sexta-feira, 22 de março de 2024

 Onde a poesia?

Desço a este inferno mudo das palavras

que se calam diante dos fatos.

Emudecidas estão diante do horror cotidiano

da fome, da violência, da política.

Onde o poeta?

Esse ser que se arrisca entre as ruas

tropeçando na indiferença das pessoas.

As avenidas são binárias

as ruas seguem um único sentido

e todos estão de costas.

Torço para que brote do asfalto uma flor

que gentil alguém abra a janela

e escute em sua homenagem uma serenata invisível.

As crianças estão engaioladas nos parques infantis

Não se escuta nas ruas os gritos ardidos dos pequenos seres de sonho.

Submersos estamos no pesadelo

ninguém mais contempla o sol amarelo

todos usamos filtros solares

e em cápsulas tomamos a dose diária de serotonina

todos sorriem encabulados

e dizem ser o Alzheimer a doença do século.

terça-feira, 12 de março de 2024

A orientadora

 Chegou em casa já tarde. O marido quase a enfartar todos os dias. A longa espera fez dela uma mulher amarga. Preparou uma sopa leve e pôs em frente ao esposo. Enquanto tomava banho, questionava a Deus por que tamanha cruz. Outras amigas fizeram bons casamentos, os filhos eram bem decididos, só ela ali naquela prisão. Aos finais de semana, postava fotos com o amado, não fossem as amigas desconfiar de suas tristezas. A mãe tentara lhe alertar: "esse homem é velho demais para você, minha filha". Mas, apaixonada, não ouviu ninguém, casou com orgulho, fez álbum de casamento, pagou filmagem e aos domingos, almoço em família, jogava na cara dos parentes sua felicidade. Nas rodas de amigas comentava, entre feliz e até surpresa, sobre o membro avantajado do marido e ao ouvir os "ohs, amiga", convencia-se de sua escolha. Agora isso, o marido imprestável há anos, dependente dela, sentia-se uma cuidadora de idosos. Na esperança de um acidente, aumentava os pedaços de pão seco que acompanhavam a sopa todos os dias. Ao menos se tivesse beleza; outras amigas tinham casos com seus orientandos, ela, porém, com seus 1,54, via apenas a possibilidade de usar sua autoridade acadêmica. Isso a amargurava ainda mais. Ser possuída com o aluno de olho na banca de defesa lhe reduzia a estatura. Tinha pequenos prazeres, perseguia mansamente os colegas no trabalho, fazia denúncias, insinuações, colocava o tapete para os pés daqueles que estavam no poder e, assim, deixavam-na ter alguns cargos sob a ilusão de que era necessária. Nas redes sociais, a imagem empoderada, em casa, o marido quase a precisar de fraldas. Quantas vezes não limpou o vômito do esposo após a janta? Do banheiro ouviu a tosse seca que vinha da cozinha, aumentou o jato da ducha, ensaboou-se lentamente e quase com lascívia tocou seu corpo, não cabia a ela intervir no caminho natural da vida. 

sexta-feira, 1 de março de 2024

Convite à minha cama

Podias estar aqui em minha cama

macia

lúbrica

lasciva

molhada entre meus dedos.

Por que preferes a memória

se meu corpo queima

e deseja tuas carnes possuir?

Que delícias teríamos

se abertas as tuas pernas

me recebesses para contigo

nos deitarmos nesse mar

de ondas convulsas.

Tomaria teus seios

e me amamentaria em tuas veias

ouviria teus uivos misturados aos meus

se na minha cama te deitasses

e com dedos, língua e pênis te penetrasse.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...