Nunca mais vi o menino das bolinhas de gude. Na verdade, ele sumiu mesmo quando eu ainda estudava no antigo Ginásio da cidade. O pessoal chamava de Horácio. Prédio velho, antigo, escada de mármore branco e salas com tacos descascados e corroídos pelo tempo. Havia armários grandes de madeira, velhos como a escola e como a tia Maria José, na época velha hoje mais velha ainda, por incrível que pareça ainda vive.
Tínhamos a mania de jogar bolinhas de gude no intervalo. O melhor jogo era entre irmãos, jamais perdíamos nossas bolinhas e ficava tudo em família. Afinal brincadeira de bolinha de gude é de menino pobre, que não tem dinheiro para comprar brinquedo melhor. Nem sei como meu pai permitia comprar algumas bolinhas. As melhores eram as achadas, caídas pela sarjeta de algum bolso descuidado, essas não custavam nada, mas eram as mais caras da coleção.
As azuis eram as mais baratas, comprava-se em qualquer boteco de bairro. Lá estava o vidro cheio aguçando os olhos dos meninos. Entre o chiclete Ping Pong e as bolinhas, comprávamos estas. Elas garantiam a entrada no grupo dos demais meninos, todos com seus bolsos ou embornais cheios de gude. Alguns meninos maiores tinham de diversas cores, brancas como leite, transparentes e cheias de cores dentro e o acinho, este nos enchiam os olhos, vivíamos a cata de rolimãs antigas nas oficinas para retirar as cobiçadas bolinhas, boas para arrebentar as dos adversários.
Jogávamos no meio-fio, ali era o circuito dos meninos pobres, abaixados, de cócoras a jogar ou quando sem bolinhas a torcer pelos amigos. Mãos sujas, suados, bolsa escolar nas costas, íamos até nossas casas jogando e cada um se dissipando pelo caminho de acordo com que chegavam às suas casas.
Veio um menino transferido de outro colégio. Temido por todos, contavam que havia arrebentado a cara de vários meninos na outra escola, que era briguento, trazia canivete e era ótimo em ganhar bolinhas de gude dos demais meninos. Só jogava com bolinha de aço. Tinha força nos dedos e arrebentava a bolinha do inimigo que estava no meio fio, obrigando o outro menino a perder duas bolinhas ao mesmo tempo, pois tinha de pagá-lo.
Embora ninguém quisesse jogar com ele por medo, ninguém tinha coragem de dizer não a ele, já chegava com a mão fechada em tom de ameaça e não havia saída. O outro menino ia quase chorando para a sarjeta, sabia que perderia sua bolinha honesta ou desonestamente, pois o menino jogava de expulsão, esticando longamente a mão para acertar o outro gude, porém, ninguém tinha coragem de reclamar o desaforo, seria olho roxo na certa.
Nunca tive muitas bolinhas, o dinheiro, ou melhor a falta dele não permitia. Assim que vivia receoso de encontrar com o menino das bolinhas de gude pelo pátio. Enfim, não houve escape, um belo dia, alisando minhas poucas bolinhas no bolso da bermuda jeans, antiga calça que ficara curta e fora cortada pela minha mãe para aproveitar mais tempo a roupa, tenho o fatídico encontro.
Sem saída aceitei o desafio. Ele disse pode jogar primeiro. Colocou o acinho dele e eu já tremendo de medo em perder as bolinhas ou apanhar ali mesmo caso acertasse o gude dele, dei o tiro em falso. Sorriso no canto dos lábios, o menino baixou e acertou meu gude, além de espedaçá-lo, a cada tiro certo dele eu teria de pagar no outro dia dez bolinhas de gude. Tinha apenas cinco gudes, ou seja, ficaria devendo cinquenta gudes para ele. Em menos de cinco minutos tornava eu devedor do menino, que me ao término do jogo me avisou, te dou uma semana para pagar tudo, senão te acerto o olho e te deixo roxo.
Menino franzino, eu não ele, fui para casa tremendo de medo. Como contar para meu pai que ele teria de me dar dinheiro para cinquenta bolinhas, levaria um couro na certa. Por dois motivos, por covarde e por ter perdido, além da eterna promessa, se apanhar na rua e contar em casa apanha de novo. Não contei.
No outro dia, lá estava o menino na porta do colégio, ao me avistar já me lembrou: "Olha, faltam 6 dias". Para piorar o sorveteiro com dentes de ouro e chapéu na cabeça disse para o menino em tom de compadrismo, isso mesmo, se não te pagar acerta o olho dele, senti-me mais desprotegido ainda.
A cada dia que passava eu tremia mais, mudava de rua para ir à escola, ficava na sala de aula na hora do intervalo, ia embora pelos mais diversos caminhos, chegava tarde em casa, dava desculpas.
Enfim, chegou o fatídico dia. Fui para a escola tremendo. Contando os passos, as lajotas das calçadas, as pedras que havia no caminho, as flores das árvores, mas tempo é tempo e passou. Assim, cheguei à escola já esperando a surra prometida, afinal não tinha as bolinhas e o medo que tinha de meu pai fez-me preferir a surra, dupla pois chegaria em casa de olho roxo e no outro dia seria um panda, um porrada do menino e outra de meu pai.
Sem saída preparei o couro. Subi as escadas correndo e cheguei à sala de aula ofegante. Fiquei de castigo por ter chegado atrasado. Tive de ficar esperando no corredor o horário da segunda aula exposto aos perigos da porrada prometida. Deu horário, entrei na sala. Deu o sinal e não pude ficar na sala. Estavam roubando objetos das salas e agora todos éramos obrigados a descer. Minhas pernas tremiam. Desci ao pátio. Havia um clima diferente. Pensei que era o anúncio da porrada que ia levar.
Percorri os olhos. Enchi-me de falsa coragem e resolvi procurar o menino, com certa dificuldade pelo meu tamanho a ter de vencer os maiores no pátio, mas avancei. Melhor tomar a porrada de uma vez e me livrar do terror que vinha enfrentando há 7 dias, poderia ter dito que não pagaria, que não tinha como e levar a surra no mesmo dia, mas não sei por que fiquei sofrendo uma semana se já sabia que apanharia mesmo.
Avança a passos largos agora, era como se os outros meninos pressentissem o ataque, o covarde do meninozinho franzino pisava firme, pulava poças, esgueirava pelos cantos para chegar mais rápido. Abriu a clareira, todos se afastaram, chegou à sarjeta, ponto de encontro dos jogadores de gude.
Olhei para os lados e cheio de coragem perguntei. Onde está o menino do acinho? Ué, você não sabe. Foi preso hoje cedo, levaram-no para FEBEM. Mas por que? É que eu tinha um dívida com ele e vim pagar, trouxe o que ele havia me pedido. Então esquece ele não volta mais.
Aliviado fui para o banheiro, lavei o rosto e admirei a bola dos meus olhos intactas, meu olho não estava roxo. Podia ir para casa sem surra e dormir com o couro suave como pele de bebê.
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