segunda-feira, 22 de junho de 2020

Memórias

A casa de meu avô era grande
tão cheia de cantos
com seu telhado à vista,
suas janelas de madeira,
que pensei um dia habitar nela.

Hoje quando vejo a casa de meu avô
acho-a pequena, mesquinha,
tem alguns cômodos caiados à cor
um telhado cheio de picomãs
e janelas caindo aos pedaços,
jamais habitaria nela.

Mas, ah... a casa de meu avô
aquela de minha infância
caiada de amarelo e azul
nunca morrerá na minha memória.
E algumas vezes a visitarei
com os olhos emprestados ao passado
ainda morejados de saudade.


domingo, 21 de junho de 2020

Zohra e o pássaros

Zohra foi dada a uma família rica no Paquistão, assim como um objeto ou um animal de estimação. No fundo, os pais diziam que queriam vê-la estudada. Promessas feitas, acordos selados, a menina seguiu com a outra família. Miúda, de gestos pequenos, viu seu mundo desmoronar. Sem pai nem mãe, levada a uma casa estrangeira, viu-se obrigada a limpar o chão, lavar roupas, alimentar os pássaros que a família vendia na loja de animais e, por fim, cuidar do bebê, que lhe pesava enorme nos braços.  

Ao mínimo deslize, a menina via-se cheia de manchas roxas pelo corpo. Espancada por prazer, mais do que por correção, Zohra chupava seus lábios machucados, alisava as feridas do corpo magoado, tinha dificuldades em pentear os cabelos, pois a cabeça estava cheia de feridas. Será que o estudo tinha de ser tão caro assim?

Zohra, a princípio, apegou-se aos pássaros, leves de segurar, de canto doloroso, afinado às angústias de uma vida limitada pelas grades da gaiola. Invejava-os às vezes. Comiam na hora certa, tomavam água, ninguém lhes ralhava o canto, nem reclamavam do puleiro que lhes davam. Logo, ela desgostou de dois pássaros. Eram dois papagaios que repetiam tudo.

"Zohra, pega água". "Zohra, limpa a casa", "Zohra, menina porca", "Zohra é burra", "Zohra, o bebê está chorando", "Zohra, vê se não come muito"; "Zohra, menina dos infernos", "Zohra, olha as gaiolas".

A menina começou a sentir dentro de si algo que se assemelhava ao ódio. Pela primeira vez na vida ela tinha um sentimento imenso de esmagar aqueles dois papagaios, de fazer com que eles sumissem. Zohra nunca sentira isso por ser algum, nem humano, nem animal. Ela era dócil, gestos contados, como se economizasse movimentos, sempre temendo alguma pancada. 

Mas, em uma manhã, os patrões mandaram Zohra limpar as gaiolas, deixá-las brilhando para exporem na loja com os pássaros. A menina havia terminado quase todo o serviço, quando foi lembrada pelos pássaros zombeteiros que faltava a gaiola dos papagaios. Com desgosto, ela foi até a gaiola dos bichos. Pensou em matá-los, esmagá-los, silenciar para sempre aquelas vozes de taquara a gritarem: "Zohra burra"...

Não fez nada disso. Com todo cuidado foi removendo as fezes, limpando as gradinhas, até que por um descuido leve do destino, os pássaros bateram asas, voaram para fora da gaiola, ainda gritando: "Zohra burra" e desapareceram no ar. 

O terror se apoderou de Zohra. A surra seria inevitável. Já conhecia as dores das varas, dos chutes, dos murros que lhe partiam os dentes. Não quis esperar até o fim da tarde para contar aos patrões o acontecido. A dor da espera seria pior que a surra. Não imaginava ela que também bateria as asas naquele dia.

Ainda tremendo, Zohra contou aos patrões que os papagaios haviam fugido. O mundo ficou cheio de estrelas, o tapa na boca fora tão forte que a luz do dia quase desapareceu. Em seguida, sentiu os chutes na barriga, as varadas nas costas, mais murros na boca e uma espécie de mel inundou-lhe as gengivas e sentiu certo prazer. Nova chuva de murros no rosto e chutes na barriga.

Zhora sentia voar, o corpo estava leve, como uma pluma, não parecia estar mais naquele lugar horrível. Ao fundo ainda algumas vozes, muito distantes e alguns sons de pancadas que seu corpo já não sentia mais.

De repente viu-se cercada de homens e mulheres de branco, pensou estar no céu, mas a dor dos ossos quebrados desmentia as sensações. Logo mudaram seu corpo para uma maca. Depois de meses sentia o leve aconchego de uma cama e gostou da sensação. Zohra parou de resistir e entregou-se a essa sensação macia, não viu quando a entubaram, não viu quando lhe deram choques, nem quando lhe massagearam o peito. Zohra estava livre, leve como um pássaro, desprendida para sempre do peso de chumbo da vida. 






quarta-feira, 10 de junho de 2020

Poesia e prosa

Hoje não estou para a poesia
mas também não estou para prosa.

Um sentimento estranho me invade a alma
e despoja o corpo de toda a poesia.

Os versos perdem o sentindo de quem são.

Leio, releio, treleio os versos insensíveis
e eles nem sequer me dão as mãos.

Saio vazio, triste a contar os passos.

O que é feito de ti, poesia?
Para onde foi sua harmonia?

Em que casa repousas,
em que braços te afanas?

Poesia, o que há contigo
que não me dás nem o adeus do olhar?

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...