sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dores

 Já tive dor de cabeça

de nem poder abrir os olhos.

Já tive dor de estômago

de enrolar na cama.

Já tive dor de barriga

de me contorcer sobre o assento.

Hoje tenho dor de alma

e os analgésicos não resolvem.

Por isso, caminho com minha dor

elegante pelas ruas,

a lustrar meu troféu de cidadão.

Mas assim é melhor

que me exibo puro com minha dor

desafiando os outros

a ter um andar definitivo como o meu. 

Um homem que caminha com sua dor

é algo assim de inesperado.

A vida....

 A vida é assim uma busca

ora achamos

ora perdemos

ora nos encontramos

ora não sabemos onde estamos.

Essa é a graça da vida

[se é que em algum momento sorrimos]

nossas certezas são raras

as casas onde moramos, passageiras

e a vida vai ficando para trás

como um riozinho fino

a escorrer entre as pedras.

Um hora desemboca no rio

mas até lá é longo o caminho,

vivemos mais de riachos

a nos matar a sede

do que dos rios a nos arrastar. 

domingo, 17 de outubro de 2021

Memórias de um leitor

 Amo livros. Há anos venho colecionando-os. Na verdade, desde os meus dezessete anos, quando passei a ter um dinheiro que me sobrava.

Comprava os livros novos ou usados. Os novos têm um cheiro indescritível, enquanto os usados estão carregados de histórias de seus antigos donos. Costumava imaginar onde era a casa original deles e as mãos que os manusearam. Eles tinham viajado, às vezes, quilômetros. É o caso de um exemplar de El mundo es ancho y ajeno, de Ciro Alegría. Adquiri a primeira edição, da década de 1940. Alguém o comprou no Peru, ele viajou até o Brasil e veio aconchegar-se em minha casa. 

É como se os livros tivessem um espírito. Eles povoam nossas casas, nossas estantes, os cantos vazios, a mesa da sala de estar. Eles habitam nossas casas, espiam nossas aventuras e desventuras e, sempre calados, guardam segredos como ninguém.

Habitar uma casa sem livros é muito triste. É como se ela estivesse abandonada, sem gente. Moro com inúmeras pessoas que me aguardam dentro das capas. Sempre as visito. Algumas aguardam mais tempo, a espera pode ser longa, mas nunca reclamam. É como ter uma mãe que mora distante e ficamos felizes só de saber que ela está viva.

Os livros são fiéis, negam-se a passar para outra mão facilmente. Não gostam de ser emprestados, ficar em casas alheias, longe de seus donos. A única coisa que realmente possuímos são os livros, neles podemos por nossos nomes e marcá-los com nossa identidade.

Amar um livro é como amar um filho. Damos a vida por eles. Por isso, a cena que mais me marcou quando assisti ao Nome da rosa, foi a aquela do frei que escapa ao incêndio carregado de livros.

Minha relação com os livros começou cedo. Mas não eram livros meus, eram de minhas primas, da época que elas haviam feito o ensino médio. Como eram poucos, os li algumas vezes, até que descobri, por intermédio de um amigo, a biblioteca pública de minha cidade. Ali passou a ser meu refúgio, lia para me salvar da vida que me aguardava em casa.

Se estava com fome, lia. Se estavam meus pais brigando, lia. Se estava triste, lia. Se tinha vontade de comer um doce, eu lia também até a vontade passar.

Foi assim que comecei a me relacionar com os livros. Não me importo muito em conhecer seus autores. Quero a história, a vida ali criada, é ela quem me salva todos os dias do desespero de habitar este mundo real, cheio de pessoas insanas e indiferentes.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Fim de semana

 Hoje é segunda-feira,

o fim de semana passou

e com ele suas dores e seus pesares.

Com sua tristeza ficou para trás

e será anunciado novamente

somente daqui a cinco dias.

Até lá o suicídio não é uma opção

o trabalho aguarda sorrateiro,

os boletos vencem dia cinco,

na escola há reunião

e os filhos veem eternos os pais.

As horas são contadas,

os minutos são escassos

diante dos inevitáveis fatos da semana.

Almoçaremos com pressa,

apenas para sustentar o corpo,

as notícias de jornais informarão o novo caso de feminicídio,

desgraça de um Brasil atrasado, 

a gasolina terá subido outra vez,

a energia estará os olhos da cara

e apagaremos as luzes

como alguém apaga seu último instante de vida.

Mas não é fim de semana

e a vida atropela

sem dó nem piedade.

Alguém cogita se atirar do sétimo andar,

mas resolve esperar o fim de semana

quando as dores recrudescem 

e o café esfria na xícara

enquanto alguém grita ao longe.

sábado, 2 de outubro de 2021

Somos todos hermanos?

Sábado chuvoso, saí logo cedo para ir à padaria. Comprar uns pães, algum bolo e algum salgado para passar o dia. Há dias que precisava chover e desde ontem chove. Isso deixou a cidade com um aspecto um pouco mais agradável. Parei o carro perto da Banca do Jonny Japa e fui caminhando o restante do percurso a pé, olhando a cidade, os seus passantes e pensando em algum motivo para, depois de mais de um ano, escrever uma crônica.

Com a pandemia e tomando remédios, parte da inspiração se dissipou e por mais que a procure, até mesmo embaixo do sofá, não a encontro. Difícil acertar a mão, encontrar o texto ideal para expressar os sentimentos. Ia eu com esses pensamentos até a padaria. O olhar curioso procurava uma vítima para meu texto, uma situação inusitada que pudesse ser material da crônica.

Na ida nada encontrei e voltei desanimado para o carro. Confesso que os finais de semana não têm sido fáceis para mim. A pasmaceira do dia, a inutilidade das coisas me deixam muito triste e reflexivo e não é porque está chovendo, nos outros fins de semana fazia sol e eu estava em pior estado. 

Peguei o carro e comecei o percurso de volta para casa. À vezes, tenho deixado moedas no carro para emergências ou alguma outra situação, mas no dia de hoje nada trazia. Ao longe notei algo que vejo todos os dias, porém, sem me dar conta. Um rapaz debaixo da chuva com um cartaz nas mãos, passando de janela em janela pelos carros.

O rapaz sorria e fazia gestos com a cabeça como se compreendesse os nãos que recebia a cada parada. Ele é venezuelano e estava no semáforo da Avenida Colombo. Do outro lado da avenida de quatro pistas estava a esposa, também pedindo. Em cada cartaz, escrito num português sem jeito, a história deles de imigrantes em uma cidade do noroeste do Paraná.

Chove, mas mesmo assim, os venezuelanos estão pelas ruas de Maringá. Parados a cada semáforo, pedem socorro para a situação que vivem. Alguns nos chamam de hermanos e enfrentam a frieza de nossos gestos que se recusam a estender a mão. 

Hoje chove e vi um casal de venezuelanos separado pelas pistas da Avenida Colombo. Eles pedem, não têm outra saída. Juntos no mesmo ideal de sobrevivência levantam seus cartazes e com eles suas esperanças são renovadas. Esperança de levar para casa o alimento que o filho espera, o dinheiro para a comida confortar o estômago e a certeza de que um dia serão aceitos na sociedade para onde fugiram. 

Será que somos hermanos? Voltei para casa seco e em segurança, trazendo nas mãos o saco de pães que comprara na padaria, enquanto isso, o casal de venezuelanos tomava uma chuva fria nas pistas da Avenida Colombo, recebendo seu batismo de latino-americanos em terras estranhas e inóspitas à dor alheia. O que será que eles comerão esta noite? Não pude deixar de pensar quando levei o primeiro pedaço de pão à boca. 

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...