domingo, 16 de julho de 2023

Tomas e Tereza

 A  Milan Kundera

Entumecido diante de teu belo sexo

imagino outros falos adormecidos

a espetarem tuas carnes.

Repito o ato mecânico

com que me ofereces teu corpo

[eterno aprendiz de outros corpos]

a receber agora o peso de meu peito.

Recupero tuas excitações

concentradas em mim

e gemes profundo de uma voz rouca abafada

a cravar-me tua existência.

És a menina abandonada no cesto

Sou Tomas e tu és Tereza

a se desesperar com o corpo de outras mulheres

que habitam meu sexo.

Não és única

nem sou teu único amado preso em uma torre.

Sobre nossos corpos

pesam sombras de outras épocas.

Sou leve sobre o peso denso de tua respiração.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Passado

Um passado não se desfaz fácil assim,

e mesmo em seus ardores silenciado

nas paredes da memória

instala grades e cacos de vidro

que nos aguilhoa a alma nos silêncios do presente.

A primeira sensação de Deus

o amor, nem sempre na cama,

que nos inaugurou o sexo

esse monstro de prazer e angústias. 

Lembro pouco

raramente vasculho o passado

prefiro deixar os mortos calados

essa classe de gente indigesta

que ainda vive em algum lugar.

O passado é esse mar de ossos insepultos

e infelizmente serão eles a jogar a última pá de cal

sobre o fim de meus dias. 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Estreias

Em ti divino Deus

descansei minhas fadigas

vi, porém, teus grandes olhos

me vigiarem as noites nuas.

Meus gozos, meus prazeres

tudo compartilhaste com teus anjos.

Meu corpo nu desvendado

por morenas mãos estreantes

rompeu o véu da inocência.

Colhi maçãs, experimentei das uvas 

o vermelho vinho

e gozei desenfreado os corpos que se abriram

ao meu falo inexperiente.

Deitei na terra úmida

e senti minha finitude

germinar nas mãos de Deus.

Lembranças

 São 6h30 da manhã. Acordo antes de o despertador tocar. Ouço o canto de pássaros que deveriam estar em minha janela. Desconfio que estão presos em uma gaiola no prédio ao lado. Lamento a sordidez humana que não sabe apreciar o dom da liberdade. Os pássaros foram os últimos seres a morrer no dilúvio. Resistentes voaram por dias, dormiram nas mais altas copas das árvores do planeta e quando as águas chegaram, refugiaram-se nas montanhas. Ainda cantavam, mesmo molhados e com frio. Quando as águas subiram demais e as montanhas sucumbiram ao dilúvio, os pássaros novamente voaram anunciando o fim do mundo. Por dias foi possível ver os pássaros nos céus do planeta. Próximos de Deus, logo chegariam aos portais dos céus, que derramavam suas águas sobre a terra, naquele momento mais líquida do que sólida. Logo, Deus se lembrou de Babel e da arrogância humana, veio-lhe à memória os anjos que do céu caíram por ousarem o mais alto trono da divindade e novamente com medo, o grande espírito que já pairou sobre a face das águas, quando a terra ainda era vazia e sem forma, de um só golpe ceifou milhões de pássaros. Caíam do céu, como as águas do dilúvio, pássaros de todas as cores e tamanhos. Por sete dias, as águas ficaram coloridas de penas, uma tela de horror tingiu a face das águas e novamente só o espírito de Deus voava sobre o mundo desfeito. Em poucos dias, o cheiro pútrido dos pássaros alcançou os céus e abrandou a ira de Deus. Noé de sua embarcação queimava estrume para incensar o ar que se tornou insuportável. Na arca os pássaros soltavam seu lamento pelos irmãos mortos nas águas. Noé se alegrou com o canto e sacrificou alguns animais a Deus, não fosse o Senhor irar-se pela falta de gratidão humana. A fumaça subiu aos céus e o Senhor, depois de dias que águas já não mais desciam dos céus, lembrou-se do homem preso em sua embarcação. Era hora de começar a secar as águas e dar um pouso à sua semelhança na terra. Noé soltou uma pomba, mas esta foi negada por Deus ainda desconfiado das intenções dos pássaros, ela voltou para a embarcação sem notícias de vida no orbe. Dias depois, Noé soltou outra pomba e esta, perdoada por Deus, voltou trazendo das mãos do Senhor um pequeno ramo verde. Era símbolo da reconciliação de Deus com os pássaros. Noé tomando o ramo verde como símbolo da aliança de Deus com os homens, quebrou o pescoço da pomba, derramou seu sangue no chão da arca e ofereceu ao Senhor seus louvores. As aves, presas nos gaiolões da arca, entraram em alvoroço e cantavam desesperadas, claro que por falta da humana voz para protestar. Noé regozijou e tomou aquilo como mais um sinal da benção de Deus. Navegou feliz por dias e pensou: quando descer à terra, farei gaiolas para que as aves cantem dia e noite para Deus como sinal de agradecimento por nos ter restituído a vida cotidiana. Mandou mais uma pomba, que Deus não viu a diferença por ser branca também e novamente lhe devolveu com mais ramos verdes. Era o fim do dilúvio e o homem poderia habitar a terra e fazer tendas e fazer festas e coabitar novamente longe dos olhos dos animais. No primeiro dia em terra, Noé construiu inúmeras gaiolas para abrigar os pássaros saídos da arca, acreditou assim garantir a reprodução primeiro, soltaria apenas os filhotes que as aves dessem, as demais ficariam presas para enfeitar seu jardim. Para ter privacidade com suas filhas, Noé cobria as gaiolas toda a noite e coabitava em festa. Meses depois com a vinha dando frutos, Noé fez o vinho e se embriagou. Cam desta vez cobriu as gaiolas e coabitou em paz. De lá para cá os homens têm feito gaiolas e prendido os pássaros. Inúmeros concursos de canto foram feitos pelas associações de criações de aves, que exibiram seus pássaros a outros humanos que não compreenderam o lamento das aves e lhes deram prêmios pela voz canora. Meu avô tinha gaiolas. Lembro-me de um pássaro em especial. Um periquito azul, que meu avô tirava da gaiola e o acariciava em suas mãos. Passei uma temporada na casa de meu avô. Logo ganhei tarefas e uma delas era trocar o alpiste e a água das gaiolas todos os dias pelas manhãs, cuidar para que os pássaros não fugissem e limpar as grades da prisão. Assim como meu avô, me afeiçoei ao periquito azul e com as mãos o tirava da gaiola, até que um dia, confundindo o azul do céu com o azul do periquito imprimi-o contra a abóboda celeste e o vi misturado à tela divina. Nunca mais vi o periquito azul, me foram proibidas as demais gaiolas, mas toda tarde eu olhava para o azul do céu e imaginava quando foi que o homem teve a ideia de fazer gaiolas para prender os pássaros. Nunca mais ouvi a voz de Deus. Alerta: esta história não é sobre meu avô, é sobre pássaros, não suporto gente que tem gaiolas. Provavelmente, não suporte meu vizinho do prédio ao lado que às 6h30 da manhã tira o pano das gaiolas para os pássaros cantarem. 

  A poesia é essa água que escorre pela boca e d esce pelas bordas  rompendo a barreira dos lábios. Diz e não diz f abula mundos intangív...