Mudamos para cidade em 1972. Não
se pode afirmar que fora algo significativo. A diferença entre a fazenda de
café e a urbe Palmital estava nos paralelepípedos. No demais, carroças de rodas de madeira
abundavam pelas ruas. Havia algumas charretes com pneus, mas estas estavam
reservadas aos poucos abastados da então fracassada cultura do café.
Os raríssimos carros, então, eram
dos doutores, gente sem título algum, mas que a cultura caipira, com sua
condescendência exagerada, a consagrou como “dotô”. Era dotô fulano daqui, dotô
fulano dali e, assim, acomodava-se essa sociedade nascente fincada no meio do
cu do Judas, que este depois de ter traído a Cristo, só lhe consagraram o rabo
para os rincões perdidos do interior do país.
Lembro-me do bar do Bigode. Toda
Semana Santa havia pendurado no azulejo azul do estabelecimento um boneco: o Judas
com seu cigarro de palha. Nossos olhos brilhavam de desejo de espancá-lo e
rondávamos o bar até o dia em que ele era atirado à rua e os moleques todos da
vizinhança, armados de porretes, malhavam-no até não restar quase nada sob o
olhar dos frequentadores assíduos do boteco, que entre os goles de cachaça,
incitavam a molecada a arrebentar o boneco.
A garotada só entrava no bar para
comprar cigarros e pinga para os pais. Em geral, éramos proibidos de ficar ali.
Mas nos raros momentos que entrávamos, os olhos atacavam os doces e as demais
guloseimas com grande avidez. No entanto, não é por olhar que se come; e lá
íamos nós com o litro de pinga debaixo do braço e os cigarros para os homens
mais velhos molhar a boca e ficar contando vantagens na varanda de suas casas.
Brigavam, faziam as pazes e ao fim da noite vomitavam, lavando a área com os
restos da janta ou da bílis. Era o fim da festa e lá iam as esposas e filhos
mais velhos, já taludos, a carregar os filhos de Noé para cama.
Por essa época arranjei meu
primeiro emprego. Ganhava pouco, trabalhava muito e no final do mês meu pai
embolsava meu parco salário. Com meu irmão, nenhuma novidade, no primeiro
pagamento dele o velho pegou o dinheiro, enfiou no bolso e foi para a gafieira
gastar o mês de esforços de meu mano com putas, cachaça e cigarros.
Foi assim que aprendemos a
roubar. No dia do pagamento tirávamos uns trocados para cortar o cabelo, para
uma camiseta e até um doce que tínhamos namorado no bar o mês todo. Tornamo-nos
ladrões de nós mesmos, roubávamos para evitar a humilhação de ter de pedir
nosso dinheiro para nosso pai. Depois do cabelo cortado, da camiseta nova no
corpo, só restava ouvir-lhe os gritos, os copos atirados ao chão, acompanhados
da expressão de mágoa sentida do velho por ter dado à vida trombadinhas,
pivetes e outros coisas mais. Atravessado, o velho tomava o pagamento de nossas
mãos e afogava as mágoas na cachaça e no peito das putas.
E não é de tanto ser explorado
que se acostuma, por isso, a ocasião faz o ladrão, e nem mesmo sabendo que o
castigo é certo que se deixa de praticar o delito. Destarte, numa das idas ao
boteco comprar pinga e cigarro, resolvi atacar os sedutores doces; pendurei na
conta de meu pai doces de abóbora, batata, chocolate e um pequeno robô que
mexia as pernas quando posto em chão inclinado. Tinha por essa época entre 12 e
13 anos; pouco mais jovem que meu irmão.
Fui egoísta, não levei nada para
meu irmão, a menos sabia que o livrava da surra certa. Comi com pressa e avidez
e fiz mil artimanhas para ocultar o robozinho; tomava banho com ele, levava-o
ao trabalho, à escola e só brincava com ele na hora do recreio. Nem para meu
irmão contei como roubei o brinquedo.
A angústia crescia a cada dia;
sabia que mais cedo ou mais tarde meu pai iria pagar a conta e que minha páscoa
teria traços das encenações da paixão de Cristo.
O dia, enfim, chegou. Estava na
hora de pagar a conta dos doces e eles se tornariam bem amargos como as águas
de Mara. Meu pai chegou, conferenciou com minha mãe e me colocou na garupa da
rei Pelé. O silêncio reinou longamente pelas curtas quadras que levavam ao bar
do Bigode.
Descemos, os olhos do Judas
cruzaram com os meus; ele me ensinou a mentir, sem beijos, sem moedas, sem
cristos. Meu pai se pronunciou olhando para o botequeiro: “É este?” Ao que
ouviu um reprovador “sim”. “Por que fez isto moleque?” Engoli seco, quis
balbuciar que ele sempre me roubou, mas faltou-me fibra, apenas respondi: “Um
andante com saco nas costas – na época não se falava em morador de rua – obrigou-me a pedir fiado. Meu pai sabia que
era mentira, ele mesmo longamente escolado nas matérias dos judas pagou a
conta; pegou um facão e me fez acompanhá-lo pelas ruas atrás do famigerado
andante.
Claro, não encontramos ninguém. Mas
era parte do teatro; o olhar, a tensão, as mãos alisando a folha do facão, o
semblante orgulhoso de quem faria seu papel de corrigir o filho infrator.
Voltamos para casa. Almoçamos em silêncio. Fui mandado para o quarto, sem
direito a dar um pio. Ali, todas as noites dormíamos em quatro pessoas após a
morte de minha avó. Dali só sairia para o banheiro e fora-me ordenado que o
esperasse até o cair da noite, quando, enfim, receberia a correção.
O dia foi longo. Nem prazer tive
em desfrutar do minúsculo quarto só para mim. A partir das dezessete horas
qualquer barulho no portão me sobressaltava. Ali conheci um pouco do que Judas
devia experimentar nas horas que precediam à sua malhação.
Meu pai chegou. Tirou a camisa,
ficou apenas de calça e botina. Acendeu um cigarro e me mandou para o
galinheiro. No antigo jardim de minha falecida vó, devido suas superstições
antes de se converter ao protestantismo, havia as temidas espadas de São Jorge.
De lá o velho arrancou várias delas, colocou-me de quatro no chão onde ciscavam
as galinhas e desfez várias espadas em minhas costas.
Já magoado eu nem chorava. Também
estava decidido a manter a versão do andante de saco nas costas que me obrigara
a pendurar os doces na conta do velho. Após as espadas, percebi que deslizava
do cós da calça de meu pai o cinto. Nova chuva de pancadas, perdi um pouco a
noção das horas, mas sei que escureceu.
Fui levado novamente para o
quarto. O velho apelou para o sentimental, fez-se de coitado, quase chorou. Mas
minha indiferença o irritou, levantou-se, pegou-me pelas pernas e me pôs de
ponta cabeça; malhou meu traseiro com gosto. Desfrutei o prazer de não derramar
uma lágrima e fiquei até feliz com minha resistência. A lua se fazia em céu
alto; pude vê-la pelas frestas da pequena janela. Sentado na cama o velho me
fitava com o semblante raro e desconcertado; “Fala a verdade, confessa peste
dos infernos”. Mudifiquei ainda mais e só não o mandei se ferrar porque ainda
desconhecia a palavra.
Tentativa final. Agora levava
murros nos olhos e na boca. Engoli em seco e nem uma lágrima sequer caiu ao chão.
Já cansado e após inúmeros apelos de meu vô e das mulheres da casa, o velho
mandou-me deitar; não jantei nem tomei banho aquela noite; também não sei que
hora dormi, se sonhei, estes sonhos se apagaram.
Essa foi minha primeira páscoa na
cidade, ou devo dizer malhação do Judas; sem chocolates...ou
melhor....retificando...quase sem, afinal houve aquele em que me vi obrigado,
pelo andante de saco nas costas, a pendurar na conta do velho. Anos mais tarde,
com o velho já debaixo dos setes palmos que o guardem, compreendi a pergunta
dele ao botequeiro se eu era o comprador dos doces. Fora meu irmão oficial,
fiquei sabendo de mais gente. Será que ele teve páscoa ou apenas malhação do
Judas?
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