domingo, 3 de maio de 2020

Todos os seios de minha vida

Paulo Betancourt. Homem honesto, pai de família, três filhas, talvez uma amante mais séria ou outra no percurso, mas nada que o pudesse desviar dos santos caminhos que o Papa indicava a seus fiéis. Não tinha culpas, nem remorsos. Cuidara da família com esmero, as filhas estavam gordas e a mulher havia passado pelas mãos de alguns dos melhores cirurgiões plásticos do país. Ele mesmo implantara uns 500 ml de silicone em sua esposa. Algo que não fez sem certo interesse. 

Os seios agora fartos de sua esposa traziam prazerosas lembranças. Em cada uma das gravidezes os seios aumentavam, o leite jorrava abundante, as crianças mamavam até adormecer. Naqueles tempos tinha mais atração pela esposa. Os seios cresciam diante de seus olhos como duas luas cheias, brancas, leitosas, prestes a explodirem. Guardava para si essas manifestações com certo receio que a mulher percebesse.

Paulo em seus momentos conjugais tinha dois fartos seios em suas mãos e boca. Homem feliz, não havia por que se separar ( a mulher sempre engravidava). Algumas vezes se dava ao luxo de novos seios, todos eles cheios de leite. Interessava-se por mulheres que amamentavam. Como médico era fácil ter acesso a essas mulheres. Muitas delas estavam em depressão pós-parto, inseguras, achando que os maridos jamais se interessariam de novo por seus corpos. Ele as ganhava para si. Cheio de elogios, palavras doces e em duas ou três consultas, elas estavam em sua cama ou na maca do consultório mesmo. 

Eram meses de felicidade, em alguns casos, mais de ano. Aconselhava, de acordo com a OMS, que amamentassem por pelo menos dois anos. Tudo, porém, se acabava com o leite. O término da amamentação encerrava peremptoriamente seus casos. Sem palavras doces, nem argumentos, as despachava como se fossem cães de rua.

Nunca nenhum marido o procurou. As mulheres ainda com os filhos de colo não tinham coragem de contar aos esposos que se deitaram durante toda a amamentação com o médico da família. Além disso, Paulo jamais saiu com mulheres pobres, eram todas de classe média ou ricas, onde os escândalos vão para debaixo do tapete ou viram eternos segredos.

Paulo ficava cada vez pior. Tinha delírios, sonhos, às vezes, acordava alto da noite em prantos por algum seio perdido. Desde essa época, começou a ir à Espanha todos os anos. Vira uma notícia em um jornal velho sobre um tal de "mamaço", onde mais de quinhentas mulheres amamentavam ao mesmo tempo em uma praia. Não pensou duas vezes. Encontrou como desculpa um evento de médicos para aqueles dias em Mallorca. Foi sozinho, não levou a esposa, nem as filhas, que protestaram duramente. 

Hospedou-se em um hotel chique. Na noite anterior ao evento, Paulo bebeu, cantou, fumou charutos, quase se deitou com uma mulher de seios pequenos, mas em cima da hora desistiu. Queria estar limpo, puro para o dia seguinte.

Levantou mais cedo que todos os hóspedes, não tomou o "desayuno" e saiu apressado. Chegando à praia, o médico sentou-se em uma rocha, protegido por algumas folhas de palmeiras. Suava frio, tinha desejos indiscretos que à força de um falso pudor, desfrutava apenas para si. 

Paulo não queria chamar a atenção, olhava para os lados, verificou se o posto lhe garantia a segurança que carecia. Tudo estava certo, era esperar pelas mães que em breve deveriam encher a praia com seus rebentos entre os braços. E, realmente aconteceu, a praia começou a se encher com mulheres de todas as cores e idades. Os seios à mostra, todos carregados de leite, fartos, pesados, mas de uma elegância natural de que são portadoras as mulheres nesta etapa da vida. 

Logo, o médico percebeu que seus cuidados foram exagerados. Havia repórteres do mundo todo, curiosos, maridos, companheiros, companheiras, crianças e o prefeito da cidade, que fez um discurso antes. Os homens com algodão doce e pipoca faziam a alegria das crianças, o vendedor de refrigerante e água se instalou próximo à faixa de areia. Paulo estava seguro, podia ser mais um, um falso apoiador, um defensor da amamentação. Teve um brilho de nobreza rápido em seus olhos. 

Pronto. Estava tudo organizado. As mulheres (quinhentas, imaginem só) se sentaram à beira-mar e ali mesmo, com os dois seios à mostra cada uma, deram de mamar a seus filhos. Um espetáculo, uma enorme força da natureza brotava delas e lhe enrijecia suas partes pudendas. Paulo, o pequeno Paulo, sentia-se no céu, um ministro do Senhor, um homem sortudo por testemunhar tal exibição. Se pudesse seduziria todas. Eram tantos os seios que as imagens lhe chegavam embaraçadas. O médico acordou no hotel, cercado por pessoas e alguns socorristas, que atribuíram ao calor o mau-estar que o senhor sentira. Na verdade, fora emoção, uma tão carregada emoção que o levou a uma espécie de mal-súbito, um desmaio. Teria de voltar e estava certo que voltaria ali todos os anos de sua vida. 

O médico fez a viagem de volta ao Brasil embalado pelas imagens. Dormiu quase o voo todo, sonhando com os seios que vira. Ao desembarcar, estava eufórico, nem sequer o fuso-horário lhe tirava o ânimo. Chegou em casa, abraçou as filhas, beijou a mulher, trouxe presente para todas. Subiu rapidamente as escadas, tomou banho e avisou que iria de metrô para seu consultório. A mulher estranhou a excentricidade, mas resolveu não dizer nada. O marido estava com os olhos injetados que lhe deu certo medo.

Ele estava certo. No metrô havia mulheres com crianças de colo. Ficou observando e entrou no vagão onde algumas delas acharam espaço. Com os óculos escuros, podia observar sem ser visto. Não demorou muito até que uma delas tirou um dos seios para fora e começou a amamentar. A sensação que tivera na Espanha voltara violentamente ao seu corpo e todo ele tremia, quando do nada levantou um homem e foi furioso em direção de onde estava sentada a mulher.  "Puta"! Gritou o homem. "Como ousa amamentar aqui!" "Há homens, mulheres, crianças, sua descarada!". A mulher tremia sem saber o que fazer. Paulo levantou de um pulo, avançou para o homem e o estapeou com toda a força, quando ele caiu, o médico subiu sobre seu corpo e começou a esmurrá-lo, deixando-o quase desacordado, diante dos gritos das mulheres que o incentivavam, "isso, mata esse desgraçado"!!! Outros homens tiraram Paulo de cima do corpo inerte. Ele desceu na praça da Luz.

Paulo estava satisfeito. Ainda não localizara bem onde descera, mas estava feliz, eufórico, por ele teria matado aquele infeliz que, momentaneamente, lhe roubou a luz do dia. Tirou um cigarro do bolso e fumou, fumou, fumou até o sol arder-lhe nos ombros e ele despertar com o relógio da igreja anunciando a hora da Ave-Maria. Não chegou a ir ao consultório, precisava voltar para casa, jantar com a família, contar melhor sobre o "congresso". Inerte, voltou para para dentro do metrô e fez a viagem de regresso.

Em casa, tomou banho e desceu para o jantar. Não esperava pelos sogros, mas eles estavam ali e isso o livraria da caceteação de responder às perguntas da mulher. Estranhamente os abraçou, serviu um vinho para o sogro, um suco para a sogra e o jantar correu maravilhosamente bem. Todos se despediram, a mulher o olhou com os olhos agradecidos e ao mesmo tempo aflitos. Ela escondia algo, era certo, só não tivera coragem de contar durante a hora da ceia. 

Paulo subiu para o quarto e a mulher prometeu que assim que pusesse um pouco de ordem na casa, para o dia seguinte, subiria. Era certo que ela escondia algo e adiava o momento da revelação.

Não havia mais o que fazer e ela subiu como se escalasse uma montanha. Deu de cara com o marido ainda acordado. Sem escapatória, sentou-se ao seu lado e começou a falar mansamente: "Paulo, me escute, por favor". "Fale baixo, as meninas estão acordadas". "O que foi?" Por que todo esse mistério?" Você saiu com outro, por acaso?" "Antes fosse, Paulo!" "É pior!" "Lembra-se de meus exames de rotina?" Lembro.!" Pois é...aconteceu algo". "Estou com câncer no seio esquerdo, vamos ter de tirá-lo!" Paulo quase desmaiou, olhava para sua mulher como hipnotizado. Pensava: "Não, aquilo não podia ser verdade". Era fatal demais. No entanto, engoliu seco e falando baixo disse: "Eu te opero, nenhum outro homem porá as mãos em você".

Uma semana depois a esposa de Paulo entrava no centro cirúrgico. Lá estava ele, enlutado, viúvo em vida a esperar pela mulher. Tudo estava organizado; então, começou a fazer a cisão, o corte que mudaria suas vidas para sempre. Lembrava-se das vezes que colocara a boca naqueles seios, em que fora amamentado nas três gravidezes, seu mundo despencava. O seio da mulher, tirada a prótese de silicone, boiava sobre a palma de sua mão. Não foi feita a cirurgia reconstrutora. Por algum motivo que ele não compreendia, ela lhe exigiu isso para que a operasse. 

A operação, do ponto de vista cirúrgico, foi um sucesso. Em poucos dias ela estava em casa. Reinava um silêncio absoluto, o casal se media, mas não se falava. Era como se o seio que faltava tivesse colocado uma barreira entre eles. Paulo passou a dormir no quarto ao lado com a desculpa de que ela precisava descansar melhor. No fundo, horrorizava-lhe aquela imagem da mulher nua, com um único seio. O corte perfeito, a sutura certa, a cisão seria definitiva entre os dois.

Um ano passou-se e Paulo se tornou cada dia mais alheio à mulher. É como se não a visse, não a enxergasse, era como se ela fosse um vulto para ele, um ser inominável. Desta vez, viajou para a Espanha sem dizer nada, sem desculpas, sem congressos, estava livre, a mulher nada mais podia lhe impor. Chegou com um mês de antecedência a Mallorca. Se ele fez algo errado nunca nominou-se.

Naquele ano, de cuja memória não se há notícia certa, Paulo participou do mamaço. Sentou-se à areia, tirou os seios perfeitos que agora exibia e deu de mamar a um menino. Ele nada sugava, mas a sensação de estar ali, de ser reverenciada como uma igual, a levou ao êxtase. No calçadão, a esperava um espanhol típico, de seus cinquenta anos.

Ao final daquela tarde, Paulo morreu. Agora, Paula começava uma nova vida, sem mulher, sem filhas, só seu filho Juan de 2 anos e seu amor espanhol. Nas noites quentes de Mallorca agora é ela quem amamenta seu amor e exibe à lua seus seios brancos e leitosos que um dia lhe foram roubados. 


Um comentário:

Anônimo disse...

Genial!

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...