Não percebi quando os móveis começaram a ganhar quinas. Meu mundo arredondado desaparecera. Vieram as primeiras batidas, os primeiros golpes na cabeça. Antes via o mundo de baixo, agora era um trombar constante em quinas de mesas e armários. Era como se aquele ambiente doméstico antecipasse as dores que viriam mais tarde.
As grandes aventuras ficaram para os livros. Neles eu era livre e jamais me machucava. No mundo real vivia a me bater contra os objetos e pequenos ferimentos passaram a habitar meu rosto.
Uma vez, vendo pequenos pingos que subiam ao ar, fiquei curioso e subi em uma cadeira. Vi um mundo borbulhante. Minha mãe fritava batata doce, ao menos é a imagem que ficou em minha memória, e eu querendo ver os pingos subirem, peguei num copo d'água e atirei dentro da frigideira. Meu rosto virou um campo de guerra, não havia onde por o dedo indicador. Minha mãe curou as bolhas com creme dental Kolynos, nem um marca ficou em meu rosto. As únicas manchas que tenho são da catapora que veio depois.
Não fui uma criança forte, pelo contrário, faltavam forças para muitas atividades. Vivia adoentado, comia pouco e quase desmaiava. Também, nunca havia muita comida em casa, mas não era isso que me afligia na época, penoso era ter de comer o que me punham à frente do rosto. A noção de escassez ainda não habitava meu imaginário.
Então, minhas aventuras eram dentro de casa, quando muito no quintal. Nossa casa tinha apenas dois cômodos, era alugada e de fundos.
Um dia, lembro-me bem, entrei em contato com a morte. Vi um homem levar um tiro na cabeça. E minha casa ficava nos fundos, numa descida grande. O sangue em breve desceu; antes foi tomado pelos cães que vieram lamber a poça vermelha que se formou em torno da cabeça do morto. Depois ocupou todo o quintal. Com a lavação, mais sangue desceu e lavou as hortelãs que havia no fundo de casa e que serviam para os chás contra lombriga.
Naquele dia, aprendi que nem tudo o que vemos contamos, porém, a imagem jamais saiu de minha cabeça e como um quadro fixou-se entre as primeiras memórias de minha infância. Eu estava crescendo. Jamais deixaria de lembrar.
Um comentário:
achei muito interessante, o autor mostrou a realidade de muitas infâncias, mostrando que nem toda infância sempre é maravilhosa
Postar um comentário