sábado, 30 de dezembro de 2023

Ano novo

Quando tinha 7 anos

o Réveillon era um evento.

Ganhávamos do dono da mercearia

uma garrafa de vinho suave

e um calendário de santo

que mamãe pendurava atrás da porta.

Sentávamos em frente à televisão

e juntos, quase de mãos dadas,

aguardávamos a queima de fogos de Copacabana.

Logo cedo, o frango cheirava no forno,

às vezes um pedaço de pernil também,

o macarrão e a maionese acompanhariam o almoço.

Não, o mundo não era perfeito,

mas tínhamos a vida toda pela frente

e nos permitíamos sonhar.

Hoje, o ano novo, não é tão novo mais,

ganhei a consciência dos calendários,

as relações se complicaram

e o tempo escorre entre meus dedos.

Num súbito ato de rebeldia

ainda posso estender as mãos

nem tudo está no quadro da memória.

Diante de meus olhos meio cansados

uma menina de 7 anos devora cerejas

e sonha uma vida inteira.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Alegria

 Gostaria de dizer como o poeta

"Que meu verso é minha cachaça",

mas tomo vinho e cerveja

e ainda assim o mundo não me turva.

Todo mundo tem sua alegria e sua tristeza,

de rir aos quatro cantos,

de chorar aos prantos.

Embora o verso não me console,

escrevo como se o dia fosse noite

e a noite uma cama de alegrias.

Meu verso é antigo

venho de outras épocas

quando ainda a internet

não vendia tanta gente feliz.

Ser triste ficou fora de moda,

coisa de gente depressiva,

não rende curtidas nem seguidores.

A tal ponto é insana essa onda de alegria

que até eu tenho uma psiquiatra.

Até eu, oh Judas, tomo minha risperidona.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Pôr-do-sol

Atirei-me ao mar

como me jogasse em teus braços.

As ondas cobriram meu corpo

batizando-me nessas águas antigas

que sepultaram tantos homens.

À beira do mar, contemplei o horizonte,

imaginei navios onde havia apenas luz.

Respirei descobertas, tempos remotos

me incendiaram os olhos.

Sonhei um mundo inaugurado pelas águas

e, no entanto, éramos o mar e eu

fechados na imensa solidão da praia.


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Madeleine

Pão francês é a minha tentação. Levantar-me cedo, ir à padaria, apreciar os pães na estufa, é um percurso particular e único. No caminho, as reflexões ganham contornos. Olho os prédios, as árvores, as ruas com seus automóveis, aspiro o ar da manhã e me sinto vivo.

A garrafa de café que ficou sobre a bancada da cozinha, à espera de minha volta, é outro prazer. Preta e com flores brancas, acompanha-me há anos. Gosto desses objetos duráveis, eles tornam a paisagem doméstica em algo familiar. 

Com a sacola de pães, na mão esquerda, enfrento as ruas. O homenzinho verde abre espaço para eu atravessar as faixas brancas que engravatam o asfalto. Cruzo com pessoas que mal se dão conta de minha existência, presas que estão a seus mundos particulares. 

Não mão direita carrego o celular e as mil possibilidades de fotos que ele guarda. Rastreio a realidade em busca da captura ideal. Os ônibus lotados levam as pessoas para o trabalho. Rostos cansados espiam as janelas, homens e mulheres varrem calçadas, sobem portas, limpam balcões e alimentam sonhos.

Lembro-me dos pães na sacola e o prazer que me prometem. O dia não está para poesia. Então, acelero o passo, guardo o celular no bolso da bermuda e sigo para meu apartamento. Uma moça passeia com seu cachorro do outro lado da calçada. Com ela, as possibilidades de uma vida são guiadas pelas patas de seu fiel amigo. 

Entro no apartamento. A sacola de pães ainda em minha mão esquerda protagoniza a espera de um outro prazer. Lembro-me de um velho costume: deixar o saco de pães dentro da sacola para que não estejam duros à tarde. Acomodo o pacote sobre a bancada e em pé tiro o primeiro pão. Mordo-o sobre a cuba da pia, sem manteiga mesmo. Depois, dirijo-me à porta da área de serviços e, encostado ao batente, devoro o restante do pão.

O celular toca e me chama de volta à realidade. A oficina quer saber o que precisa ser feito no carro. Logo eu que não sou mecânico!




Biografia

 Ali vai um homem

preso às humanas vestes

meio mortal, meio imortal.

Ora acredita em vida eterna e em Deus,

ora o diabo é uma invenção para assustar criancinhas.

Não acredita em céu ou inferno.

Com os ossos envolvidos em humana carne

tem a figura apreciada entre alguns iguais.

Carrega histórias,

algumas dignas de nota

outras nem tanto.

É um homem que, com os anos,

passou a andar devagar,

despindo-se lentamente de suas carnes,

deixando os ossos à posteridade

e alma à eternidade.

Que façam bom proveito dela. 


  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...