,
que o ímã da geladeira é só um souvenir,
mas como dói reduzir um mundo
a poucos objetos comprados
a dois euros em uma loja de Montmartre.

Indecisões

Não gosto de dias indecisos.
Ou chove ou faz sol,
mas essa intermitência
esse ir e vir de nuvens e sol
chuviscos e secas
incomoda-me imensamente.
Não posso mudar de humor
tão rapidamente como as nuvens
ou estou comodamente depressivo
ou modestamente alegre,
mas esta indecisão me mata
me põe o dia para baixo
e não sei quem sou ou quem posso ser.
Não tenho tantas máscaras
para um único dia. 

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Naquele tempo nós pulávamos o trem

Na cidade onde nasci a disposição geográfica da zona urbana estava dividida pela linha do trem. Morávamos para cima ou para baixo da linha do trem. Assim, ficávamos divididos em para cá da linha ou para lá da linha, dependendo de onde estávamos.

Sempre gostei de morar para baixo da linha do trem. A cidade me parecia mais viva, mais pulsante, embora tivesse apenas 30 mil habitantes, as pessoas de baixo era mais a minha cara, mais a minha forma de sentir a vida. 

Fiquei triste quando precisamos nos mudar para a casa de meu avô. Passamos a viver na parte de cima da linha do trem. Até os meninos eram diferentes, tinham ares de riqueza e uma arrogância coletiva por estarem morando na parte de cima da linha do trem.

Rápido, porém, fiz as amizades. Mas, eram cheias de entreveros e brigas por selos de caminhão e carros que colecionávamos, brigas por bola, por brinquedos. Não havia paz naqueles corações nem disposição em travar uma real amizade. 

Logo me recolhi. Confesso que também não era uma pessoa fácil, mas o pessoal da linha de baixo do trem era bem mais animada. Embora taxados de pobres, a vida para baixo da linha do trem era mais vida. 

Começaram as aulas e as caminhadas. A escola ficava bem mais longe de casa e precisávamos sair  bem antes do horário de entrada na escola. Meu irmão e eu éramos os companheiros daquela jornada. Ríamos, brigávamos, pensávamos a vida e o futuro. Essa intimidade anos depois seria desfeita. Na vida adulta, tornamo-nos quase desconhecidos. Mesmo assim, o respeito foi mantido e aquele pacto de infância sobre segredos nossos nunca foi quebrado e nem houve necessidade de apelos para o silêncio, nos entendíamos naturalmente. 

Descobrimos que precisávamos passar a linha do trem todos os dias. Sujeitos entre duas realidades seguíamos a vida. Não pertencíamos ao grupo de cima da linha do trem e fomos excluídos do grupo de meninos da linha de baixo. Viramos estrangeiros em nossa terra. Não havia as gangues da época do meu pai, mas um silêncio violento passou a nos envolver; era como se não fôssemos mais os mesmos para aqueles meninos. 

O certo é que por aquela época surgira uma nova aventura no nosso mundo infantil. Naquele tempo nós passamos a pular o trem. Como assim? Bem no horário de nossa ida à escola o trem, com seus incontáveis vagões, cortava a cidade em duas, rasgando suas entranhas com um longo apito. 

Nos primeiros dias nós esperávamos o trem passar, olhando assustados aquelas pessoas saltando os intervalos entre um vagão e outro, passando bicicletas, sacolas, levantando vestidos e saias para atravessar para o outro lado. Esperando o trem, chegávamos todos os dias atrasados à escola. Não adiantava explicar em casa, tínhamos de sair no horário de sempre.

Assim, encontramos um novo prazer. Primeiro, assustados, tremendo, com medo que o trem largasse partida e nós fôssemos arrastados por ele para outras cidades e lugares desconhecidos. Depois, passamos a atravessar sem medo, quase desafiadoramente e até ficávamos tristes quando ao chegar à linha férrea, não víamos o trem por lá. Eram dias mais tristes, às vezes, compensados na volta, com trem a nos esperar. Naquele tempo nós pulávamos o trem, a terra era azul e nos banhávamos à luz do sol.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...