sábado, 18 de maio de 2013

Presente de Natal

Há alguns anos minhas primas fugiram para São Paulo. Era a época em que as pessoas acreditavam ser a cidade grande a solução para todos os problemas, seja de ordem sentimental seja de ordem material, esta última sempre em primeiro lugar.

O vazio deixado por elas, mesmo com as visitas posteriores, jamais foi preenchido no peito de minha tia. Restou a dor da separação e o sentimento de ter sido desprezada pelas filhas.

Após a morte de minha vó algumas mudanças ocorreram. Meu pai sempre à beira da miséria se viu obrigado a falar com meu avô e pedir arrego debaixo do teto do velho. Reconciliaram-se e mudamos nós quatro, minha mãe, meu pai, meu irmão e eu para um quartinho de frente para a cozinha que mal cabia uma pessoa, quanto mais quatro. Era o antigo quarto de mais um primo que fugira para São Paulo.

Detalhes à parte, meu irmão e eu nos divertíamos como era possível. Minha mãe fez uma bola de meia que chutávamos pela manhã e após voltar da escola, levantando a poeira do chão batido em meio à correria das galinhas. 

Meu pai não tinha dinheiro para comprar uma bola de capotão, que só tínhamos a oportunidade de chutar quando os meninos mais abastados da rua nos chamavam para jogar. Meu irmão jogava muito; ele e seu amigo Wagner eram os melhores driblavam bem, eram fortes, depois juntou-se Rogério ao grupo, ótima canhotinha e nesses momentos tínhamos acesso a tão cobiçada bola de capotão com seus gomos reluzentes a pedir que a chutássemos. 

Nesse período uma notícia alterou o ânimo de todos na casa de meu avô. Minha prima ligara de São Paulo para o serviço de minha tia falando que viria a Palmital para visitá-la. Mesmo em meio à dor, a alegria de rever a filha e nós a prima superou momentaneamente os problemas anteriores. 

Ainda naquela época tínhamos a ilusão de que ela estava bem. Que havia enricado como diziam, que tinha crescido, que sabia mais que nós interioranos caipiras. A visita dela foi esperada com ansiedade por todos. Comentava-se dela, abriram-se as caixas de fotos antigas, emprestou-se um colchão para acomodá-la num dos quartos, matou-se a galinha mais gorda do galinheiro e minha tia fez as compotas de mamão e doce de abóbora.

Ela chegou pela madrugada; venceu os primos menores pelo cansaço e pelo sono. Sabíamos que ela trazia presentes. Era perto do Natal, e trazer presentes significava que ela estava bem, que havia ganhado dinheiro. Não esperávamos presente de meu pai, sabíamos que estava falido, sem dinheiro algum, o que tinha mal dava para comprar a comida que punha em nossos pratos. Mas não o culpávamos por isso. Apenas pela violência dedicada à minha mãe.

Pela manhã a sondávamos como se fosse novidade. Ela dormiu até o meio dia. Nossos olhos corriam das caixas de presentes ao lado dela para ela, jovem, morena e bonita. Como se quem morasse em São Paulo fosse quase um estrangeiro, um ser superior. 

Percebemos que o presente era grande, pois a caixa denunciava o volume. Discutíamos entre nós que seria o brinquedo, enquanto as horas por ela dormida pareciam uma eternidade. De bruços, os cabelos negros escondendo o rosto a ressonar como se ainda fosse noite.

O fato é que ela acordou, foram abraços distribuídos a todos, comentários, contar tudo o que era São Paulo, sua vida imaginada e sonhada que anos depois descobrimos ser tudo mentira. Mas tampouco a culpamos por isso. Voltar para a cidade de que se saiu fugida e ainda com o rabo entre as pernas nunca é legal, mesmo que ela voltasse ao seu emprego na cidade grande depois. A menos vantagem tem de se contar. 

Enquanto isso presente ficava lá, gordo, à espera que nos fosse dado. A demora em distribuir os presentes parecia dar-lhe um ar de superioridade e também de prazer, de saber que todos ali à sua volta esperavam algo de suas mãos. 

Enfim, explodiram-se os pacotes, deles saiu uma carreta laranja para mim e uma vermelha para meu irmão, que pronto montamos e saímos empurrando pelo quintal a fazer brrrbrbrr com os lábios a disputar qual corria mais. Já nem olhávamos mais para a prima, que continuava lá contando suas vantagens. 

Hoje lembramos daquela carretinha com carinho. Sabemos que qualquer loja de 1,99 a tem. Mas na época cheirava à cidade grande e ao carinho da prima que há tempos não víamos. Mal sabia ela que não estávamos preocupados com seu sucesso, vê-la enchia toda a carroceria de nossas pequenas jamantas. 





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