quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Sobre o tempo

Afinal, o que é o tempo,

senão essa grosseria da eternidade

as nos corroer as carnes?

Cada minuto abreviando os instantes,

transformando pessoas e momentos em memórias.

Contra nossa efemeridade

o tempo eterno insensível escoando

como um rio em tempos de tempestades.

O tempo é traiçoeiro,

ontem menino passando de colo em colo,

hoje homem a contar as migalhas dos dias e das horas.

"Ah, o tempo é bom" dizem os sábios

treinados pelo último coach de motivação.

O tempo é o tempo, nada mais.

Indiferente e monótono

não altera sua marcha,

nem na alegria e nem na dor.

Devora com igual vontade o nascimento e a morte.

O tempo é essa coisa, essa monstruosidade,

que encarceramos nos relógios e nos calendários.

Ninguém escapa ao tempo,

no nosso peito foi colocada uma bomba

que bate incessantemente

e que há de estourar

poucos segundos antes de expirarmos. 


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Père Lachaise

Ouvi em algum lugar que a cova ou a sepultura, se quiserem ser mais educados, é o fim de todos nós. A morte nos iguala, ricos ou pobres se veem diante do fato que se tornarão pó logo após os vermes terem roído suas carnes. Não à toa, Machado de Assis dedicou seu Memórias Póstumas ao primeiro verme que roeria suas carnes. 

Assunto mórbido assim duas semanas após o dia dos mortos parece algo pesado demais para ser ler. O problema é que sofro de tardâncias, demoro a processar as datas, as viagens, os eventos, vivo de memória e isso demanda tempo. 

O fato é que a morte é um tema universal. O homem se bate em torno da vida com um olho na morte ou na vida eterna. Sofremos de pressas, queremos viver tudo ao máximo no menor tempo possível. Logo esquecemos a indesejada das gentes e pedimos vida ao vento, ao sol, às fotografias, ao encarte que anuncia o próximo cruzeiro de verão.

Assim, buscando mais vida, em março fui para a França. Demorei-me na cidade de Lyon por um mês. Durante aquelas semanas, como todo bom viajante à terra da baguete e do vinho, fui a Paris. E lá se respira vida. Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Champs Élysées, Galeries Lafayette, Montmartre, Louvre, Orsay e, por que não, Père Lachaise.

Sim, deixei toda a luz das lojas, dos cafés, das galerias e fui dar uma espiada aos mortos de Paris. O cemitério fica no alto de uma colina. Cheguei tarde ao local. Entrei e fiquei por umas duas horas andando sem rumo pelas sepulturas, só a admirar aquilo que chamam de final da vida.

E posso dizer: a morte não iguala todo mundo. A cada sepultura uma estátua, uma homenagem, uma obra de arte. Uma coisa é ser enterrado numa carneira de cimento com uma cruz de metal e uma inscrição de perpétua, com um mísero retrato do que fomos em vida, outra é estar no Père Lachaise, sendo visto por inúmeros turistas que ainda dão alguma coisa por nossos ossos carcomidos pelo tempo. A morte tem suas vaidades e o cemitério é uma enorme celebração da vida.

Parece paradoxal, mas não é. Ali se celebra a vida, a importância daquilo que fomos enquanto ainda tínhamos a capacidade de abrir a boca. Até nos túmulos mais simples, uma homenagem, uma estátua da filha que morreu acompanhada de seu cachorro, um homem quase a flutuar no ar, anjos, esculturas, dando um adorno à morte. De Balzac ao mísero suicida. Podemos contemplar o fim da vida e o início da arte tumular, fúnebre. 

Père Lachaise é um cemitério que convida os vivos a se sentarem com os mortos. E, por isso, sentei-me, respirei o ar fúnebre daquelas sepulturas, observei as pessoas ávidas por acharem um famoso. Eu não, não cheguei a nenhum túmulo famoso, contemplei tão somente a morte em suas últimas instâncias agarrada à vida como o náufrago a um pedaço de madeira no meio do mar. Subi escadas, desci, contornei sepulturas, olhei datas, tentei decifrar o que prendeu tanto tempo alguns à vida, enquanto outros desceram à tumba em tão breve idade.

Logo esqueci o medo que estava em ficar fechado no cemitério e ter de ali dormir entre gente tão desconhecida e me pus como um bom turista a fazer selfies, fotografar túmulos desconhecidos, registrar o lugar para aquilo que a mente apagasse depois. 

Consegui sair pouco antes do fechamento. Tomei um metrô e segui em direção à Place de Italie, no oitavo arrondissement. Estava cansado e feliz. Estive com os mudos da terra, com aqueles que não podem mais se pronunciar. Meses depois, no Brasil, fico sabendo que o cemitério foi inaugurado para dar uma sepultura digna a todos os franceses, inclusive os pobres. Gostei ainda mais do local, ninguém nesta terra deve morrer sem ter direito a uma pedra que cubra seu caixão. 

Foi assim que celebrei na morte a vida e à noite fui para a Torre Eiffel comer um crepe com Nutella e olhar as luzes a anunciar uma Paris viva, indiferente ao seus mortos. Isto é já outra história...

sábado, 4 de novembro de 2023

O "inessencial" da vida

Acredito que a palavra "inessencial" não exista nos dicionários. No entanto, ela define minha vida. Sempre tive uma aptidão para o inessencial. Minha mente se perde em pensamentos difusos e o essencial passa à margem e vou dando giros pela estrada até acertar o alvo. Pelo menos, na direção, não dispenso o Google Maps ou aquela parada no posto para pedir informações. Ao menos tenho isso, nunca tive medo de admitir que não sei e isso é uma grande vantagem. 

Meus pensamentos seguem uma linha torta, assim como meus sentimentos, que são caudalosos e intensos, mais intensos que o da média da população e isso me causa problemas constantemente, haja vista eu ter de conviver com pessoas que estão em uma marcha muito mais lenta do que a minha. 

Acredito que até quando durmo meus pensamentos são difusos. Aí, sonho com mundos distantes, países diferentes, visito toda noite lugares que jamais vi e que nem sei se existem, reencontro pessoas, confesso que nem todas eu gostaria de ver e outras que até me agradam. Sonhar demais é um problemas também, não raras vezes acordo cansado para o dia que me espera.

Ter aptidão para o inessencial é uma luta diária. Não temos paz nem no momento de passar a manteiga no pão. Nossa mente já está viajando a quilômetros de distância. Temos a tendência a valorizar pessoas que não importam, situações mínimas que não mereceriam nosso desgaste e que nos levam a delírios de vingança e ou de desaforos inimagináveis que desferimos contra nosso opressor.

Geralmente, não sigo as "mentes pensantes" de nosso país. Isso me desgastava demais e a consciência do inessencial me trouxe algumas liberdades. Hoje evito responder a comentários de Twitter, Threads ou qualquer rede similar. Na verdade, não sigo ninguém que emita uma opinião, vejo fotos de viagens, pessoas, jogadores de futebol, guerras e suas injustiças e evito a última pessoa que se diz livre, mas que carrega consigo um ódio mascarado nas mensagens de autoafirmação. 

Ter uma mente para o inessencial é escolher se vou ler o Processo, do Kafka ou algum texto teórico sobre minha linha de pesquisa ou se vou ler o novo contemporâneo elogiado pelo influencer do Tik Tok, que todos meus alunos leram a indicação como a última revelação do milênio. Na prática, desisto de todos eles e tento olhar para o que vale a pena na vida. Como moro em um apartamento, anseio por sair à tarde e ver o pôr-do-sol. 

A mente para o inessencial é isto. Há um baita céu azul lá fora, um sol amarelo de infância e estou eu aqui a escrever sobre a minha mente. Já fiz o meu café, tomei a primeira xícara e vim para o computador. Tudo bem que o texto não me toma mais de 10 minutos com seus erros e falta de revisão, mas há um sol lá fora, um céu azul e uma temperatura de outono em pleno fim de primavera. 

Escrever, porém, me tirou um pouco a ansiedade com que acordei esta manhã. O dedão do pé esquerdo estava até apontado para cima devido à tensão. Pois é, ter uma mente para o inessencial nos traz desvantagens. Não dispenso um Ansitec  em alguns momentos e outros medicamentos que meus 44 anos me trouxeram. Alguns tenho planos de me livrar. Só não sei o que faço com minha mente para o inessencial. Em todo caso, o essencial para a vida me chama, o apartamento não vai se limpar sozinho, as leituras não brotarão em minha mente e depois vou baixar algum livro do Mia Couto para ler, quem sabe desperto como a criança que em vez de chorar, deu um pio de pássaro. Somos todos imigrantes neste mundo. 

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...