domingo, 27 de outubro de 2013

A vendedora

Uma casa nunca está totalmente vazia. Talvez este seja o problema de nossas memórias, elas povoam os espaços vazios com cheiros, gostos, gestos, bocas que não mais se tocam, dedos que não mais se entrelaçam; quando voltamos ao quarto da noite anterior, ele jamais estará desabitado, pois fala pelo lençol desajeitado na cama, pelos travesseiros fora de ordem, pelos chinelos que ficaram virados na pressa de sair. 

Até mesmo o amor mais secreto deixa marcas imperceptíveis pairando pelo ar, que dilata levemente as narinas em busca de um cheiro que teima em desaparecer do local. É a presença na ausência, um todo que envolve os amantes secretos com os flashes disparados pela memória. 

Esta manhã sabia que algo jamais voltaria a estar ali, vozes agitadas terminaram em um burburinho de desencontros, que ainda não entendi bem como começou, só sei que terminou, deixando para trás de si um ruído surdo de gritarias e imprecações lançadas por lábios nervosos quase a cuspir a alma. 

O fim de um relacionamento é o início da memória; ela que estava vazia ou  eu que não percebia sua presença, agora grita em minha mente atormentando-me de tal modo que seu grito surdo me impede de ler. A voz da memória é a mais alta e cruel que já conheci, aumento o volume da TV, mas parece piorar, não compreendo o noticiário, o filme é interrompido várias vezes por esse murmurio de lábios cerrados a me ofender. Agora entendo por que Deus odeia os murmuradores....

Passo os dedos pelas gavetas vazias, a madeira dura agride os agride, as peças de roupas fugiram com sua dona. Deixam para trás um rastro de etiquetas velhas. Uma delas veio dessas lojas femininas, estávamos juntos e entramos no shopping só para fugir ao calor insuportável; entre uma vitrine e outra entramos numa das lojas, a atendente era bonita e a maneira que ela exibia as peças me fazia imaginá-la deitada sobre minha cama. No entanto, levei a peça apenas e, na época, minha namorada, não tão sensual como a vendedora, mas animada como ela a antever uma noite em claro. 

A noite foi um desastre, a imagem daquela mulher da loja impediu que eu pudesse oferecer aquilo que, agora minha ex-namorada, tenho de me acostumar a isso, queria. Frustrei-a com a frase clássica e mais idiota que um homem pode dizer: isso nunca me aconteceu antes, fala clichê de novela barata. Incomodei-me mais com a frase do que com minha, quero dizer com a ex, como não podia ser diferente para aumentar a crise virei de lado e fingi dormir. 

Pior que virar de lado, era saber que no outro dia pela manhã acordaria com ela me olhando o rosto e suplicando iniciar o que não teve êxito na noite anterior. Homem quando falha é assim, a mulher sempre se acha culpada e que já não te excita tanto mais, o pior daquela manhã era admitir que ela tinha razão, que a moça da loja não saía da minha cabeça.

São nove e meia da noite, acho que ainda dá tempo de voltar à loja, meses depois voltarei à cena da discórdia inicial. Essa minha mania de retornos sempre me complica. Porém, mais forte que eu, sigo em passos de noctâmbulo ao local do crime primeiro. Todo fim de relacionamento tem um marco, mesmo que ele seja apenas o estopim inicial de um rastilho de pólvora que explodirá todo o barril. 

Olho para a moça, ela me reconhece quase de imediato. Faz perguntas sobre as quais não queria responder. Sorrio sem graça, olho de soslaio suas curvas nas quais derrapei naquela noite em que falhei. Tremo, as mãos suam gelado, sinto o lábio inferior tremer no canto, mania que me persegue desde de adolescente diante das meninas quando me sentia acuado. Resoluto e com o olhar quase magoado repito quase entre dentes: "A culpa é sua". Ela sem entender nada pergunta se quero um copo d'água, sento-me e aguardo-a com o copo, ela pega em minha mão, alisa com seus dedos as gemas do indicador e do médio, como se tivesse pena de mim naquele momento.

Como despertada de um sonho ela se levanta bruscamente, recompõe sua postura de vendedora e pergunta em que poderia me ajudar. Digo que quero comprar a mesma camisola daquela noite, um modelo um pouco maior, talvez M. Ela traz a vestimenta, aliso-a e sinto calar a voz daquelas memórias. Como ébrio resolvo disparar sem muito pensar: "Só que não tenho quem a use..... talvez precise de uma modelo para preencher  vazio desta peça". Ela me olha quase sem acreditar...

Esta noite, porém, todas as vozes se calaram, não precisei arrumar uma desculpa, nem virar de lado, os clichês ficaram para trás e na manhã seguinte era eu quem servia de sol ao abrir de pálpebras dela.











Um comentário:

Unknown disse...

Poxa vida, hein! Muito bom...parabéns. Continue escrevendo, seus textos são ótimos!

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