sábado, 9 de março de 2013

Os olhos da raiva

Gostaria de olhar o mundo e poder desfrutar o que ele tem de melhor. Mas o melhor dele não é para todos. Nem todos podem comer do leite e mel que é uma promessa para viver bem. Olho para o mundo e vejo-o cinza; com raras exceções o enxergo colorido e cheio de vida. Nestas ocasiões, em geral, estou olhando para as árvores e flores. A natureza inquietante em sua mutabilidade me encantam os olhos e a alma. Que chavão não é mesmo?

Amo o inverno por esse motivo. Tudo fica cinza, sem cor, num clima de eterna e negra depressão. Tudo parece mais triste e incrivelmente mais feliz para mim. Não preciso demonstrar alegria, todos estão tristes, cabisbaixos, encapotados em grandes blusas de frio e a tomar café e chás o tempo todo. Ali o sorriso parece a eles uma ironia.

Adoro acordar cedo e ver que tudo está sem cor. A garoa caindo lentamente observando os transeuntes encolhidos, de queixo no peito e mãos no bolso. Pouco dispostos a cumprimentar quem quer que seja. Os olhares estão baixos nem sequer percebem que alguém passou ao seu lado.

Sentir-se molhado pelo chuvisco que teima em cair, sentir os pés congelando sem ter como fazer nada, chegar ao destino e estar sozinho, tremendamente só, perdido em meio às sombras e ali enfrentar os medos, as raivas, iras e rancores do passado que batem constantemente à porta de minha memória, reconstruindo com cores mais cruentas do que na verdade aconteceu realmente.

Não preciso ir ao cinema. É só fechar os olhos numa sala fechada e escura e ouvir as vozes do passado a me perturbar, a me ofender. Vendo os espectros a me roubar a honra, a fama, a vergonha, a me fazer tremer. Como me irrita ser covarde, um dia ajo como Riobaldo, faço-me valente por necessidade e vou para o meio do arruado tomar satisfação daqueles que me ofenderam.

Lembrar quando perdi a dignidade é difícil, mas nem todo homem tem coragem de assumir isso, assim em público, de forma desavergonhada, como velho que tomou sol demais na moleira. No entanto, posso dizer, uma vez perdida a dignidade ninguém mais te respeita. É como viver num eterno inverno, sem cor, cinza, a chuviscar permanentemente. Por isso gosto do inverno, as pessoas se encolhem em si como pinto entanguido e nunca te olham na cara. Para quem perdeu a dignidade, nada melhor que não ver o olhar das pessoas e curtir apenas o descarnado das árvores num dia cinza e chuvoso. Afinal, para quem perdeu a honra nem árvore se digna em me dar sombra.


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