domingo, 17 de março de 2019

Mexericas

Sei que não posso dar tudo o que queres, porque sei também que a vida não te dará tudo o que desejares. É uma equação complicada de se resolver no coração, impor a ele a razão em vez da emoção. Teus pedidos ainda são simples, mas percebo que alguns deles eu não consigo cumprir e isso me causa uma frustração enorme. Mas também sei que se der tudo, estarei mentindo o mundo para ti. Difícil esta tarefa de Madre Teresa e carrasco ao mesmo tempo.

Pela manhã, comias mexerica. Antes, porém, passavas-a pelo rosto e admiravas a cor laranja da casca. Então, colocaste a mexerica diante de mim e falaste: tira a casca...e enquanto eu retirava os pedaços da casca, ias criando animais, bichinhos de estimação e realidades novas iam brotando dos fragmentos colocados sobre a mesa. 

Neste momento, pensei em todo o desserviço que fazemos às crianças dando a elas todos os brinquedos prontos, achando que com isso estamos agradando ou dando mostras de carinho. Há um universo na cabeça das crianças, elas criam mundos, tecem fantasias e são felizes com cascas de mexerica ou com o brinquedo mais caro que tenhamos comprado em uma loja. Do mesmo modo, rapidamente esquecem a ambos.

Os gomos ficaram para trás, espalhados pela toalha da mesa, eles não tinham mais importância, as cascas eram um mundo perfeito para teus olhos. Queria proteger-te das dores, das desilusões, das frustrações que o mundo te proporcionará, mas sei que não tenho tantas mãos e nem tantos olhos, sei que precisarás viver também, experimentar o mundo e saber que antes de comeres os gomos da fruta, terás muitas cascas para arrancar. Mas, isto, terás de aprender sozinha.

Experimentei esta sensação de impotência e culpa, porque também haverá vezes que a causa de teus sofrimentos serei eu mesmo, quando caíste do sofá pela primeira vez e imitando Gregor Samsa, que talvez nunca venhas a conhecê-lo, mesmo havendo mais de uma edição em minha estante, mexias desesperada, sem saber o que havia acontecido, as pernas e as pequenas mãos contra o enorme céu branco do teto do apartamento.

Ali soube que te machucarias e que estava longe de ser um mundo perfeito para ti e me culpei por dias, me impus um autoflagelo exagerado e uma semana de pedidos de perdão em teu ouvido, que ainda nem distinguia os sons da língua. 

Sei que estarei distante em muitas situações, que não poderei estar na sala de aula no teu primeiro dia da escola, que não poderei escolher teu namorado e por mais que eu possa achá-lo feio, para ti isto pouco importará. É...... a vida é feita de escolhas e logo perceberás que nem todas elas são as melhores e vais chorar de novo, talvez chupando mexericas em um sofá e com a sensação de que esta manhã já se repetiu algum dia no teu passado.

Não te lembrarás do teu mundo feito de cascas de mexericas, nem da manhã de domingo em que inocentemente criavas uma realidade própria e eras dele dona. Talvez tenhas o mesmo sentimento de frustração que tenho e perceberás que está crescida e que ligar para teu pai será apenas uma forma de compartilhar as dores, que são inevitáveis a todos nós.

Mas, por ora, chupes a tua mexerica, ela veio tão doce desta vez, que me arrependi de não ter pego dois pacotes...



2 comentários:

Unknown disse...

Muito verdadeiro. Parabéns!

Unknown disse...

Lindo texto! Estou vendo meu filho começar a descascar as mexericas. Não é fácil! Nem para ele, nem para mim...

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...