terça-feira, 27 de março de 2018

Nudez

Vejo-te, assim, despida de teus "eus"
sem os costumeiros possessivos
de defesa e de dor.

Contemplo-te nua, despida de pele
e ossos, como uma leve folha balança
ao vento e diz ao tempo o mundo que tem.

E, assim, desejo-te ainda mais
livre de convenções e de regras
com a alma leve a balouçar
livre do corpo que te aprisiona.

Por isso, junto-me a ti nesta inevitável
religiosidade de gozo da liberdade,
que nos libertou de nós e dos nós
nesta conjunção única de visgo e sêmen
atando-nos por vontade das mãos que se prendem.

Também eu me perco nesta nudez
sem corpo, só alma, sem eu à frente
de um espelho a me mentir o reflexo
que de mim vi refletido na verdade
da água rasa de teus olhos.

Chuvas

A chuva derrama um manto escuro
e meus ossos anunciam dores
de águas futuras e lentas.
Não precisei contemplar a janela
adentrava ao cômodo uma luz amarela
e meus ossos reclamavam o colchão
no qual se estenderam ao longo da noite.
Chove dentro e fora de mim,
não reclamo nem da dor, nem da chuva
e abro a janela a novas estações
com os olhos em nuvem
e as juntas a gritar mudanças
dentro das articulações, que rangem
como cadeiras velhas.
Estiro as pernas ao alto das ilusões
e a despeito dos anúncios ainda tenho sonhos.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Marielle

Era o mar e ela
                       Mariella
o mar era ela
                    Marielle
Mariella, mar e ela
                             Marielle.
Era o mito e Ela
                         Marielle

O teu silêncio grita
como as ondas do mar.

Em tua voz subtraída à vida
ecoam séculos de escravidão
anos de resistência.

Sobre teu corpo inerte
emerge o mito
e o mito é eterno.

Era de novo o mar e ela
                                     Marielle.

Sobre teu corpo de nau
submerge sepultado para sempre
o grito dos opressores esmagados.

Mataram Marielle
a cidade não era Maravilhosa.
Os tiros reverberam ainda
nos ouvidos da multidão,
que em respeitoso adeus
desfila gritos de agonia
pelas ruas do Rio.

Mataram Marielle,
mas o maremoto de seu riso
escancara as portas do Eterno

para que passe, corpo fechado,
Marielle mulher, Marielle mãe,
Marielle deusa, Marielle angorô,

que se levanta do crânio partido
e de punho erguido
recebe de Zumbi o manto rubro
[ainda manchado de sangue]
e o cetro de Rainha, deusa do mar.

Era de novo o mar e ela
                                    Marielle.

Sua última nau em cortejo
não pôde com a frágil madeira contê-la,
porque o mito desconhece da morte
os seus grilhões e faz do que era o fim
o começo.
E o que antes era o pó, a sombra e o nada,
agora é o tudo, que oculto
tece além da sombra do vulto.






Egoísmo

O que ri em mim
não cabe na razão,
é dor e solidão
vem do tempo
de mãos dadas
projetos idealizados
janelas abertas
ao som do infinito,
quando o mundo
era pequeno demais
e eu não cabia em mim,
todo feito sonhos;
quando o obstáculo
era só um desafio
e tinha todo o tempo do mundo.
O mundo era eu
e o choro só escapava
quando contra o pé da cama
o dedo se esmagava.
Hoje, o que ri em mim
vai além da dor e da solidão.
Vem da falta de compreensão
de saber que meu mundo
era pequeno e que caber nele
é um esforço de ginasta
que as articulações enferrujadas
não suportam mais.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Os olhos

Os olhos são duas pequenas chamas
capazes de incendiar o corpo
e pôr à pique o maior dos navios.

Pelos olhos conhecemos novos portos,
mergulhamos oceanos bravios,
alcançamos ver os horizontes
e percebemos nossa infame finitude
diante do nada e do desconhecido.

Pelos olhos descobrimos nosso tempo
e aquilo a que chamam de efemeridade
ganha corpo e nos vemos diante do espelho
em realidade dura e inapelável
contra os juízos do sonho e da fantasia.

Depositados às portas da Eternidade,
aprendemos que havia outra chama
a devorar nossos dias, nossos sonhos,
nossa realidade agora desfeita
nessa figura de quase quadro,
que nos observa muda no espelho
numa cordialidade cínica de quem sabia
que também as chamas dos olhos um dia apagam.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Felicidade

Quando chegar, não bata à porta,
nem tema a indiscrição do horário,
sabia de sua vinda, estava à espera
mesmo desesperançado de seu dia.

Mas, eu estava certo, chegaria à sua hora
e me encontraria organizando os papéis,
tomando decisões, nem sempre as melhores,
à espera do tempo certo, capaz da indefinível

força de apagar o passado, de fechar as portas,
de tirar o pó dos livros deixados pela metade,
abrindo novos caminhos, traçando novas rotas,
dando formas a um futuro ainda desconhecido.

Antes, eu achava que estava só e lamentava 
a solidão repisada em palavras vãs,
pois, tinha a certeza de estar sozinho.

Hoje, eu sei que respira e anda por aí,
tem forma, tem história, tem um corpo,
que a vida se encarrega de conduzir.

Por isso, não espero mais, vivo o presente
e sei que dele o pouco que puder guardar,
em breve, será passado e memória
de quando eu acreditava que o tempo era lento

e que a Felicidade era um presente para os outros ,
que a sorte sempre habitava um número
antes ou depois do algarismo que a mim coube
no palco em que o Universo jogou sua loteria.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...