terça-feira, 23 de agosto de 2022

Sobrevivente

 Quero sobreviver ao amor

à paz

ao grito em meus ouvidos.

Vou sobreviver a tudo que me sobrevier

ao olho gordo do amigo

à praga da sogra

ao destino de professor,

à moça sonhada

na esquina de casa.

Vou sobreviver à memória

ao grito no silêncio

que me aponta os pecados.

Ao olhar de Deus que me vigia

ao anjo caído na sarjeta,

à prostituta na sua solidão.

Enfim, vou sobreviver a mim mesmo

vou me levantar e olhar no espelho e dizer:

Bom dia, te venci uma vez mais,

sobrevivi à noite em que me abandonaste

à deriva dos lençóis.


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Se eu te amasse

Se eu te amasse

meu amor seria simples

e brega como esta declaração de amor.

Seria como Charles amando Emma pela manhã

e eu diria, mesmo que só para mim:

A manhã traz com sua luz

teus cabelos que dedilho mansamente

para não despertar-te de teus sonhos.

A longa  noite da espera terminou,

posso ver teus olhos se abrirem

tua boca emanar perfumes de teus lábios

em rosa flor.

Tua pele contra luz que rompe as cortinas

faz-me desesperado por juntar-me a teu corpo.

Sinto que poderia olhar-te como a uma estátua,

desvendando os detalhes do cinzel do escultor.

Assim deveria ser meu amor

Assim, quereria meu último amor,

que por uma equação lógica,

seria também o primeiro:

Doce como teus lábios, 

puro como teus olhos da manhã.


terça-feira, 9 de agosto de 2022

Terça-feira

 Chove. Amanheceu chovendo e frio. Natural, estamos no inverno e o que estranha é o calor que tem feito todos esses dias. Fui ler para o encontro de amanhã. Terminei o livro, fiz reflexões e entrei no diário de Maura Lopes Cançado. À tarde irei ao banco, mudaram a conta de pagamento. Mais burocracias e perda de tempo. Queria a literatura, a inspiração, o texto limpo para alcançar os leitores. Nada sai, sinto-me um inútil e sigo escrevendo sobre mim. Algo mais inútil ainda. À tarde também lerei alguns artigos, os atrasados da disciplina. Pois é, sou professor e recebi textos com mais dois meses de atraso, deve ser isso, ou exagero no tempo. Ninguém mais nos respeita, se é que algum dia respeitaram. Queria a poesia, mas só chove, infelizmente apenas chove e nada acontece, mais tarde subirei as escadas e talvez as descerei, mecânico, prático, como um ser a quem o pensamento não importa. Por ora, continuo a leitura, chove e nada é mais natural do que fugirmos da rua onde podemos nos molhar. As roupas não secarão, os sapatos ficarão encharcados e um manto pesado e sereno cairá sobre meus ombros. É dia, logo mais tomarei meus remédios e tudo ficará sereno e calmo no mar das angústias. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Dia de segunda

Acordo às 7h00 com o despertador, tomo banho e faço o café. Abro as contas e vejo os reajustes, nada sobe no meu salário, mas as contas estão nas alturas, faz tempo que não sei o que é uma ereção matinal e tudo sobe, até as relações estão inflacionadas, cobram mensagens, pedem que eu diga I love you e que o amanhã não existirá sem elas. Abro um livro para mais uma punhetação acadêmica que ocorrerá na quarta-feira, deslizo pelas páginas em busca de uma face amiga, nada acontece, só o dia que passa, apesar e a despeito de mim. Sei que o dia será curto para tantas tarefas, hoje tenho reunião e vou ver gente feia fazendo cara de intelectual e que o tempo para eles é mais curto que para os outros. Gostaria de ter uma ereção, mas o telefone toca pela décima vez anunciando as vantagens do novo pacote de TV. 

domingo, 7 de agosto de 2022

O quarto dos fundos (ou a opressão das antigas senzalas)

 Pela manhã estava lendo Solitária, de Eliana Alves Cruz e logo nos primeiros capítulos há uma narrativa sobre o quarto, o quarto da empregada. Rapidamente, me dei conta de que moro em um apartamento onde alguns horrores podem ter acontecido. O prédio onde vivo é antigo e já teve sua época áurea quando foi construído. Com certeza os donos eram de classe média alta ou ricos, pois, todas as unidades têm um quartinho de empregada.

Agora, esse quartinho de empregada virou meu escritório. Tem estantes de metal com livros e o banheiro minúsculo se tornou um cômodo de entulhos, com malas, cadeiras velhas e alguns objetos inúteis. Pensei comigo: habito um espaço de opressão. Quantas histórias deve ter este quartinho? O piso é mais barato do que do resto do apartamento, há apenas uma janela e pouca passagem de sol, o que me obriga a ter a luz acesa até mesmo durante o dia. Quando é frio, é frio demais, quando é calor, sua-se de ter de se enxugar.

O quartinho dá para a entrada de serviço e para a lavanderia, logo em seguida vem a cozinha. Antes do livro não imaginava o que é um lugar de privacidade e de sossego para mim, já foi um lugar de tormentas para algumas empregadas ou babás, que foram obrigadas a conviver com seus patrões e deixar suas casas em segundo plano.

O prédio, embora esteja na zona 7 de Maringá, é decadente. As instalações estão ultrapassadas, o elevador vive travando, cada vez aguentando menos peso, as tubulações rompem e até o teto do banheiro de meu quartinho já desabou com a água que veio do andar de cima. O moradores também são todos uns falidos. Professores, velhos aposentados, estudantes universitários, alguns jovens casais que estão começando a vida, que até têm um bom carro, mas que não teriam como alugar um apartamento de 110 metros em outras região da cidade; então, o prédio acaba sendo um achado.

Alguns moradores antigos ainda guardam a arrogância da época em que foram patrões. Todos frustrados e comidos pela economia que a cada dia afunda mais. Tive problemas quando me mudei, será a cor de minha pele? Isso me ocorreu agora. No entanto, se acostumaram comigo e hoje me tratam bem. Tem até alguns moradores japoneses que se sentiam superiores, no entanto, são uns falidos, que vivem de saudades da época em que trabalhar no Japão ainda era lucrativo. Agora me tratam bem. É isso que sei. Minha presença deixou de incomodar e até me dizem bom dia ou acenam com a cabeça. 

Voltemos ao quartinho onde habito com meus livros. É a parte da casa que mais frequento, dou aulas online, participo de reuniões, estudo. Será minha ancestralidade me chamando? A história de minha mãe, que foi empregada doméstica, reverberando em meus sentimentos? Não sei. Hoje, pela manhã, senti todo o peso que pode ter este espaço. Convivo com dores mudas, silenciadas por anos, antes de minha chegada. Muitas mulheres habitaram este quarto e em certa medida me acompanham no dia a dia. Estão aqui com suas frustrações, seus medos, com o grito do patrão em seus ouvidos.

O quarto me espreme e me lembro de alguns personagens que criei para o livro Condomínio Fechado, onde os moradores eram perseguidos e devorados pelo edifício. Sou eu que estou apertado agora, entre quatro paredes, no cômodo minúsculo onde habitaram mulheres sem futuro. Quero fugir, quero mudar, quero deixar para trás este espaço de opressão. Justo eu que já passei fome, agora habito um apartamento que guarda uma pequena senzala. Contradições da vida, racismo estrutural na geografia do apartamento. Não, não me sinto um privilegiado, me sinto um enganado pela história, que ocultou na arquitetura dos apartamentos um local de escravidão.  



  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...