A vida é uma tênue linha presa ao nosso coração. Ele bate, bate, bate incansavelmente, dando-nos a impressão de que somos eternos, de que jamais partiremos e embarcamos nessa viagem sem volta mal abrimos os olhos. A consciência da efemeridade da vida vem apenas com a morte, ela nos avisa que temos um fim.
À tarde recebi um telefonema de minha mãe. Logo imaginei que algo ocorrera, porque ela não me liga poucos dias depois de eu ter ligado. Deixamos criar saudades, ausência, falta e, então, ligamos de novo, dizemos oi como se tivéssemos nos falado pela manhã. Desta vez, porém, minha mãe me ligou e do outro lado a ouvi chorar; imaginei que fosse minha prima Sandra e realmente era. Havia falecido à tarde, com o cair do sol no horizonte. Agora mesmo, enquanto escrevo, faz poucas horas que minha prima morreu. O fio tênue que a ligava à vida se desprendeu e ela se foi.
Pouco saiu da cidade onde nasceu. Sempre esteve ligada à terra e à família; não deixou filhos, mas amava e mimava os sobrinhos com doces de seu bar. Ela mesma exagerava nos doces e não podia. Tinha diabetes há vários anos. Descobriu logo cedo que herdara da mãe a doença. Só não podia imaginar que tão cedo lhe explodiria a bomba no corpo.
O diabetes foi insensível, cruel, começou levando-lhe um dedo, depois meio pé, depois mais meio pé até que ela que tão bem se equilibrava sobre os pés, andando pela cidade com toda velocidade que as pernas lhe permitiam, se viu em uma cadeira de rodas. Foram anos de expectativa, mas as feridas nunca fecharam, teimavam em abrir fendas em seus quase pés, infernizando-a dia e noite.
Agora, o que fazer com essa ausência? Com a dor que ficou, com seu vazio? Minha prima se foi, morreu, deixou de respirar numa tarde de fim de março, próxima à Páscoa. A Semana Santa ficou mais triste que de costume e o silêncio deixado por ela, neste momento, preenche todos os vazios. Estou longe, lutando para que as palavras façam sentido, para que o sentimento escorra pela página, mas sinto que as palavras estão insensíveis à minha dor e parecem não realizar a pessoa que foi Sandra.
O que fazer quando qualquer ato será inútil, quando até mesmo minha presença não será percebida por ela? Faço este texto de despedida, mas o sinto tão cruel comigo, com ela, tão fraco, que nem chega à altura do que ela foi. Ao menos, foi amada pela família, que se acostumou com ela ali, na cadeira de rodas, ora bem, ora mal, indo e vindo do hospital, que, desta vez pensamos: ela voltará, olhará o mundo com resignação, com aceitação de quem não pode fugir ao destino. Ela, porém, não voltou, não se sentou de volta em sua cadeira e nem olhou o movimento da rua.
A cadeira está vazia, não terá mais sua dona sobre ela. O bar ficará mais triste, com a ausência daquela figura sentada à sua porta, sempre disposta a ajudar a família, a irmã, minha mãe. Sinto-me ingrato neste momento, pois, provavelmente não irei ao velório, nem dará tempo de eu chegar, pois a pandemia devora a todos, até aqueles que não pereceram por ela. O tempo dos velórios foi reduzido, os adeuses encurtaram, nem podemos nos acostumar com a ausência, com o nada que sobra atrás de nós.
Como se acostumar à morte? Com o vazio deixado pela pessoa? Com a ausência da voz? Amanhã ela já não estará entre nós, nem seu corpo mudo nos deixará perplexos. Haverá apenas o nada, os bons dias sem sentido, o espaço vazio à mesa, a tarde em que ela não mais chegará para ficar com minha tia, enquanto minha mãe iria à igreja. Haverá apenas a memória, as recordações de alguém que começa a se apagar desde a última vez que seus olhos contemplaram as paredes brancas do hospital.
Por isso, estico-lhe a vida, estiro um pouco mais o fio de sua existência, gravo na folha em branco a sua presença, para que ela fique um pouco mais conosco, para que ainda não diga adeus em definitivo, para que perdure nas palavras, para que se ancore nelas, como um barco ao cais.
Estás agora sozinha em teu caixão, fechada numa funerária, aguardando a despedida de amanhã, Quem embalará tua cama para que durmas? Para que não tenhas medo do desconhecido? Quem te darás a mão nesta última noite aqui na Terra?
Este é o meu adeus a ti, Sandra. Minhas palavras de despedida, meu aperto de mão, meu beijo no teu rosto, que agora gelado não poderá sorrir. Sempre estarás colada à minha história, à minha infância, às visitas que eu fazia escondido à tua mãe(quando a família estava brigada), às andanças pelo sítio, pela cidade, nos breves momentos em que te vi, quando visitava minha mãe e ia até o bar para conversar contigo. Da última vez não pude te ver, pois não estavas bem e dormias. Agora dormes para sempre e não podes me ver novamente. Dou-te minhas palavras, faço-te esta lápide de letras que perdurará para sempre.
Dorme bem, dorme em paz, sem dores e que no outro mundo possas andar de novo sobre teus dois pés.
6 comentários:
Sem palavras. Chorei como se a conhecesse.
Emocionante, uma obra de arte, despertou em mim empatia mesmo não conhecendo Sandra.
gostei muito belas palavras e grande criatividade quase chorei
Este texto me fez ter lembranças da morte da minha avó, a morte dela foi quase semelhante a de Sandra. A ida dela várias vezes ao hospital me fez recordar também das que minha avó foi, a última vez eu falei para ela que ela iria voltar, porém ela não voltou. Todas as palavras ditas nesse texto me fizeram refletir que devemos aproveitar ao máximo as pessoas que amamos, pois não sabemos o dia de amanhã e o que ele guarda para nós.
parabéns pela obra, gostei muito do texto, confesso que fiquei emocionado com a história da tia Sandra, que é muito parecida com a da minha madrinha.
Que texto lindo! Terminei de lê-lo com um nó na garganta.
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