sábado, 19 de abril de 2014

VINGANÇA DO JUDAS...



Mudamos para cidade em 1972. Não se pode afirmar que fora algo significativo. A diferença entre a fazenda de café e a urbe Palmital estava nos paralelepípedos. No demais, carroças de rodas de madeira abundavam pelas ruas. Havia algumas charretes com pneus, mas estas estavam reservadas aos poucos abastados da então fracassada cultura do café. 

Os raríssimos carros, então, eram dos doutores, gente sem título algum, mas que a cultura caipira, com sua condescendência exagerada, a consagrou como “dotô”. Era dotô fulano daqui, dotô fulano dali e, assim, acomodava-se essa sociedade nascente fincada no meio do cu do Judas, que este depois de ter traído a Cristo, só lhe consagraram o rabo para os rincões perdidos do interior do país. 

Lembro-me do bar do Bigode. Toda Semana Santa havia pendurado no azulejo azul do estabelecimento um boneco: o Judas com seu cigarro de palha. Nossos olhos brilhavam de desejo de espancá-lo e rondávamos o bar até o dia em que ele era atirado à rua e os moleques todos da vizinhança, armados de porretes, malhavam-no até não restar quase nada sob o olhar dos frequentadores assíduos do boteco, que entre os goles de cachaça, incitavam a molecada a arrebentar o boneco. 

A garotada só entrava no bar para comprar cigarros e pinga para os pais. Em geral, éramos proibidos de ficar ali. Mas nos raros momentos que entrávamos, os olhos atacavam os doces e as demais guloseimas com grande avidez. No entanto, não é por olhar que se come; e lá íamos nós com o litro de pinga debaixo do braço e os cigarros para os homens mais velhos molhar a boca e ficar contando vantagens na varanda de suas casas. Brigavam, faziam as pazes e ao fim da noite vomitavam, lavando a área com os restos da janta ou da bílis. Era o fim da festa e lá iam as esposas e filhos mais velhos, já taludos, a carregar os filhos de Noé para cama.

Por essa época arranjei meu primeiro emprego. Ganhava pouco, trabalhava muito e no final do mês meu pai embolsava meu parco salário. Com meu irmão, nenhuma novidade, no primeiro pagamento dele o velho pegou o dinheiro, enfiou no bolso e foi para a gafieira gastar o mês de esforços de meu mano com putas, cachaça e cigarros.

Foi assim que aprendemos a roubar. No dia do pagamento tirávamos uns trocados para cortar o cabelo, para uma camiseta e até um doce que tínhamos namorado no bar o mês todo. Tornamo-nos ladrões de nós mesmos, roubávamos para evitar a humilhação de ter de pedir nosso dinheiro para nosso pai. Depois do cabelo cortado, da camiseta nova no corpo, só restava ouvir-lhe os gritos, os copos atirados ao chão, acompanhados da expressão de mágoa sentida do velho por ter dado à vida trombadinhas, pivetes e outros coisas mais. Atravessado, o velho tomava o pagamento de nossas mãos e afogava as mágoas na cachaça e no peito das putas. 

E não é de tanto ser explorado que se acostuma, por isso, a ocasião faz o ladrão, e nem mesmo sabendo que o castigo é certo que se deixa de praticar o delito. Destarte, numa das idas ao boteco comprar pinga e cigarro, resolvi atacar os sedutores doces; pendurei na conta de meu pai doces de abóbora, batata, chocolate e um pequeno robô que mexia as pernas quando posto em chão inclinado. Tinha por essa época entre 12 e 13 anos; pouco mais jovem que meu irmão. 

Fui egoísta, não levei nada para meu irmão, a menos sabia que o livrava da surra certa. Comi com pressa e avidez e fiz mil artimanhas para ocultar o robozinho; tomava banho com ele, levava-o ao trabalho, à escola e só brincava com ele na hora do recreio. Nem para meu irmão contei como roubei o brinquedo. 

A angústia crescia a cada dia; sabia que mais cedo ou mais tarde meu pai iria pagar a conta e que minha páscoa teria traços das encenações da paixão de Cristo. 

O dia, enfim, chegou. Estava na hora de pagar a conta dos doces e eles se tornariam bem amargos como as águas de Mara. Meu pai chegou, conferenciou com minha mãe e me colocou na garupa da rei Pelé. O silêncio reinou longamente pelas curtas quadras que levavam ao bar do Bigode. 

Descemos, os olhos do Judas cruzaram com os meus; ele me ensinou a mentir, sem beijos, sem moedas, sem cristos. Meu pai se pronunciou olhando para o botequeiro: “É este?” Ao que ouviu um reprovador “sim”. “Por que fez isto moleque?” Engoli seco, quis balbuciar que ele sempre me roubou, mas faltou-me fibra, apenas respondi: “Um andante com saco nas costas – na época não se falava em morador de rua –  obrigou-me a pedir fiado. Meu pai sabia que era mentira, ele mesmo longamente escolado nas matérias dos judas pagou a conta; pegou um facão e me fez acompanhá-lo pelas ruas atrás do famigerado andante. 

Claro, não encontramos ninguém. Mas era parte do teatro; o olhar, a tensão, as mãos alisando a folha do facão, o semblante orgulhoso de quem faria seu papel de corrigir o filho infrator. Voltamos para casa. Almoçamos em silêncio. Fui mandado para o quarto, sem direito a dar um pio. Ali, todas as noites dormíamos em quatro pessoas após a morte de minha avó. Dali só sairia para o banheiro e fora-me ordenado que o esperasse até o cair da noite, quando, enfim, receberia a correção.
O dia foi longo. Nem prazer tive em desfrutar do minúsculo quarto só para mim. A partir das dezessete horas qualquer barulho no portão me sobressaltava. Ali conheci um pouco do que Judas devia experimentar nas horas que precediam à sua malhação. 

Meu pai chegou. Tirou a camisa, ficou apenas de calça e botina. Acendeu um cigarro e me mandou para o galinheiro. No antigo jardim de minha falecida vó, devido suas superstições antes de se converter ao protestantismo, havia as temidas espadas de São Jorge. De lá o velho arrancou várias delas, colocou-me de quatro no chão onde ciscavam as galinhas e desfez várias espadas em minhas costas. 

Já magoado eu nem chorava. Também estava decidido a manter a versão do andante de saco nas costas que me obrigara a pendurar os doces na conta do velho. Após as espadas, percebi que deslizava do cós da calça de meu pai o cinto. Nova chuva de pancadas, perdi um pouco a noção das horas, mas sei que escureceu. 

Fui levado novamente para o quarto. O velho apelou para o sentimental, fez-se de coitado, quase chorou. Mas minha indiferença o irritou, levantou-se, pegou-me pelas pernas e me pôs de ponta cabeça; malhou meu traseiro com gosto. Desfrutei o prazer de não derramar uma lágrima e fiquei até feliz com minha resistência. A lua se fazia em céu alto; pude vê-la pelas frestas da pequena janela. Sentado na cama o velho me fitava com o semblante raro e desconcertado; “Fala a verdade, confessa peste dos infernos”. Mudifiquei ainda mais e só não o mandei se ferrar porque ainda desconhecia a palavra. 

Tentativa final. Agora levava murros nos olhos e na boca. Engoli em seco e nem uma lágrima sequer caiu ao chão. Já cansado e após inúmeros apelos de meu vô e das mulheres da casa, o velho mandou-me deitar; não jantei nem tomei banho aquela noite; também não sei que hora dormi, se sonhei, estes sonhos se apagaram. 

Essa foi minha primeira páscoa na cidade, ou devo dizer malhação do Judas; sem chocolates...ou melhor....retificando...quase sem, afinal houve aquele em que me vi obrigado, pelo andante de saco nas costas, a pendurar na conta do velho. Anos mais tarde, com o velho já debaixo dos setes palmos que o guardem, compreendi a pergunta dele ao botequeiro se eu era o comprador dos doces. Fora meu irmão oficial, fiquei sabendo de mais gente. Será que ele teve páscoa ou apenas malhação do Judas?

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