quarta-feira, 22 de junho de 2022

As cartas que deixei de enviar

Houve um tempo em nossas vidas que era lírico o mandar cartas. Agora mandamos mensagens de Whatsapp, áudios, vídeos nossos e alheios e perdemos a conexão verdadeira com o mundo e com as pessoas. Pela manhã, recebi um vídeo do Tik Tok com uma carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector e fiquei pensando como estamos vazios de conteúdo hoje em dia. O texto é lindo e nem parece que era uma carta, mas tinha sentimentos pungentes.

Lembro-me de na minha juventude ter mandado algumas cartas. Ainda era a época em que não havia esses aplicativos de mensagens e, então, recorríamos aos correios para enviar nossas correspondências. Isso foi um curto período, porque logo vieram os celulares e com eles começamos a mandar mensagens. Antes, porém, troquei alguns e-mails. Em substituição à carta havia a velocidade do correio eletrônico. Ainda era algo semelhante à carta. 

Veio-me à lembrança agora da longa correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa. Os sentimentos eram puros à medida do possível. Trocavam experiências poéticas, impressões sobre o mundo e deixou-nos a dúvida se havia ali um sentimento de amor platônico, algo que não precisava ser físico para ligar os dois. 

Pode ser saudosismo este o se lembrar das cartas. Pergunto-me, porém, quando teremos novamente intelectuais trocando cartas, debatendo ideias, movimentando o mundo com seus pensamentos profundos? Como fazer isso no Whatsapp? Impossível, fomos invadidos pela rapidez, pela pressa das mensagens que ficam com pontos azuis na tela e se demoram a nos responder, já ficamos irritados. 

A carta nos dava o tempo de pensar, refletir, amadurecer as ideias, ter raiva, ódio, amor, perdão e depois responder ao interlocutor. Tínhamos o tempo íntimo para sentar à luz e responder ao nosso amigo, amiga, amor ou simples paixão. Era o tempo da espera, do questionamento: será que minha carta já chegou? Terei resposta em breve? A pessoa mudou de endereço? A carta encontrará seu destinatário?

Os serviços de correio hoje são para entregar contas, correspondências de bancos, compras que fizemos pela internet. Há anos não vejo uma carta pessoal na mesa do condomínio. Todos os envelopes são de mala direta, de bancos, empresas, associações de caridade, sindicatos e o que mais houver de impessoal.

A carta era íntima, vinha selada, tinha as letras do remetente. Desde o envelope fechado havia as marcas de quem nos escrevera. Havia, depois, a ansiedade em abrir o envelope, desdobrar o papel, ler e reler naquela intimidade das letras o que nosso correspondente nos queria falar. Sem dizer que receber uma carta era sinal de que alguém se importava conosco, que no mundo alguém se lembrara de nós e tirou um tempo para nos contar o que estava vivendo.

Esse tempo das ausências foi embora. Fomos devorados pela pressa e pelo desejo de comunicação rápida. Somos seres irritadiços, tristes, ansiosos. Antes cozinhávamos o tempo em dias, semanas, meses, até que a carta nos encontrava em nossas casas. E era uma alegria ver uma carta sobre a mesa a nos esperar. 

Não pedirei que ninguém me escreva uma carta, o tempo dos papéis arrancados às folhas de caderno já passou e com ele nos tornamos seres digitais. Provavelmente, mais rasos em nossos relacionamentos que exigem o "eu te amo" delivery. Sou de uma outra época, sou de um outro tempo, perdido no século XXI; ao menos tenho o prazer de dizer que mandei cartas e as cartas que deixei de enviar, ficarão todas em minha mente à espera de um tempo que não volta mais. 



quarta-feira, 15 de junho de 2022

Toada da boa morte

A fome vem a galope

neste país em crise.

Pessoas morrem todos os dias

e não julguem que pelas causas naturais.

Morre-se neste país por injustiça

dos governantes.

As bocas estão abertas

para tragar os inocentes,

crianças, mulheres e velhos

não há quem salvar,

todos estão no mesmo barco.

Navegamos a nau dos loucos,

fomos deixados à deriva

para morrer a nossa própria sorte.

Mas, há alguém que ri,

que ri profundamente seu riso inútil

que pisa a cabeça do pobre

e humilha os fracos.



terça-feira, 14 de junho de 2022

Brasil da fome

Mais de trinta e três milhões

passam fome no Brasil

e somos o país do futuro.

Crianças não têm leite e pão,

nem arroz nem feijão.

O prato vazio reflete

a dor do estômago

que há dias não vê alimento.

Pessoas postam fotos nas redes sociais

viagens a países europeus

sítios paradisíacos ,

enquanto nas vielas e becos

crianças morrem de fome,

idosos encurtam a vida

tomando o café ralo

da última cesta básica

que ganharam de uma campanha.

Não há comida nem na marmita, nem no prato

há vários genocídios em andamento,

matam gays, lésbicas e trans

e matam de fome a população.

Programas de tevê mostram solidariedades,

gente pobre ajudando gente pobre

e o presidente anda de Jet Sky

e come leite condensado.

Somos o país da fome e da miséria.

Milhões dormem com fome

e um genocida exibe a faixa do poder

fazendo arminhas com as mãos

soltando sua gargalhada grotesca,

engolindo os pobres nas ruas e nas cracolândias,

nas favelas e nos barracos vazios de alimentos.

Somos o país da fome

como podemos almoçar em paz

sabendo que não há comida

em milhões de pratos?

Perco a fome diante da barbárie 

do país onde vivo.

Que pecados cometemos, Senhor,

para eleger ser tão ignóbil

que só olha o rico e o patrão? 


segunda-feira, 13 de junho de 2022

Fora de mim

Meu olhar atravessa a taça

ultrapassa o vinho branco

com que mato minha sede.

Sede de outras águas

de outras paragens

onde não posso estar.

Viajo pela borda da taça

cuidando para não cair no abismo

de onde jamais poderei sair.

Encontro-me fora de mim

não posso ser eu

não posso mais carregar meu corpo

minha nacionalidade

neste país que mata negros e índios.

Sonho com uma França distante

e com a liberté, egalité e fraternité

dos tristes exilados. 

Sonho com uma nova pele

um novo corpo, uma nova voz

que substitua meu eu dilacerado.

Bebo meu vinho

em busca do meu eu que deixei

longe daqui. 

Não, não posso mais ter este RG,

não posso mais olhar onde nasci

quero o exílio, quero a pátria que escolhi.


sábado, 11 de junho de 2022

Saga do noivo do passado

 Bem balão, bem balão

dança comigo esta quadrilha

nesta noite de fogos e rojão.

Bem balão, bem balão

vem comigo ser meu par

pular fogueira e comer canjica.

Presos na cadeia do amor

esperando pelo salvador

ouvimos as preces a Santo Antônio.

Bem balão, bem balão

lá vem a noiva de véu e chita

a fugir da cobra e da chuva

aguardando o noivo

que de chapéu na mão e terno remendado

dá seus passos trôpegos

rumo ao altar.

Bem balão, bem balão

olha a cobra

e salta a quadrilha

é mentira e volta a quadrilha.

Bem balão, bem balão

sou o noivo das antigas

sou ladrão da noiva

amor antigo, encalacrado,

venho roubar do altar

noiva, véu e grinalda.

Bem balão, bem balão

que me perdoe Santo Antônio

mas o casamento de hoje

não acontece não.

Bem balão, bem balão

sou amor da juventude

e com o tempo não passa não.

Bem balão, bem balão

chamo para o meio da rua

o noivo fujão,

intimo de faca na mão

aquele que arrasou meu coração.

Bem balão, bem balão

que o casamento fica para o São João,

porque hoje tem briga na rua

hoje tem desafio de faca na mão.

Bem balão, bem balão

que esta lua que me alumia

quero na ponta da faca que trago

o coração do noivo fujão.

Bem balão, bem balão

nesta noite de tragédia

não tem casamento não.

Bem balão, bem balão

levo comigo na garupa de meu cavalo

a noiva que de meus sonhos embalo. 


Artista do tempo

Salto a janela

sou trapezista do tempo,

acrobata da morte.

Busco no passado

não só meu

mas no alheio

vãs satisfações.

Incapaz de viver com os fatos

sou o artista da dor.

Domador de ilusões

e fustigo com a vara

a ferida que nunca sara.

Diante do aplauso do público

rio a minha dor,

no meu último instante

do palco da vida

cai morto

num lugar do passado

onde cozinho minha dor.

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...