terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Quero ser John Malkovich - crônica

Lembrei-me desse filme esta noite. Mas, não dele propriamente. Lembrei-me de como ele nos fala das insatisfações humanas, do desejo de ser outro, de ter uma vida diferente da que temos, de como sempre há uma vírgula em nossos planos e de como nos seria bom, ao menos um dia, ter uma vida diferente; talvez ser John Malkovich, Brad Pitt, Cristiano Ronaldo, Kim Kardashian, Angelina Jolie ou qualquer outra celebridade, que tenha a desejada vida que acreditamos nos foi privada.
Quase todas as pessoas ao se levantarem olham as suas rugas, os pneuzinhos que se acomodam como boias salva-vidas ao redor da cintura, a calva que aumenta a cada dia, a estatura que parece reduzir com os anos, a barriga de chopp que está mais para um barril, os comprimidos de colágeno ou os azuizinhos no fundo da gaveta. Somos altos demais ou baixinhos, magros ou gordos, usamos óculos ou lentes, tomamos remédios para depressão ou triglicérides para contornar uma vida que jamais teremos.
Assim, imitamos um pouco a vida dos personagens de Quero ser John Malkovich. Estamos insatisfeitos com nossas escolhas, nunca fizemos a viagem que desejamos, não temos o carro do ano, nosso salário é menor que os dos vizinhos e eles sorriem em suas perfeitas vidas de Facebook e Instagram.
No entanto, todos nós somos, em certa medida, John Malkovich. Alguém também deseja nossa vida, nossas ilusões, nossa imagem pública de seres perfeitos e bem empregados.  Alguém admira em nós a coragem que para outros foi inconsequência, o vigor que para outros era mero exibicionismo, o homem de visão, que até ontem era considerado um avarento. 
Estamos enterrados vivos como diz Drummond: "É sempre no passado aquele orgasmo/é sempre no presente aquele duplo/é sempre no futuro aquele pânico". Por isso, ainda leio Drummond, quando falta inspiração ou falta uma melhor compreensão do mundo, volto ao poeta de Itabira e como me dói sua verdade de ferro e pedra. Ao mesmo tempo, vejo a grandeza dele em lidar quase com uma aceitação bovina a realidade disfarçada em poesia. 
É tarde e sinto que as ideias embaralham, já saí do filme e despenquei em Drummond, mas talvez aquele orgasmo no passado possa revelar o quanto temos daquele titereiro que um dia desejou ser John Malkovich e  explique a obsessão de ter a vida vigiada por câmeras de um reality show inexplicável, que aprisiona em uma casa vários desconhecidos em busca da fama. De certa maneira, eles honestamente assumem, em público, que querem ser John Malkovich.



Bom dia

Bom dia! Se puder sorria,
você não está sendo filmado
e uma nuvem de aromas
se desprende de cima do fogão,
anunciando a xícara quente de café.
Sorria, de bobo ou de alegre
pelo amor que com o dia vem
ou pelo amor que com o dia vai.
Mas... sorria! É dia e a noite
não nos assalta mais
com suas preocupações.
Bom dia! Porque sei que há
em algum canto do mundo,
mudo ou declarado,
alguém que nos quer bem,
que o coração vibra
e a boca sorri sem que entendam
o brilho de uns olhos acesos
ao tomar uma simples
xícara de café.

Caminhos

Não corras,
não te fatigues;
o caminho é longo
e cheio de obstáculos.
A linha de chegada
sempre será a mesma,
para o primeiro
e para o último.
Todos cumprirão o percurso,
vás de mãos dadas,
dividas um pouco de tua água
confidencies um par de pecados
e quando fores cruzar a linha de chegada
cuides para que te despeças
pelo menos um olhar
e fique registrado na janela do tempo
uma foto do breve sorriso que te foi a vida.

Becos

O horizonte
ou o beco?
Um amplo, largo
o outro pequeno, estreito.
Duas possibilidades
e duas ilusões.
O horizonte é o beco
de todas as probabilidades.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Atrasos

Quando nasci, ainda desconhecia
que havia chegado atrasado
ao palco das relações humanas.
Talvez, por alguns minutos,
talvez, por algumas horas,
mas o suficiente para selar meu destino.
Com o tempo, percebi que o atraso
era de décadas inteiras.
Acertei relógios, comprei agendas,
anotei compromissos e assinei acordos
sem saber que de saída estavam todos inválidos.
Meros atos retroativos de um tempo passado,
sem efeito legal, sem ativos a cobrar.
Assim, fui erigindo passados, fechando baús,
rasgando cartas, queimando fotos de eventos
nunca realmente vividos.
O meu desejo já nasceu no passado,
atrasado no tempo dos futuros planejados.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A menina com o livro nas mãos

A menina tem um livro nas mãos
e dormem sobre suas pernas
abertas ao meio, duas páginas
agarradas a um caminho desconhecido.
Os olhos contemplam o infinito
que as páginas inertes não alcançam.
A leitura míope das linhas,
que fluem intercaladas entre vírgulas,
não têm a força de reter em seu leito
a imaginação que sobrevoa uma floresta
inundada de sensações.
Olho e a menina ainda lê o livro
ancorado sobre o caminho de suas pernas.
Totêmica, sem saber, ela constrói rastros
sobre um mar vibrante de tonalidade turquesa.
Nascem desse gesto, histórias das antigas rotas
que me levam ao encontro da almejada Ítaca.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Rubem Braga, profeta

Minha relação com a literatura de Rubem Braga tem muitos anos. Vem da época em que eu era adolescente e frequentava a biblioteca pública da cidade de Palmital, no interior do Estado de São Paulo. Aquele Centro Cultural, com concha acústica, teatro e biblioteca era meu canto favorito da cidade, meu refúgio. Em uma dessas visitas, brilhou em frente aos meus olhos o livro Ai de ti, Copacabana! Na época como estava ficando meio crente, o livro me chamou a atenção pelo apelo quase bíblico do "Ais" do Novo Testamento.
No entanto, logo me identifiquei com o cronista porque ele não gostava de usar guarda-chuva. Se a memória não me falha, era uma crônica sobre o Chile e Braga sempre dizia tomar chuvas pelas cidade, pelo simples fato de ter ódio em carregar o apetrecho com seu aspecto negro e meio fúnebre. De cara ele me conquistou. Eu vivia a perder guarda-chuvas, por onde passava deixava um, que raramente me era devolvido.
Essa noite, quase uma da manhã, mais uma chuva em nossa cidade de Maringá. Todos os dias tem chovido, seja pela manhã, tarde ou noite. Confesso que à noite gosto do som da chuva para dormir, após contemplar o céu vermelho que anuncia as águas. Mas, em Maringá, estamos virando sapos nesse início de janeiro de 2018. Quando era criança, ouvia os mais velhos dizerem que se chovesse os primeiros doze dias do mês, teríamos chuva o ano todo, o que na visão deles, era ótimo para a agricultura. Por essa lógica, 2018 terá de uns 15 meses pelo menos e será o ano mais longo da breve história maringaense. 
Rubem Braga, sim, estávamos falando do cronista e seu livro profético. De novo, janeiro, chuvas, alagamentos no Rio de Janeiro, trânsito complicado, atraso para chegar em casa. Foi a época, porém, que os jornais davam o foco sobre essas tragédias quase naturais da cidade fluminense. Agora, a bola da vez é a violência. Que pena, Rio. Uma cidade tão bela, de praias, lagoas, Cristo Redentor, Bondinho, Aquário, Copacabana, Ipanema, Leblon, Arcos da Lapa, Botafogo, Flamengo, Jardim Botânico, Cinemas, poesia, suas universidades, uma quase morrendo, Teatro, Museu, música, samba e todas suas maravilhosas exceções.
Ano passado, há exatamente um ano estava no Rio de Janeiro. Uma semana de passeios, sol, praia, Cristo e tudo o que um turista adora. Já havia estado no Rio duas vezes, mas a trabalho, para o Encontro de Literatura Brasileira Contemporânea, na UFRJ. Na volta do evento, pegava o ônibus e cruzava todas as linhas até chegar a um hostel em Copacabana. O máximo que dava era para sentar um pouco na areia e tomar uma cerveja olhando o mar. Mas, estava valendo, era o Rio e pelo menos contemplar o mar era uma obrigação.
A voz de Rubem Braga continua a me incomodar, com seu Ai de ti, Copacabana! Em janeiro de 2017, passeei muito pelo Rio. Não vi nenhum arrastão, não ouvi nenhum tiro, nem vi nenhum assalto. A não ser pela televisão. Parece que a cidade me protegia em sua concha. Era chegar ao hotel, em frente à praça Cardeal Arcoverde, bem na boca do metrô, ligar a televisão e ver a Globo News noticiar mais um arrastão em Copacabana, que como turista, eu novamente via pela tela de um televisor.
Chamou-me a atenção a notícia de uma mulher grávida que levara um tiro, uma bala perdida, e o projétil atingira o bebê. Mãe no hospital, parto às pressas, recuperação de um, de outro, notícias boas, más e, por fim, a criança não resistiu. Ai de ti, Copacabana! Qual foi teu pecado? Que de horrendo fizeste para merecer tal castigo? Ano de 2018, janeiro novamente. Não fui ao Rio, estou trabalhando e, quando posso, contemplo a chuva pela sacada de meu apartamento, como fiz essa madrugada. Ai de ti, Copacabana! Os ais não cessaram em 2017 e mais uma mulher grávida, agora baleada na cabeça, passa por um parto às pressas e a criança está por morrer. Mais uma vez a história se repete. Onde estás, Rubem Braga? Por onde caminhas que não vês teu Rio, que continua lindo, mas violento demais? Ai de ti, Copacabana! A voz ainda ressoa e vou dormir, porque amanhã trabalho de novo.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Sobre olhos e janelas

Abro maquinalmente os olhos
como quem abre janelas,
porém, não há quase nada lá fora
que possa me interessar.
A despeito dessa mágoa cotidiana
tampouco encontro dentro de mim
algo de verdadeiro interesse.
Passam os dias, as semanas, os meses.
O calendário muda, o ano muda
só minha estátua em silêncio contempla
o trabalho invisível das horas.
Elas nada dizem do que sou,
desconhecem os meus medos e as fantasias
com que visto as manhãs.
As horas me devoram,
um relógio de pulso com suas lâminas
de tesoura irregular picotam momentos
enquanto uma fina ponta de segundos
tece passados, memórias e esquecimentos.
Também eu abro os olhos mecanicamente,
respondendo aos impulsos de um cérebro excitado
e devoro as horas numa fome intensa
por mais horas, por mais tempo, por mais vida.
Em 1979 abri a janela do tempo
desconhecia por completo o que havia dentro de mim.
Trinta e oito anos depois abro os olhos todos
os dias e ainda nada sei a respeito do que sou.
Mesmo assim, continuo a abrir janelas
para ver se encontro em algum canto do mundo
aquilo que perdi dentro de mim.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Fragmentos

Encontrei um facho de luz entre as estantes,
alguns pontos de verdade saltaram,
iluminando um certo passado meu.
Algumas placas de homenagem apontaram suas cabeças
e aos meus olhos armou-se o quadro negro
dos inícios do magistério e suas ilusões.
Uma foto 3x4 da época do serviço militar,
umas canetas , blocos de anotação e agendas velhas
que marcam compromissos sem a exigida pressa de hoje.
Nunca fui de guardar quinquilharias,
abri mão dessas heranças indesejadas de um tempo morto,
porém, algumas insistentes habitam cantos,
abrem espaços entre os livros e me espiam a vida passar,
esquecidas em meu passado,
guardando caminhos percorridos, projetos vencidos
e brilhos embaciados pelo tempo de novas necessidades.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...