quarta-feira, 28 de junho de 2023

Pássaros

É manhã

e ouço pássaros

desconfio que cantam da gaiola.

Sem dia nem noite

interrompidos por grades

pássaros lamentam a pequenez humana

que brinca de ser Deus.

Condenados por sua beleza

pela leveza de seu canto julgados

pássaros agonizam em gaiolas

aos olhos do cruel ser humano.

Que manhã triste!

Que dia horrendo!

Ter seu canto sequestrado

pela maldita mão humana. 


terça-feira, 27 de junho de 2023

Margens

 À margem de mim

suspeito muitas coisas

velhas certezas se acabaram,

floresceram novas esperanças

e a água na boca

é o reflexo das horas insones.

Queria saber como é deitar-me às tuas costas

e na contraluz da janela ao amanhecer

ver teu despertar.

Beijo-te as pálpebras

e vejo leve a borboleta nascer. 

Tem mil olhos

e eu só tenho você.


Amanheceres

Amanheço

deixo atrás de mim sonhos

fantasmas de outras vidas

que encarno todas as noites.

A cama ainda quente

guarda segredos

que os sonhos acalentaram.

Minha mão treme.

O café quente

a janela entreaberta

há olhos que me espreitam

e uma mulher me diz "bom dia". 

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Contemplação do Rhône

O Rio de verde esmeralda 

silencio em meu peito.

O olhar único

é a experiência divina

de quem se encontra uma única vez

no breve tempo do adeus.

O rio, o meu rio Rhône, é só meu,

ninguém me tira este instante

em que suas águas

correram diante de meus olhos

qual os minutos correm incessantemente 

na foz do tempo.

O rio, este rio que contemplo

é meu e canto e danço

respirando o vapor de suas águas. 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Bate-Seba e Davi

Nua oferecia-se ao sol

deitada em sua espreguiçadeira.

O gato ronronava mistérios,

os pombos arrulhavam tristemente. 

Jovem rei, já de mulheres servido,

passeava pelo pátio do castelo,

quando seu olhar, mais quente que o sol,

abrasou a pele de Bate-Seba.

Aquecida pelo olhar antecipava volúpias

que os brancos lençóis revirados no futuro

cantariam a traição de Davi.

Sou tua, és minha,

o sino do coração bateu no peito de ambos amantes.

Às costas de Urias, Davi e Bate-Seba

praticaram diante dos olhos do Senhor

o famoso adultério.

Davi era Rei, Urias era servo,

Bate-Seba escolheu o Rei

e deu a seu futuro filho,

não o primeiro,

o trono de de Israel. 

Urias, no campo de batalha, morreu.

Davi, livre, mandou buscar Bate-Seba

que já lhe era mãe de seu filho.

Casal feliz, sem saber dos desígnios do Senhor,

deitava em brancos lençóis a derrota de Urias.

 Porém, Deus ciumento de seu escolhido,

pediu a conta do adultério

e mesmo com vestido de pano de saco

e cabeça coberta de cinzas

Deus retirou de Davi a promessa do filho amado.

Porém, Davi era Rei e Urias era servo.

Pouco tempo depois, revirando novamente lençóis,

aos olhos das esposas preteridas,

Bate-Seba anuncia nova gravidez,

não lhe escapasse o marido conquistado por falta de filhos. 

Davi era Rei e Urias era servo,

jamais seria tão longa a ira de Javé. 

Novo filho, novo reinado,

o casal feliz, contas pagas ao Senhor,

ofereceu a Israel o jovem Salomão,

Rei sábio e de muitas mulheres

encobriu o pecado do famoso pai,

apagou a história da mãe,

afinal Davi era Rei e Urias era servo. 




quarta-feira, 14 de junho de 2023

Manhã de sábado

A casa ainda dorme no silêncio. Os cômodos estão vazios e alguém ressona no quarto ao lado. As cortinas estão fechadas, guardando o quadro azul para mais tarde. Por ora, me movo a passos leves pela cozinha com medo de acordar a menina. Com ela virão os risos, as brincadeiras, os desenhos. Adio este momento tão certo, essa rotina que se inaugurou há sete anos. Gosto do silêncio também, de olhar para as paredes mudas e para o sofá vazio. Crio a expectativa, sei que ela vai acordar em poucos instantes, mas vivo este momento de solidão. Logo as caixas serão abertas, os potes de massinha espalhados pelo chão, a televisão repetirá o desenho de todos os dias e as cortinas da sala serão escancaradas para a luz do sol brilhar. Gosto destes momentos de cinza e silêncio, me reconstruo à espera dela que abrirá as feridas do tempo, que mostrará minha previsibilidade em dar-lhe o porto que precisa para atracar. Ela ampliou meu vocabulário e inseriu nele a palavra pai, esta palavra tão dolorida, esta nova fase da vida, que vem sem manual de instrução. Ainda me acostumo a esta nova realidade que perdurará, sei, até meus últimos dias. Se fumasse, acenderia um cigarro. 

Palavras

Vou escrever porque a palavra existe

e com ela coloco os pingos nos "is".

Porque falo, sei-me homem

digo te amo, mas também te odeio.

Posso ser ingênuo

pilantra e falador.

Tudo a palavra me dá

e mesmo quando estou calado

penso com palavras.

Com as palavras toco teu sexo

e digo que é amor.

Habito um mundo de palavras

de etiquetas, bulas e provérbios.

E por que quando escrevo 

me faltam palavras?

Se elas estão todas lá

adormecidas, aguardando

que alguém as tire da caixa

e como o espírito de Deus paire sobre as águas?

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Dor

Abro os olhos

e ouço o primeiro golpe do coração

a abrir as portas da vida.

Pulso e tudo é vida e dor

que irradia o sol em minhas retinas.

Sei-me vivo

sei que ainda não cheguei ao pó.

O tic-tac nervoso das hastes 

dessa pedra pendurada na parede

ainda não pôde

me dar o golpe final. 

Balanço

Não te esqueças

que vivi.

O que resta aqui

é o resultado

de uma lenta decomposição

incapaz de traduzir o gozo,

mesmo que efêmero,

que gozei na vida.

Esta, infelizmente,

é a última cama em que me deito,

que por despeito

está fria e vazia. 

Aos 40

Há uma tragédia que se anuncia

no andar de um homem

aos quarenta anos.

Algumas feridas

[amorosas quem sabe]

uma unha encravada

os triglicérides um pouco altos,

meia dúzia de amores não confessados.

Por que ainda bate no peito

o coração desesperado?

Por que ainda manda mensagens de amor?

Se o que cabe é a carta do suicida?

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Corpos

Corpos se insinuam pelas ruas

com seus segredos e encantos.

Com quem se deitou 

a menina na esquina

ou o rapaz na faixa de pedestres?

Cada corpo carrega outros corpos

pedaços de braços e pernas

que os entrelaçaram no escuro.

Sou eu e sou outros corpos

a se adivinharem em mim.

Em que corpo perdi minha alma?

Em qual esquina deixei de ser eu?


  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...