segunda-feira, 3 de julho de 2023

Lembranças

 São 6h30 da manhã. Acordo antes de o despertador tocar. Ouço o canto de pássaros que deveriam estar em minha janela. Desconfio que estão presos em uma gaiola no prédio ao lado. Lamento a sordidez humana que não sabe apreciar o dom da liberdade. Os pássaros foram os últimos seres a morrer no dilúvio. Resistentes voaram por dias, dormiram nas mais altas copas das árvores do planeta e quando as águas chegaram, refugiaram-se nas montanhas. Ainda cantavam, mesmo molhados e com frio. Quando as águas subiram demais e as montanhas sucumbiram ao dilúvio, os pássaros novamente voaram anunciando o fim do mundo. Por dias foi possível ver os pássaros nos céus do planeta. Próximos de Deus, logo chegariam aos portais dos céus, que derramavam suas águas sobre a terra, naquele momento mais líquida do que sólida. Logo, Deus se lembrou de Babel e da arrogância humana, veio-lhe à memória os anjos que do céu caíram por ousarem o mais alto trono da divindade e novamente com medo, o grande espírito que já pairou sobre a face das águas, quando a terra ainda era vazia e sem forma, de um só golpe ceifou milhões de pássaros. Caíam do céu, como as águas do dilúvio, pássaros de todas as cores e tamanhos. Por sete dias, as águas ficaram coloridas de penas, uma tela de horror tingiu a face das águas e novamente só o espírito de Deus voava sobre o mundo desfeito. Em poucos dias, o cheiro pútrido dos pássaros alcançou os céus e abrandou a ira de Deus. Noé de sua embarcação queimava estrume para incensar o ar que se tornou insuportável. Na arca os pássaros soltavam seu lamento pelos irmãos mortos nas águas. Noé se alegrou com o canto e sacrificou alguns animais a Deus, não fosse o Senhor irar-se pela falta de gratidão humana. A fumaça subiu aos céus e o Senhor, depois de dias que águas já não mais desciam dos céus, lembrou-se do homem preso em sua embarcação. Era hora de começar a secar as águas e dar um pouso à sua semelhança na terra. Noé soltou uma pomba, mas esta foi negada por Deus ainda desconfiado das intenções dos pássaros, ela voltou para a embarcação sem notícias de vida no orbe. Dias depois, Noé soltou outra pomba e esta, perdoada por Deus, voltou trazendo das mãos do Senhor um pequeno ramo verde. Era símbolo da reconciliação de Deus com os pássaros. Noé tomando o ramo verde como símbolo da aliança de Deus com os homens, quebrou o pescoço da pomba, derramou seu sangue no chão da arca e ofereceu ao Senhor seus louvores. As aves, presas nos gaiolões da arca, entraram em alvoroço e cantavam desesperadas, claro que por falta da humana voz para protestar. Noé regozijou e tomou aquilo como mais um sinal da benção de Deus. Navegou feliz por dias e pensou: quando descer à terra, farei gaiolas para que as aves cantem dia e noite para Deus como sinal de agradecimento por nos ter restituído a vida cotidiana. Mandou mais uma pomba, que Deus não viu a diferença por ser branca também e novamente lhe devolveu com mais ramos verdes. Era o fim do dilúvio e o homem poderia habitar a terra e fazer tendas e fazer festas e coabitar novamente longe dos olhos dos animais. No primeiro dia em terra, Noé construiu inúmeras gaiolas para abrigar os pássaros saídos da arca, acreditou assim garantir a reprodução primeiro, soltaria apenas os filhotes que as aves dessem, as demais ficariam presas para enfeitar seu jardim. Para ter privacidade com suas filhas, Noé cobria as gaiolas toda a noite e coabitava em festa. Meses depois com a vinha dando frutos, Noé fez o vinho e se embriagou. Cam desta vez cobriu as gaiolas e coabitou em paz. De lá para cá os homens têm feito gaiolas e prendido os pássaros. Inúmeros concursos de canto foram feitos pelas associações de criações de aves, que exibiram seus pássaros a outros humanos que não compreenderam o lamento das aves e lhes deram prêmios pela voz canora. Meu avô tinha gaiolas. Lembro-me de um pássaro em especial. Um periquito azul, que meu avô tirava da gaiola e o acariciava em suas mãos. Passei uma temporada na casa de meu avô. Logo ganhei tarefas e uma delas era trocar o alpiste e a água das gaiolas todos os dias pelas manhãs, cuidar para que os pássaros não fugissem e limpar as grades da prisão. Assim como meu avô, me afeiçoei ao periquito azul e com as mãos o tirava da gaiola, até que um dia, confundindo o azul do céu com o azul do periquito imprimi-o contra a abóboda celeste e o vi misturado à tela divina. Nunca mais vi o periquito azul, me foram proibidas as demais gaiolas, mas toda tarde eu olhava para o azul do céu e imaginava quando foi que o homem teve a ideia de fazer gaiolas para prender os pássaros. Nunca mais ouvi a voz de Deus. Alerta: esta história não é sobre meu avô, é sobre pássaros, não suporto gente que tem gaiolas. Provavelmente, não suporte meu vizinho do prédio ao lado que às 6h30 da manhã tira o pano das gaiolas para os pássaros cantarem. 

3 comentários:

Thay disse...

Maravilhoso, queria saber qual o segredo pra esse talento 😍✨️

Luzia disse...

"A arte é um instante de eternidade e perfeição". Parabéns, Weslei! Você é verdadeiramente um artista!

Loide Nascimento de Souza disse...

Belíssima paródia do texto bíblico, Weslei! Criação literária dessa qualidade é só para quem tem vocação! Sensacional!

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...