Pela manhã estava lendo Solitária, de Eliana Alves Cruz e logo nos primeiros capítulos há uma narrativa sobre o quarto, o quarto da empregada. Rapidamente, me dei conta de que moro em um apartamento onde alguns horrores podem ter acontecido. O prédio onde vivo é antigo e já teve sua época áurea quando foi construído. Com certeza os donos eram de classe média alta ou ricos, pois, todas as unidades têm um quartinho de empregada.
Agora, esse quartinho de empregada virou meu escritório. Tem estantes de metal com livros e o banheiro minúsculo se tornou um cômodo de entulhos, com malas, cadeiras velhas e alguns objetos inúteis. Pensei comigo: habito um espaço de opressão. Quantas histórias deve ter este quartinho? O piso é mais barato do que do resto do apartamento, há apenas uma janela e pouca passagem de sol, o que me obriga a ter a luz acesa até mesmo durante o dia. Quando é frio, é frio demais, quando é calor, sua-se de ter de se enxugar.
O quartinho dá para a entrada de serviço e para a lavanderia, logo em seguida vem a cozinha. Antes do livro não imaginava o que é um lugar de privacidade e de sossego para mim, já foi um lugar de tormentas para algumas empregadas ou babás, que foram obrigadas a conviver com seus patrões e deixar suas casas em segundo plano.
O prédio, embora esteja na zona 7 de Maringá, é decadente. As instalações estão ultrapassadas, o elevador vive travando, cada vez aguentando menos peso, as tubulações rompem e até o teto do banheiro de meu quartinho já desabou com a água que veio do andar de cima. O moradores também são todos uns falidos. Professores, velhos aposentados, estudantes universitários, alguns jovens casais que estão começando a vida, que até têm um bom carro, mas que não teriam como alugar um apartamento de 110 metros em outras região da cidade; então, o prédio acaba sendo um achado.
Alguns moradores antigos ainda guardam a arrogância da época em que foram patrões. Todos frustrados e comidos pela economia que a cada dia afunda mais. Tive problemas quando me mudei, será a cor de minha pele? Isso me ocorreu agora. No entanto, se acostumaram comigo e hoje me tratam bem. Tem até alguns moradores japoneses que se sentiam superiores, no entanto, são uns falidos, que vivem de saudades da época em que trabalhar no Japão ainda era lucrativo. Agora me tratam bem. É isso que sei. Minha presença deixou de incomodar e até me dizem bom dia ou acenam com a cabeça.
Voltemos ao quartinho onde habito com meus livros. É a parte da casa que mais frequento, dou aulas online, participo de reuniões, estudo. Será minha ancestralidade me chamando? A história de minha mãe, que foi empregada doméstica, reverberando em meus sentimentos? Não sei. Hoje, pela manhã, senti todo o peso que pode ter este espaço. Convivo com dores mudas, silenciadas por anos, antes de minha chegada. Muitas mulheres habitaram este quarto e em certa medida me acompanham no dia a dia. Estão aqui com suas frustrações, seus medos, com o grito do patrão em seus ouvidos.
O quarto me espreme e me lembro de alguns personagens que criei para o livro Condomínio Fechado, onde os moradores eram perseguidos e devorados pelo edifício. Sou eu que estou apertado agora, entre quatro paredes, no cômodo minúsculo onde habitaram mulheres sem futuro. Quero fugir, quero mudar, quero deixar para trás este espaço de opressão. Justo eu que já passei fome, agora habito um apartamento que guarda uma pequena senzala. Contradições da vida, racismo estrutural na geografia do apartamento. Não, não me sinto um privilegiado, me sinto um enganado pela história, que ocultou na arquitetura dos apartamentos um local de escravidão.
Um comentário:
Estou sem palavras, Weslei. Gostei do texto, mas sinto todo o infortúnio do quarto junto com você.
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